10 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. RETROSPECTIVA SOBRE A EDUCAÇÃO POPULAR E OS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL Maria da Gloria Gohn Resumo Estudo sobre a temática da educação popular e sua relação com movimentos sociais no debate sobre os sujeitos sociopolíticos do processo de mudança social, destacando a obra de Paulo Freire. O texto se estrutura em três momentos, segundo a cronologia histórica. Inicialmente, abordam-se as principais contribuições iniciais de Paulo Freire a partir dos anos de 1960-1970, em seguida, focalizam-se transformações na conjuntura socioeconômica e política no Brasil ao final dos anos de 1980 e nos de 1990 e suas repercussões na Educação Popular; e o terceiro momento destaca o cenário brasileiro neste século, especialmente na década de 2010, quando surgem novos tipos de movimentos sociais e novas relações no campo da educação popular. O legado do método de Paulo Freire neste cenário é um fio condutor que percorre o texto. Palavras-chave: Educação popular; Movimentos sociais; Paulo Freire; Sujeitos coletivos. RETROSPECTIVE ON POPULAR EDUCATION AND SOCIAL MOVEMENTS IN BRAZIL Abstract This paper does a study on the thematic of popular education and its relationship with social movements in the debate on subjects socio political of the process of social change, highlighting the work of Paulo Freire. The text is structured in three moments according to the historical chronology. Initially addressed the main initial contributions of Paulo Freire from the years of 1960-1970, then focus on transformations in the socio- economic and political juncture in Brazil at the end of the years of 1980 and US of 1990 and its repercussions on Popular education; And the third moment highlights the Brazilian scenario in this century, especially in the decade of 2010, when new types of social movements arise, new relationships in the field of popular education. The legacy Professora Titular Faculdade de Educação UNICAMP e Profa. Visitante Senior da UFABC. Pesquisadora 1 A CNPq. Dra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo; Pos Doc em Sociologia na New School University, N. York. Membro do board de coordenação do RC 47 da International Sociological Association. Autora de 20 livros sobre as temáticas da participação social, movimentos sociais, educação não formal, políticas públicas participativas.
11 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. of Paul Freire's method in this scenario is a conductor thread that travels through the text. Keywords: Popular education; Social movements; Paulo Freire; Collective subjects. RETROSPECTIVA SOBRE LA EDUCACIÓN POPULAR Y LOS MOVIMIENTOS SOCIALES EN BRASIL Resumen El artículo tiene la obra del educador Paulo Freire como hilo conductor del estudio sobre la temática de la educación popular y su relación con movimientos sociales en el debate sobre los sujetos sociopolíticos del proceso de cambio social. Se estructura cronológicamente en tres momentos: las principales contribuciones de Paulo Freire en los años 1960-1970; las transformaciones socioeconómicas y políticas en Brasil al final de los años 1980 y en los 1990 y sus repercusiones en la Educación Popular; y el legado del método de Paulo Freire en el escenario brasileño en siglo XXI, especialmente los nuevos tipos de movimientos sociales, nuevas relaciones en el campo de la educación popular en presente década. Palabras claves: Educación popular; Movimientos sociales; Paulo Freire; Sujetos colectivos. Apresentação Este texto objetiva resgatar alguns elementos sobre o papel da educação popular na constituição de sujeitos sociopolíticos, especialmente junto aos movimentos sociais no Brasil. A preocupação com a questão do sujeito advém da sua importância no processo de mudança e transformação social. A categoria sujeito confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e grupos sociais, transforma-os de atores sociais, políticos e culturais em agentes conscientes de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano, político, social. Os sujeitos se constituem no processo de interação no cotidiano com outros sujeitos, na sociedade civil e em instituições, privadas e públicas, estatais ou não estatais. O texto divide-se em três partes. A primeira faz um resgate histórico da educação popular (EP) no Brasil após 1950 e o papel de Paulo Freire nesse processo. A segunda destaca mudanças operadas nas diferentes agendas
