A importância dos povos e comunidades tradicionais no Brasil

Foto: Ronaldo Rosa

Conservar os polinizadores é uma das práticas que impactam o meio ambiente global

Valorizar práticas de comunidades indígenas e tradicionais em todo o mundo não serve somente para conservar patrimônios culturais. Um trabalho publicado recentemente na revista científica internacional Nature acaba de mostrar que as práticas dessas comunidades com o manejo dos polinizadores são fundamentais para o meio ambiente e para o bem-estar do homem em todo o planeta.

O artigo Biocultural approaches to pollinator conservation, fruto do trabalho de pesquisadores de 15 países, incluindo o Brasil, apresenta um amplo diagnóstico sobre como as comunidades indígenas e tradicionais protegem polinizadores em suas florestas, lavouras e campos, trazendo múltiplos benefícios culturais, ecológicos, econômicos e de qualidade de vida seja local ou globalmente. Isso porque esses povos mantêm uma relação com a natureza que envolve desde a sobrevivência até questões culturais e religiosas, e desenvolveram um conhecimento complexo sobre esses ecossistemas. Os pesquisadores chamam essa relação de diversidade biocultural.

A importância dos povos e comunidades tradicionais no Brasil

Quadro conceitual da análise realizada pelos pesquisadores que mostra relação das ações humanas com o meio ambiente na abordagem biocultural (Fonte: IPBES)  

“O trabalho utilizou a abordagem biocultural para entender as práticas das comunidades e revelou a importância do resgate do conhecimento tradicional, considerando as soluções locais para programas globais, tendo como eixo central as práticas amigáveis a conservação e reconhecimento do papel dos polinizadores, principalmente  das abelhas”, explica a pesquisadora Márcia Maués, da Embrapa Amazônia Oriental, uma das autoras do artigo.

Um exemplo citado entre as práticas locais é a experiência dos Gorotire (sub-grupo dos Kayapós), no Pará, que desenvolveram um complexo etnoconhecimento sobre as abelhas. “Esse grupo indígena nomeia todas as partes do corpo das abelha e todas as fases do seu desenvolvimento, desde o ovo, ínstares larvais até o indivíduo adulto”, conta a pesquisadora. Das 56 espécies de abelhas nativas nomeadas por essa tribo, 86% correspondem exatamente ao conhecimento científico. 

O diagnóstico foi feito em 60 países e avaliou centenas de experiências publicadas na literatura científica mundial. Os pesquisadores identificaram que as comunidades desenvolvem práticas de manejo paisagístico, possuem sistemas agrícolas diversificados e promovem a diversidade de espécies de polinizadores em suas áreas, o que implica diretamente na promoção do bem-estar humano, na produção de alimentos e na conservação das florestas em todo o mundo.

O artigo foi coordenado pela agência nacional de pesquisa da Austrália - Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO) - e contou com a participação de instituições de 15 países. Entre as brasileiras estão a Embrapa Amazônia Oriental, a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Tecnológico Vale (ITV).

Recomendações para políticas públicas

A abrangência do estudo é mundial e resulta também do trabalho realizado no âmbito da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), que vem apontando a importância dos polinizadores nos serviços ecossistêmicos e produção de alimentos no mundo.

O grupo de especialistas faz um alerta aos gestores públicos mundiais e recomenda sete políticas para apoiar a conservação baseada na abordagem biocultural. Entre elas estão uma base legal que dê suporte para acesso aos conhecimentos e áreas de comunidades tradicionais. No Brasil essa atuação é regulada pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

Outra recomendação dos pesquisadores é assegurar o direito à terra para as comunidades tradicionais, fortalecendo assim as suas práticas de conservação das áreas e florestas.  Apoiar atividades de produção do conhecimento compartilhados entre a ciência e os saberes locais é também uma recomendação para políticas públicas, assim como fortalececer o patrimônio mundial cultural e natural.

O formato de uma cidade é dado por suas comunidades. Não raro, dentre elas, encontramos comunidades tradicionais. Saiba quais são elas e porque são importantes.

O formato de uma cidade é dado por suas comunidades. Não raro, dentre elas, encontramos comunidades tradicionais, grupos culturalmente diferenciados com organização e forma de vida peculiares. Índios, quilombolas, açorianos, pescadores artesanais, faxinalenses, são alguns exemplos desta espécie de grupamento social que, via de regra, depende da ocupação de territórios e do uso de recursos naturais para sua reprodução cultural, social e econômica.

Por ser flagrante a importância como elemento da cultura e pela necessidade de garantir o acesso de seus integrantes ao espaço público, dispensa comentários o interesse dessas comunidades para uma política de diversidade franca e perceptível. Assumem, porém, envergadura, dois de seus aspectos: o primeiro, os conhecimentos tradicionais, de valor ignorado pelo mainstream, mas que, em sede internacional, dão azo a controvérsias sofisticadas envolvendo, por exemplo, propriedade intelectual e patrimônio genético, e o segundo, com ainda menor visibilidade, portanto, militando precedência, a sua justificativa como base espontânea para a exploração sustentável de recursos naturais. Este último ponto aguça a percepção quando apreciado no contexto do estudo de impacto ambiental (EIA) – instrumento técnico-científico, de caráter multidisciplinar, utilizado no processo de licenciamento de empreendimentos.

