Sabe-se que todos os aspectos que permeiam a temática acerca da posse suscitam inúmeros debates e pontos de vista conflitantes, uma vez que se trata de um dos institutos de maior indefinição na seara jurídica. Não há consenso quanto à sua natureza jurídica, havendo quem defenda que é mero fato, pois a posse não seria autônoma e, portanto, não possuiria valor jurídico próprio. Outra corrente, encabeçada por Ihering, defende que a posse seria um direito, tendo em vista que seria um interesse juridicamente tutelado. Por fim, existem os adeptos da concepção eclética, cujo maior expoente é Savigny, pela qual a posse é vista, ao mesmo tempo, como fato e direito (GONÇALVES, 2014, p. 354-355). Se a natureza jurídica da posse não é ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência, estabelecer o seu conceito não seria menos tormentoso. O Código Civil¹, como se sabe, não traz a definição de posse, porém, em seu art. 1.196, conceitua o termo “possuidor” como “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Na tentativa de definir a posse, duas importantes teorias surgiram. A primeira delas, idealizada por Savigny, diz respeito à teoria subjetiva ou subjetivista, “entendendo a posse como o poder direto que a pessoa tem de dispor fisicamente de um bem com a intenção de tê-lo para si e de defendê-lo contra a intervenção ou agressão de quem quer que seja” (TARTUCE, 2017, p. 606). Sendo assim, para essa teoria, dois elementos são imprescindíveis na caracterização da posse: o corpus e o animus. Este corresponde ao elemento subjetivo, ou seja, a “intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio e de defendê-la contra a intervenção de outrem” (GONÇALVES, 2014, p. 343); aquele “é a relação material do homem com a coisa, ou a exterioridade da propriedade” (VENOSA, 2011, p. 1183). A segunda tese, conhecida como teoria objetiva ou objetivista, é atribuída à Ihering, pela qual é “certo que para a constituição da posse basta que a pessoa disponha fisicamente da coisa, ou que tenha a mera possibilidade de exercer esse contato” (TARTUCE, 2017, p. 606). Percebe-se, assim, que o elemento corpus é colocado em primeiro plano, além de que, nesse componente, insere-se a ideia de que o possuidor não necessariamente deve ter a intenção de ser dono coisa, mas tão somente de explorá-la economicamente. Ao confrontar a tese de Ihering com o conceito de possuidor trazido pelo Diploma Civilista, é possível inferir que a o direito pátrio adotou a teoria objetiva da posse, conforme atesta a jurisprudência:
[Grifamos] Ademais, classificar a posse também não é tarefa fácil. Vários critérios permitem qualificá-la de diversas maneiras: posse direta ou indireta, justa ou injusta, nova ou velha, exclusiva ou composse, pro diviso ou pro indiviso, natural ou civil, de boa-fé ou de má-fé, entre outras.
Contudo, aqui o nosso interesse se volta para as posses de boa-fé e de má-fé. O Código Civil, em seu art. 1.201, trata de definir a primeira como aquela em que o “possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. A posse de má-fé, portanto, raciocinando-se a contrario sensu, é aquela em que há a ciência do vício que macula a situação jurídica do possuidor. Note-se que o fator de diferenciação entre as duas espécies gira em torno de aspectos psicológicos, ou seja, subjetivos, uma vez que “é de suma importância, para caracterizar a posse de boa-fé, a crença do possuidor de se Enfim, como ressalta Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 371), “a boa-fé somente ganha relevância, com relação à posse, em se tratando de usucapião, de disputa sobre os frutos e benfeitorias da coisa possuída ou da definição da responsabilidade pela sua perda ou deterioração”, e por isso é tão importante distingui-la da posse de má-fé. Primeiramente, somente a boa-fé, aliada a outros requisitos, autoriza a usucapião ordinária, a qual exige apenas dez anos, no caso de propriedade imóvel, ou três anos, em se tratando de bem móvel, de posse contínua e inconteste para aquisição da coisa, ao passo que a posse de má-fé não permitiria tal modo de aquisição, uma vez que os prazos seriam maiores (15 e 5 anos, respectivamente). Leia-se a dicção do diploma civilista:
[Grifamos] Quanto aos frutos advindos da coisa possuída, a boa-fé confere ao possuidor o direito aos frutos percebidos e a indenização das despesas de produção e custeio dos frutos pendentes e colhidos antecipadamente, enquanto a posse de má-fé autoriza tão somente a reparação das despesas de produção e custeio. Observe-se:
[Grifamos] Com relação às benfeitorias³ e ao direito de retenção pelo valor destas, o possuidor de boa-fé tem direito à indenização de benfeitorias necessárias e úteis, bem como de reter a coisa em razão do valor destas, além de levantar, quando não forem indenizadas, as voluptuárias, caso não haja prejuízo à coisa, enquanto o de má-fé deverá ser ressarcido apenas pelas benfeitorias necessárias, sem qualquer direito de retenção, além de não lhe ser autorizado levantar benfeitorias voluptuárias. É o que se extrai do Código Civil:
[Grifamos] No que concerne à responsabilidade do possuidor, também é determinada no caso concreto de acordo com a boa-fé ou má-fé. O possuidor de boa-fé será responsabilizado pela perda ou deterioração da coisa somente quando agir com dolo ou culpa, ao passo que o possuidor de má-fé atrairá a responsabilidade para si ainda que o evento tenha sido acidental, isto é, mesmo sem dolo ou culpa, a menos que prove que a perda ou deterioração teria acontecido ainda que a coisa estivesse sob a posse do legítimo possuidor. Senão, vejamos:
[Grifamos] Cabe ainda ressaltar, por fim, que a proteção possessória não é negada ao possuidor de má-fé, uma vez que a boa fé não é requisito das ações possessórias nem da autotutela da posse, sendo suficiente apenas a posse qualificada como justa (GONÇALVES, 2014, p. 371). Referências: [1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 28 maio 2017. [2] Posse justa é aquela que não é violenta, clandestina ou precária (art. 1.200, CC). [3] Art. 96, CC: As benfeitorias podem ser voluptuárias, úteis ou necessárias. § 1o São voluptuárias as de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. § 2o São úteis as que aumentam ou facilitam o uso do bem. § 3o São necessárias as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore. [4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado: contratos em espécie e direito das coisas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 2 v. [5] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. [6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. |