12 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. construídas ao redor da temática da educação popular e as metodologias e ferramentas de sua operacionalização na década de 1990. A terceira discute um sujeito sociopolítico específico – os movimentos sociais e suas relações com a educação popular, destacando processos ocorridos a partir deste novo século. A principal fonte de dados deste texto advém de uma revisão crítica sobre a produção bibliográfica dos anos 1980-2017 sobre educação popular e o papel dos movimentos sociais na mesma. Concluiremos com a seguinte constatação: a educação popular desempenhou diferentes papéis junto a este sujeito coletivo - movimentos sociais, ora atuando como agente de formação e conscientização; ora atuando via o ‘empowerment’ da comunidade– visando a processos de inclusão social; ora sendo recriada pelos movimentos dos indignados nas marchas e manifestações na atualidade. Ao longo dos anos, estudando, analisando e escrevendo sobre o tema da participação popular, sua importância nos sistemas democráticos, etc., tenho observado que, sem sujeitos sociopolíticos críticos e atuantes, as mudanças sociais e culturais são muito mais difíceis e lentas. Mas como se formam esses sujeitos? Resolvi recorrer à área da educação e, nesta, retomar a famosa e esquecida questão do processo de conscientização na formação de sujeitos coletivos, tema bastante presente nos debates na área da Educação Popular nos anos 1970 e 1980. A preocupação com a questão do sujeito advém da sua importância no processo de mudança e transformação social e da confusão ao redor desse termo, utilizado segundo diferentes concepções e paradigmas epistemológicos: no passado, já significou agente histórico de processos revolucionários, mas depois essa interpretação foi negada por muitos com o estigma de ultrapassada; foi substituído pela categoria ator social, assim como foi mistificado e banalizado. Para nós, é uma categoria fundamental, que constitui e posiciona indivíduos na história dos processos sociais, culturais e políticos de uma sociedade. A
13 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. categoria sujeito confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e aos grupos sociais, transforma-os de atores sociais, políticos e culturais em agentes conscientes de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano, político, social. O sujeito é reconhecido – objetivamente, e se reconhece – subjetivamente, como membro de uma classe, de uma etnia, parte de um gênero, de uma nacionalidade e, muitas vezes, de uma religião, culto ou crença. Os sujeitos se constituem no processo de interação com outros sujeitos, em instituições, privadas e públicas, estatais ou não. Educação Popular no Brasil – a contribuição de Paulo Freire Sabemos que o paradigma predominante da Educação Popular brasileira nos anos 70/80 do século passado foi um conjunto de ideias políticas, filosóficas e pedagógicas que nasceu com os Movimentos de Educação de Base e Cultura Popular no final dos anos de 1950 e início de 1960 e que cresceu no interior da resistência popular dos anos de 1970 e 1980. Segundo o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), alguns pontos desse paradigma são: A valorização da cultura popular, a centralidade atribuída ao diálogo, à ética e à democracia no processo de construção de relações sociais mais justas; a necessidade de ter como referência constante, ao longo de qualquer processo pedagógico ou de mudança social, a realidade da vida dos educandos e a forma como eles encaram esta realidade – a relação entre conhecimento e politização, entre educação e movimentos sociais; o estímulo à participação dos educandos em todas as fases do processo educativo; a atenção ao pequeno, ao miúdo, ao cotidiano; a tentativa de fazer com que o ensino seja também pesquisa, uma investigação curiosa sobre a realidade. (Tempo e Presença, CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, n. 272). Em nosso entendimento, Paulo Freire é a síntese desse paradigma e isso justifica sua escolha como o pensador que tomamos como ponto de partida neste capítulo.
