Em linhas gerais, o processo tem por escopo a solução de uma questão litigiosa posta diante do Estado-Juiz, o qual, dentro da relação trilateral com autor e réu, aplica o direito ao caso concreto, resolvendo, dentro de um prazo razoável, o conflito de interesses caracterizado pela pretensão resistida. Ocorre que a aplicação do direito no caso concreto nem sempre ou raramente é fácil, notadamente no processo de execução, onde se busca a materialização do direito, isto é, sua aplicação concreta no plano material. Com exceção da prestação de alimentos, em que há a coação pessoal pela prisão, são os bens do devedor que garantem o cumprimento da obrigação imposta pelo Poder Judiciário em um determinando litígio ou por um título executivo extrajudicial, equiparado à sentença. No Código de Processo Civil de 1973, a execução de sentença se dava em processo autônomo, após o processo de conhecimento, quando então passava-se a tentativa de localização de bens do devedor para a satisfação do direito reconhecido na sentença. Com a reforma empreendida pela lei 11.232/05, que estabeleceu o novo regime de cumprimento de sentença, o processo, salvo algumas exceções, passou a ser sincrético, onde houve a junção das funções cognitiva e executiva, para declarar e satisfazer o direito em um único processo, desdobrando-o em fases de conhecimento e de cumprimento de sentença. Tal mudança seguiu a tendência do direito moderno, contribuindo com a economia, celeridade e instrumentalidade do processo, para atender a efetividade, de modo a alcançar o verdadeiro sentido de acesso à Justiça. Com o advento da lei 11.382/06, que alterou o regime de execução de títulos extrajudiciais, priorizou-se a adjudicação, em detrimento da alienação judicial pela arrematação. Além disso, criou-se a figura da alienação por iniciativa particular (art. 685-C, do CPC/73, introduzido pela lei 11.382/06). Desse modo, penhorado um bem do executado, o exequente já poderia adjudicá-lo. Não havendo adjudicação, poderia ser feita a alienação por iniciativa particular. Não efetivada a alienação por iniciativa particular, é que se designaria leilão ou praça para a venda judicial do bem. O CPC/2015 manteve o sincretismo processual com a fusão das fases de conhecimento e cumprimento de sentença. O novel diploma processual evoluiu com a criação de diversos mecanismos para a efetiva implementação e materialização dos direitos reconhecidos na fase de conhecimento, munindo o Estado-Juiz de valiosas ferramentas, como, verbi gratia, o poder-dever de determinar todas as medidas para assegurar o cumprimento da ordem judicial (art. 139, IV). No que diz respeito à expropriação de bens do executado, o NCPC inovou na alienação por iniciativa particular, permitindo, além da alienação por iniciativa do próprio exequente, a venda judicial por intermédio de corretor ou leiloeiro público credenciado perante o órgão judiciário (art. 880). Estabeleceu, ainda, que os tribunais poderão editar disposições complementares sobre o procedimento da alienação por iniciativa particular, admitindo, quando for o caso, o concurso de meios eletrônicos, e dispor sobre o credenciamento dos corretores e leiloeiros públicos, os quais deverão estar em exercício profissional por não menos que 3 (três) anos (art. 880, § 3º). Finalmente, autorizou que, nas localidades em que não houver corretor ou leiloeiro público credenciado, a indicação será de livre escolha do exequente (art. 880, § 4º). A alienação particular por intermédio de corretor ou leiloeiro público constitui uma interessante opção do credor em se valer de um profissional experiente para buscar a realização da venda de um determinado bem constrito judicialmente. As vantagens são inúmeras e vão ao encontro dos princípios mais comezinhos do Direito Processual. Primeiro, considerando que a alienação particular de bem penhorado somente pode ser levada a efeito pelo valor da avaliação – enquanto no leilão pode, em segunda praça, ocorrer uma arrematação por até 50% (cinquenta por cento) da avaliação sem que seja considerada preço vil –, encontram-se atendidos os Princípios da Máxima Utilidade da Execução e da Menor Onerosidade para o Devedor. Isto porque a alienação particular pelo valor da avaliação garantirá ao credor uma maior satisfação do seu crédito, ao passo que para o devedor