Comparadas a outros segmentos da sociedade civil, em empreendimentos de impacto de maior potência, são raras as ocasiões em que comunidades tradicionais não são abordadas no EIA. A razão para tanto é a economia destes povos depender, em muito, da atividade extrativista e, por conseguinte, da exploração de seus territórios (e.v. da floresta pelo indígena, do mar pelo pescador artesanal). O território é condição para a existência destas comunidades, assumindo tamanha importância frente aos seus elementos a ponto de cumprir legítima função existencial.

Seguindo esta lógica, a Organização Internacional do Trabalho, por intermédio da Convenção 169, traça prerrogativas aplicáveis às comunidades tradicionais dando precedência à defesa dos seus direitos, sobretudo, ao direito de territorialidade. Vale destacar que a OIT 169 é uma importante ferramenta de descolonização, afirmando não existir uma homogeneidade nos povos em qualquer país. A despeito dos padrões da sociedade industrial, a convenção reconhece que não há um estilo de vida hegemônico; pelo contrário, que há outras vias e que devem ser preservadas.

Para o direito ambiental, a questão toma profundidade. A observância de princípios como o do desenvolvimento sustentável e da prevenção, não se esgota naquilo que é ou não, em sede de meio ambiente, adequado ao modo de vida contemporâneo, sendo necessário observar as opções que as comunidades tradicionais nos trazem, levando em consideração o que representa a “tradição” e a “memória” destes grupos.

Por fim, alinhadas em breviário a importância das comunidades tradicionais, permite-se reafirmar aquilo em que nosso país representa ainda uma fronteira a ser desbravada, sem intenção, no entanto, de com isso fazer referência às suas riquezas naturais ou à exuberante estética, mas o que persiste em potencial e que compõe o maior patrimônio de qualquer nação:

- O povo!

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A importância dos povos e comunidades tradicionais no Brasil

As comunidades tradicionais, sejam ribeirinhos, indígenas, pescadores, quilombolas, entre outros, mantêm uma íntima relação com o Meio Ambiente, passada de geração para geração e relacionada à sua dependência de obtenção de recursos para sua subsistência, como alimento. Mas, ainda, hoje, é comum a sociedade ter uma percepção equivocada em relação a estes grupos como comunidades isoladas, intocadas, e que vivem “em harmonia” com os seus ambientes ou, até mesmo, julgá-los como oportunistas que se valem de um título de minoria. A dificuldade em entender as concepções e as práticas dessas comunidades tradicionais relacionadas ao “mundo natural” faz com que a sociedade não sabia lidar com essa relação. Os indígenas, por exemplo, têm concepções variadas de “natureza”, pois cada povo tem um modo de idealizar o meio ambiente e de compreender as relações que estabelece com ele. Porém, se algo parece comum a todos eles, é a ideia de que o “mundo natural” é antes de tudo uma ampla rede de inter-relações entre agentes, sejam eles humanos ou não-humanos. Isto significa dizer que os homens estão sempre interagindo com a “natureza” e que esta não é jamais intocada. Os Yanomami, por exemplo, utilizam a palavra urihi para se referir à “terra-floresta”: entidade viva, dotada de um “sopro vital” e de um “princípio de fertilidade” de origem mítica. Urihi é habitada e animada por espíritos diversos, entre eles os espíritos dos pajés yanomami, também seus guardiões. A sobrevivência dos homens e a manutenção da vida em sociedade, no que diz respeito, por exemplo, à obtenção dos alimentos e a proteção contra doenças, depende das relações travadas com esses espíritos da floresta. Dessa maneira, a natureza, para os Yanomami, é um cenário do qual não se separa a intervenção humana. Nesse contexto de inter-relação e interdependência, faz-se primordial para os grupos a conservação ambiental das Terras Indígenas, como forma de garantir a manutenção de suas tradições e modos de vida, sendo, portanto, uma estratégia de ocupação territorial estabelecida para proteção dos povos indígenas. Pesquisas apontam que os povos indígenas tiveram um papel fundamental na formação da biodiversidade encontrada na América do Sul. Muitas plantas, por exemplo, surgiram como produto de técnicas indígenas de manejo da floresta, como a castanheira, a pupunha, o cacau, o babaçu, a mandioca e a araucária. Os povos indígenas sempre usaram os recursos naturais sem colocar em risco os ecossistemas. Estes povos desenvolveram formas de manejo que têm se mostrado muito importantes para a conservação da biodiversidade no Brasil. Esse manejo incluiu a transformação do solo pobre da Amazônia em um tipo muito fértil, a Terra Preta de Índio. Estima-se que pelo menos 12% da superfície total do solo amazônico teve suas características transformadas pelo homem neste processo. No sul do Brasil, por exemplo, a TI Mangueirinha ajuda a conservar uma das últimas florestas de araucária nativas do mundo, enquanto que no Sul da Bahia, os Pataxó da TI Barra Velha, ajudam a proteger uma das áreas remanescentes de maior biodiversidade da Mata Atlântica. Sendo assim não é só sobre suas tradições e cultura que os conhecimentos dos povos indígenas se aplicam, o conhecimento indígena ensina muito sobre manejo vegetal, cultivo de plantas e conservação do solo, além de produção de medicamentos à base de plantas, sazonalidade climática, comportamento animal, além de uma infinidade de sabores negligenciados e subestimados pela cultura tradicional. Por fim, a cultura indígena pode nos ensinar, sobretudo, sobre como viver em harmonia com o meio ambiente, sem devastá-lo.