14 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. Segundo Gadotti (1999), o método de Paulo Freire representa, na América Latina (e em outras partes do mundo também), um dos mais importantes paradigmas da educação. Quando ele surgiu, significou uma alternativa emancipatória e progressista face aos programas extraescolares predominantes na época, patrocinados por agências norte-americanas e de outros países, com programas de extensão rural, desenvolvimento de comunidade, etc. Esses programas estavam sendo desenvolvidos na América Latina desde o término da II Guerra Mundial. A obra de Paulo Freire e sua abordagem da realidade têm um caráter multidisciplinar e contemplam diversas dimensões, destacando-se a do educador-político. Freire postula uma educação libertadora e conscientizadora, voltada para a geração de um processo de mudança na consciência dos indivíduos, orientada para a transformação deles próprios e do meio social onde vivem (FREIRE, 1970). Inicialmente, o método estava mais centrado no tema da consciência, buscando o desenvolvimento de uma consciência crítica. Posteriormente, os temas da organização e do trabalho foram ganhando também relevância no próprio processo de construção daquela consciência. Sabemos que o método foi aplicado originalmente em programas de alfabetização de jovens e adultos da área rural do Nordeste e ampliou-se para todo o território nacional, entre junho de 1963 e o golpe militar de março de 1964; a partir dos anos 70, ele foi aplicado em várias regiões do mundo em “trabalhos de base” em geral. Recordamos que o método consistia em três momentos básicos: a investigação temática (busca de palavras e temas-chave no universo vocabular do(s) aluno(s) e da sociedade onde vive(m)), a tematização (a codificação/decodificação desses Sabemos que a existência de um “método” na obra de Freire é polêmica, e ele mesmo concordou certa vez, em uma entrevista em João Pessoa, com uma afirmação de que o método não existia. Entretanto, muitos pesquisadores que seguem a teoria freiriana utilizam a expressão e localizam no apêndice do livro A educação como prática da liberdade (FREIRE, 1979, 9. ed.) a caracterização deste método. Não entraremos na polêmica e utilizaremos a expressão “método” ao nos referirmos às propostas de Freire para a educação ou à fala de seus seguidores.
15 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. temas/palavras e seu significado social) e a problematização (busca de superação das primeiras impressões por uma visão crítica). Destacamos que uma das maiores inovações do método de Freire, quando surgiu e também atualmente, é o fato dele ter como base o diálogo. Portanto, nos anos 60, quando o método foi elaborado, ele era moderno e avançado para sua época, pois dava grande ênfase aos processos comunicativos. Sabe-se que o tema da comunicação entrou na agenda contemporânea da comunidade dos acadêmicos e dos planejadores públicos como “obrigatória” apenas nos anos 80, dado o avanço dos meios de comunicação, das novas tecnologias e do papel da mídia. Para Freire, “o diálogo consiste em uma relação horizontal e não vertical entre as pessoas implicadas” (GADOTTI, 1999, p. 9). A reflexividade – tão aclamada nas teorias dos anos 90 – já estava colocada no método de Freire na medida em que o oprimido só se liberta quando adquire a capacidade de refletir sobre as condições de sua própria vida e conquista autonomia para realizar seu destino histórico. A pedagogia do diálogo redefiniu a relação pedagógica na medida em que reconfigurou a relação professor/aluno, educador/educando. O professor é visto por Freire como alguém ao lado do aluno, um ser que busca e também aprende; o aluno passa a ser sujeito das ações educativas e não mais objeto, ganhando dignidade no processo educativo. As experiências de Freire no Chile e na Guiné Bissau, ao final dos anos 60 e nos anos 70, foram decisivas para a redefinição de algumas de suas concepções iniciais, que destacavam mais as ações – culturais e problematizadora – como geradoras da consciência. Freire passou a enfatizar também a importância da organização (a ação organizada) e da consciência gerada via a experiência profissional no processo produtivo de trabalho. Ele chamou a atenção dos educadores – na primeira fase do método, quando se procura descobrir o universo vocabular do grupo – para que atentem tanto para as palavras carregadas de sentido existencial (cunho emocional) como para outras