acarretará a redução ou extinção da dívida pelo justo valor de mercado do bem expropriado. Com a alienação por iniciativa particular, resta atendido também o Princípio da Razoável Duração do Processo e da Efetividade da Jurisdição, haja vista que permite uma rápida e concreta solução do litígio. Com o suporte de um profissional habilitado – corretor ou leiloeiro público, que imprimirá suas habilidades e conhecimentos do mercado imobiliário para atingir o resultado útil –, à máxima evidência, a alienação por iniciativa particular se tornará muito mais efetiva, atendendo ao Princípio da Eficiência. Nada obstante, este poderoso instrumento de alienação judicial de bem penhorado em processo executivo não tem sido utilizado a contento. Por via inversa, a notícia alvissareira é que diversos tribunais estão editando normas para regulamentar a habilitação e credenciamento de corretores e leiloeiros públicos, objetivando garantir que a alienação por iniciativa particular seja realizada por profissionais idôneos e capacitados. Em suma, necessário se faz que os operadores do direito estejam sensíveis e atentos às relevantes mudanças trazidas pelo novel Estatuto Processual Civil pátrio, as quais permitem e garantem maior efetividade na prestação da tutela jurisdicional, sob pena de se fazer letra morta diversos avanços alcançados no plano legislativo. __________ *Marco Aurélio Oliveira Rocha é Procurador Federal e Secretário-Geral da OAB/MS. *Roberto Cunha é advogado e Conselheiro Estadual da OAB/MS. O Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/15) enumera em seus artigos 879 e 880 as hipóteses de venda forçada de bens do executado no curso de ações judiciais. São elas a adjudicação, a alienação por iniciativa particular e, ainda, o leilão judicial eletrônico ou presencial. Conforme regulamentação processual em vigor, para os casos em que não há interesse do exequente na adjudicação do bem, a alienação por iniciativa particular passou a ser admitida, inclusive em preferência ao leilão. Esse instrumento é uma novidade introduzida pelo Código de Processo Civil para acelerar a resolução de disputas e dar maior autonomia ao exequente, que pode converter o bem penhorado em dinheiro, buscando compradores para satisfazer seu crédito. Contudo, a alienação por iniciativa particular ainda desperta dúvidas (práticas, inclusive), diante da existência de lacunas legislativas, especialmente em relação aos bens imóveis. Isso se deve ao fato de o Código de Processo Civil ser silente sobre questões importantes para transações imobiliárias. Um exemplo é a forma como o imóvel será avaliado ou a natureza da aquisição (originária ou derivada), que pode implicar na assunção de ônus pelo adquirente, entre outros pontos destacados abaixo. Conforme regramento legal, o exequente poderá requerer a adjudicação do bem penhorado nos próprios autos da ação. Isso significa que o credor substituirá a obrigação de pagamento em dinheiro pelo próprio bem penhorado, dele apropriando-se como forma de satisfazer o crédito. No entanto, no caso de não haver interesse do credor na adjudicação, o exequente poderá, se assim desejar, requerer a alienação do imóvel a terceiros, venda que poderá ser feita de forma direta ou por intermédio de corretor de imóveis ou de leiloeiro credenciado ao órgão judiciário (hipótese que não se confunde com o leilão puramente judicial, tratado a partir do artigo 881 do Código de Processo Civil). Não havendo interesse na alienação por iniciativa particular, a venda será feita pelo modelo de leilão presencial ou eletrônico. Dessa forma, o tradicional leilão continua sendo uma opção, mas aplicável subsidiariamente no caso de não haver interesse do exequente na adjudicação do bem ou na alienação por iniciativa particular. O Código de Processo Civil estabelece, em seu artigo 880, que o procedimento da alienação por iniciativa particular será regrado pelo juiz da causa. Isso significa que o procedimento e a aplicação prática da venda do bem poderão variar de acordo com cada juiz, que deverá determinar: (i) prazo para alienação; (ii) forma de publicidade da venda; (iii) preço mínimo; (iv) condições de pagamento (v) eventuais garantias; e (iv) comissão de corretagem, se aplicável. Também será o juiz quem assinará, em conjunto com o adquirente e o executado (caso ele esteja