16 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. experiências típicas da vida cotidiana dos educandos, expressas por “formas de falar particulares, palavras ligadas à experiência do grupo, especialmente à experiência profissional” (FREIRE, 1980, p. 42). Portanto, para Paulo Freire, a conscientização não significa um ato mecânico, instantâneo, de tomada de consciência da realidade. Ela é um processo construído por momentos onde se caminha do nível espontâneo e ingênuo, que ocorre quando a pessoa se aproxima da realidade, para uma tomada de consciência. A conscientização não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação- reflexão. [...] Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. [...] A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo. [...] A conscientização [...] supõe, por sua vez, o superar a falsa consciência, quer dizer, o estado de consciência semi- intransitivo ou transitivo ingênuo, e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade desmitificada (FREIRE, 1980, p. 26 e 90). Na obra de Paulo Freire, a educação, como ato educativo de conhecimento e como prática de liberdade, é, antes de tudo, conscientização. A educação é pensada por ele como um ato político, um ato de conhecimento e um ato criador. Seu ponto de partida é a realidade dada, que precisa ser transformada. Para que ela possa ser libertadora, é vista como um processo longo; precisa construir nos educadores(as) uma consciência histórica, o que demanda tempo. Os postulados freireanos tiveram um papel fundamental na atividade educativa gerada pelas atividades político-organizativas nos anos 70 e parte dos anos 80. Foi um período em que, na América Latina em geral, e no Brasil em particular, a Educação Popular se tornou sinônimo de movimento social popular, pois a principal estratégia educativa utilizada, a conscientização, situava a prática política e os processos de aprendizagem em uma mesma linha de objetivos., E
17 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. essas duas ações se articulavam em um plano de ação política (MEJIA, 1991; TORRES, 1994; DAM, 1996). Nos anos 70, esse plano teve um espaço privilegiado para seu desenvolvimento, a saber: as ações das comunidades eclesiais de base cristãs. O trabalho educativo de formação de lideranças gerou também inúmeras iniciativas populares que contribuíram para a organização das massas populares, especialmente urbanas, tais como: bibliotecas populares, rádios comunitárias, centros culturais de bairros, grupos de teatro, inúmeros cursos de formação em centros populares e operários, boletins e uma variada gama de mídia alternativa, músicas e concursos populares, etc. A Educação Popular era vista como parte integrante do processo organizativo das classes e camadas populares, que era desenvolvido pela Igreja, pelo clero, pelas facções políticas novas, e não somente uma tarefa dos partidos e sindicatos. Ao contrário, em alguns casos, havia tensão e conflitos entre os programas de alguns partidos de esquerda – considerados como radicais – e as novas organizações populares, mais afeitas às orientações cristãs-neomarxistas ou socialistas-libertárias (GOHN,1997). Um aspecto relevante da obra de Paulo Freire é a sua utilização junto aos movimentos populares. Mudanças nas análises sobre o papel do sujeito na história e a educação popular na década de 1990 Resumindo, podemos observar, até a década de 1990, os seguintes pontos: 1a – a continuidade do uso do método Paulo Freire nos movimentos populares urbanos que sobrevieram dos anos 80 – especialmente na luta pela moradia; 2a – a continuidade do uso do método na área da educação, não apenas nos programas de alfabetização de adultos desenvolvidos por entidades do terceiro setor e por programas oficiais nacionais, mas também na área da educação não formal (GOHN, 2011b), em trabalhos com crianças e jovens adolescentes em situação de risco; 3a – o uso do método em programas relativos ao meio
18 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. ambiente nas escolas e junto às comunidades. A obra de Freire (1995) À sombra desta mangueira tem sido uma referência sobre a ecologia. No 4a ponto, destaca-se ainda a grande importância da utilização do método em programas junto a grupos de mulheres – sobre seus próprios problemas de saúde e sexualidade, sobre seu lugar na família, das relações com filhos e com seu companheiro, sobre seu papel na sociedade, no sentido da igualdade de gênero, além de programas socioeducativos contra todo tipo de violência e discriminação, e a utilização dos ensinamentos de Freire sobre gênero nas escolas, a partir de seu livro Professora sim, tia não (1993). No 5a ponto, um olhar sobre a educação no campo, no mundo rural, talvez possamos constatar que o método de Paulo Freire tem sido o mais utilizado desde os anos 90. Trata-se do uso/aplicação ou readaptação do método pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. (GOHN, 2012, 2011, 2000a, 2000b, 1997). O método foi (e continua sendo) utilizado tanto em trabalhos da educação escolar – principalmente na alfabetização e em outros níveis da educação fundamental nas escolas do próprio MST – como nos cursos e demais atividades de formação de lideranças e de organização do trabalho nas cooperativas dos assentamentos. A educação popular, no Brasil e demais regiões da América Latina, nos anos de resistência aos regimes militares e no período da transição à democracia, teve uma natureza essencialmente sociopolítica, porque era um instrumento de mobilização e organização popular. Esse período gerou, além de inúmeros movimentos sociais populares na sociedade civil, que tiveram um papel decisivo para a mudança do regime político vigente, uma série de técnicas e metodologias de trabalho de campo, de natureza ativa e participativa. Destacam-se: o sociodrama, o teatro de comédias e pantomimas, jogos de papéis, dinâmicas grupais, produção de audiovisuais, vídeos populares, cartazes, cartilhas, leituras coletivas de textos, etc., em um jeito novo e livre de “fazer política” no cotidiano questionando a ordem dominante.
19 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. Alguns pesquisadores latino-americanos, adeptos dos métodos participativos nos anos 70 e 80, reviram suas abordagens, afirmando que, nos anos 90, as práticas educativas de conscientização durante mais de uma década: Alimentou e provocou mudanças na forma de fazer e pensar a educação de adultos e, mais especificamente, a educação de adultos dos setores populares [...] Tais necessidades foram concebidas como direitos dos cidadãos e deveres do Estado. [...] mas são poucos os países onde o Estado consegue responder a estas demandas[...] A conscientização em décadas passadas, como na atualidade em algumas experiências de educação popular e investigação participativa, não oferece alternativas sobre como satisfazer tais expectativas e demandas (GAJARDO, 1994, p. 278 e 274). Segunda essa autora, a sobreideologização do discurso político-pedagógico impediu uma articulação entre as demandas populares por educação e outras reivindicações básicas. O fracasso de algumas experiências de conscientização é atribuído aos vazios teóricos e às imprecisões conceptuais existentes nas mesmas. Lamentam-se a ausência de princípios educativos que pudessem operar como elementos de coesão social e a falta de clareza quanto ao papel do Estado e da sociedade civil, e indaga-se sobre quais seriam as reivindicações possíveis e o desenho de estratégias que possibilitassem aos grupos demandantes apropriar-se dos espaços que existem na sociedade (GAJARDO, 1994). Ou seja, a revisão da Educação Popular e a sua aproximação às políticas públicas levaram à retomada de certas práticas em que se espera que o “desenho” ou uma “boa estratégia” de uma proposta, programa ou projeto resolvam problemas da EP. Em relação ao Estado, os mesmos analistas reconhecem a sua importância como elemento-chave na definição e na formulação dos serviços educativos oferecidos aos setores populares. Destacam que a educação, enquanto uma das ênfases centrais nas políticas e nos discursos oficiais nos anos 90, criou um campo de negociação, de acordos e conflitos, em que o resultado depende da força dos diversos atores que participam. É interessante observar que essas