presente), a carta de alienação e o mandado de imissão na posse, que representarão os títulos translativos da propriedade do bem imóvel, a serem registrados no Cartório de Registro de Imóveis competente, juntamente com o comprovante da quitação do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Apesar de a alienação por iniciativa particular ter preferência sobre o leilão judicial, seu regramento se limita ao teor do disposto no artigo 880, ao passo que o leilão, modalidade tradicional de alienação no âmbito de ações judiciais, tem regulamentação bem mais robusta. Não existe disposição clara sobre a possibilidade de aplicação subsidiária dos dispositivos tratados para o leilão (por exemplo, se as pessoas impedidas de participar de leilão judicial, arroladas no artigo 890 do Código de Processo Civil, também não podem realizar a aquisição por iniciativa particular) nas alienações por iniciativa particular, o que gera dúvidas, além de tornar a mencionada venda quase que inteiramente regrada pelo juiz. A título de ilustração, destacam-se algumas das principais lacunas da alienação por iniciativa particular:
De maneira geral, apesar da existência de diversas correntes doutrinárias, o posicionamento do Judiciário tem sido arrojado nesse sentido, permitindo a venda sem a necessidade de publicação de edital (o que, na prática, tornaria o processo moroso e o aproximaria do leilão tradicional). Além disso, o requerimento de alienação por parte do executado ou de terceiros, desde que com a anuência do exequente, tem sido permitido. Sem dúvida, o ponto mais controverso, no entanto, é o da avaliação do bem penhorado, para o qual a jurisprudência ainda não tem posicionamento sedimentado. Além dos pontos destacados, sob a perspectiva imobiliária, uma das principais questões se refere à natureza da alienação por iniciativa particular. Isso porque, apesar de se tratar de uma venda no âmbito judicial, ela é requerida (na maioria das vezes) pelo polo ativo da ação, e os termos e as condições são estipulados pelo juiz da causa, que direciona todo o procedimento de alienação. Discute-se, assim, se eventuais ônus e/ou débitos de natureza propter rem existentes em relação ao imóvel seriam ou não oponíveis ao adquirente/arrematante da coisa, ainda que o procedimento ocorra totalmente na esfera judicial. Em relação a esse tema, em 14 de fevereiro deste ano, ao julgar o Agravo em Recurso Especial 929.244-SP (que trata da oponibilidade de débitos de Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU em face do adquirente), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que tal alienação é equiparável à hasta pública, haja vista que é “venda coativa da coisa penhorada, sob supervisão judicial, embora com procedimentos mais simples”. Dessa forma, estipulou que a alienação por iniciativa particular é modalidade de aquisição originária de bem imóvel, razão pela qual o adquirente recebe a coisa livre de ônus e débitos. Outro ponto que merece destaque é a possibilidade de aplicar a alienação por iniciativa particular em ações trabalhistas. Em tais ações, o Código de Processo Civil é aplicado de forma subsidiária, mas o Decreto-Lei nº 5.452/43, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 888, também regulamenta o tema, só que de maneira diversa. O artigo estipula que a alienação particular é possível apenas caso não existam licitantes no leilão. Nesse sentido, discute-se a prevalência do princípio da especialidade da lei trabalhista sobre a legislação suplementar posterior. O Judiciário vem se posicionando no sentido de permitir a aplicação do Código de Processo Civil, isto é, a venda particular antes da realização do leilão, focando na economia processual e na celeridade do procedimento, embora também exista corrente (minoritária) que defenda a aplicação da CLT. Como exposto, a alienação por iniciativa particular visa conferir dinamismo aos processos judiciais, para tornar mais eficiente e menos burocrática a venda de bens penhorados. Contudo, a alienação coativa de bens pode esbarrar, em breve, nas lacunas legislativas e na divergência de entendimentos quanto à aplicação da legislação mais apropriada. Há risco de questionamentos e, consequentemente, de indesejável insegurança jurídica, especialmente para o adquirente de bem imóvel alienado nessas condições. |