20 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. análises sobre a “governabilidade” da educação colocavam-na menos como um direito e mais como um serviço. Falava-se em forças dos atores, mas não se falava da força política deles para reverter o quadro de miséria e de exclusão social que as políticas neoliberais geraram em todo o continente latino- americano a partir dos anos de 1990. O paradigma teórico que passou a alicerçar as novas orientações é uma mistura de velho e novo (GOHN, 2014c). De velho, temos o retorno às teorias do interacionismo simbólico, a redescoberta do indivíduo e da psicologia social renovados. De novo, temos as modernas teorias da comunicação, da semiótica e da linguística. O interessante desse procedimento será a redefinição do sentido do processo de conscientização, antes centrado na política com P maiúsculo, utilizando metodologias mais inquisitivas, questionadoras do status quo, passando-se para um sentido da conscientização como processo de negociação de atores sociais em posições diferentes: quem ensina, quem aprende. A horizontalidade da relação é posta em questão. As novas orientações enfatizam um método de conscientização de ordem mais psicológica – de um lado, ele está centrado nos indivíduos, em sua cultura; de outro, trabalha o emocional, estimulando a expressão dos desejos e aspirações. Trata-se agora de um processo focado em uma mudança de comportamento e de atitudes, na incorporação de novos valores e práticas. A metodologia de trabalho é mais problematizadora no sentido da busca de formulações e soluções alternativas sustentáveis, e a interação é estimulada para o pensar coletivo sobre “como fazer”, “como resolver”, “como agir”, “como intervir a partir de um projeto, de uma ideia”. Sabemos que a conscientização não opera em um vazio, não é um processo individual, mas ocorre por etapas, em processos de interação do indivíduo em coletivos organizados.; Ela é um ato político. Não poderá ser vista e trabalhada como uma relação individual, isolada, centrada apenas no educador/educando,
21 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. descontextualizada de outras variáveis, tais como os valores que informam essa relação, o ambiente onde ocorre, o contexto do programa onde se desenrola. Estamos entendendo a conscientização como um processo transformador, que vislumbra, de um lado, mudanças estruturais que venham a promover os direitos de uma cidadania plena, isto é, a justiça social, a igualdade, a liberdade, fraternidade, solidariedade, etc., e, de outro lado, como um processo que atua sobre a consciência dos indivíduos, propiciando-lhes compreender o universo de valores, de símbolos e de códigos que permeiam sua realidade imediata, decodificando-os de forma a poder estabelecer diferenças entre aqueles que contribuem para a liberdade e autonomia dos indivíduos, enquanto seres humanos, e aqueles que os oprimem e aprisionam. Nesse segundo aspecto, os analistas da Educação Popular têm razão ao destacar que não se trata de um processo de simples absorção de conhecimentos ou informações vindos de fora para dentro. Trata-se de um processo de interação entre o que o indivíduo sabe – por herança cultural ou experiência vivenciada – e o que ele recebeu como estímulo – na interação gerada no próprio processo educativo. A mudança operada na metodologia de trabalho desenvolvida pela Educação Popular nos anos 90 passou de áreas problemas para áreas temáticas específicas na atuação em periferias carentes das grandes cidades. Nos anos 70/80, a EP atuava sobre um leque enorme de demandas dado pelos problemas de moradia/favelas e loteamentos clandestinos; falta de creches e escolas fundamentais; carência de transportes públicos e asfalto; ausência de postos de saúde e de profissionais para o seu atendimento; absoluta falta de segurança, postos policiais, ou locais próximos para a retirada de documentos; não existência de cemitérios; inexistência de varejões – postos de abastecimentos de gêneros alimentícios de primeira necessidade; além do não saneamento com esgotos, etc. Nos anos 90, a atuação da EP concentrou-se em áreas temáticas específicas: produção cooperada, educação infantil, escolar, saúde das mulheres, proteção do meio ambiente, cultura local, tradições culturais, lazer e
22 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. esporte para jovens e adolescentes, programas educativos para crianças fora do horário escolar, apoio escolar, etc. As novas ações são desenvolvidas com grupos sociais específicos – mulheres, crianças, jovens, idosos, comunidades indígenas, desempregados, pessoas portadoras de limitações físicas ou com doenças de risco, etc. Essa mudança alterou o sentido da ação social coletiva. As ações deixaram de ser uma meta externa a ser atingida nas áreas problemas – via a pressão sobre aqueles que coordenam ou detêm o poder de decisão –e passaram a ser metas que visam a operar mudanças nos próprios indivíduos nas áreas temáticas – para que eles revejam suas práticas e valores e se incorporem em coletivos propositivos –. Antes se reivindicava e se ficava à espera da resposta dos poderes constituídos ou da reação dos poderes públicos face às pressões. As ações coletivas eram ativas até certo ponto (organização, mobilização e pressão). Depois elas se estancavam na espera. Construíam-se na heroica resistência de seus demandantes: os oprimidos. Algumas se perdiam, pelo desânimo e pela descrença dos demandantes, dado o não atendimento das demandas pelos poderes públicos; outras mudavam de caráter porque seus componentes/participantes escolhiam outras vias de atuação, via partidos de esquerda ou ações conjuntas com os sindicatos; algumas ainda se transformaram em práticas emancipatórias que ainda persistem, sem perderem a radicalidade, mas se organizaram de outra forma, aproveitando todas as oportunidades políticas que foram surgindo nas brechas e nos espaços da conjuntura do país. De uma forma ampla, apesar da politização geral que as ações propiciaram em um passado recente, havia muitos problemas porque os indivíduos e grupos, sob a ação da Educação Popular, permaneciam muito dependentes de seus articuladores, coordenadores, das redes que estruturavam os trabalhos, etc. Poucos, de fato, atingiam a autonomia no pensar e no agir, ainda que, no conjunto, o resultado tenha sido significativo em termos de ganhos sociopolíticos, no sentido da conquista de espaços democráticos na sociedade
23 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. civil e política. De fato, não havia horizontalidade entre os participantes – não o tipo de horizontalidade a que aludem os revisores da EP, centrada na relação professor/aluno, educador/educando. A não horizontalidade estava basicamente entre os que programavam as ações e os que as executavam na base. Entre a base e os articuladores – nacionais/estaduais ou locais – e os outros membros da rede associativista. As hierarquias de poder nem sempre eram formais, mas usualmente informais. Mas todos as conheciam e as vivenciavam. Nos anos 90, em geral, predominou um estilo de atuação da Educação Popular em que as ações são instrumentalizadas/suportadas/estimuladas pelos educadores da EP (com seus projetos), pelas políticas públicas (com suas diretrizes e programas) e pelos organismos financiadores internacionais (que exigem percentuais ou cotas de aplicação dos empréstimos, em projetos sociais, etc.). Em consequência todos tiveram que reorientar suas atividades no sentido ativo/propositivo. Transformações no cenário do associativismo e na educação popular no novo século: novíssimos sujeitos em cena- os Indignados Há um novo cenário do associativismo civil no novo milênio: novos tipos de movimentos, novas demandas, novas identidades, novos repertórios (GOHN, 2013). Proliferam movimentos multi e pluriclassistas. Surgiram movimentos que ultrapassam as fronteiras da nação, são transnacionais, como o movimento alter ou antiglobalização, presente no Fórum Social Mundial. Eles atuam em redes conectadas via meios tecnológicos da sociedade da informação. As novas tecnologias, uso da Internet, e-mails, celulares, etc., são uma das novidades que alteraram as formas de associativismo existentes. Os movimentos globais, globalizantes ou transnacionais, como o Fórum Social Mundial, são lutas que atuam em redes sociopolíticas e culturais responsáveis pela globalização de
24 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. muitos movimentos sociais, regionais, nacionais ou transnacionais. Na realidade, esse fenômeno constitui a grande novidade deste novo milênio e foi estruturado ao longo dos anos 90. Na década de 80, esses movimentos estavam ainda embrionários, configurados enquanto redes sociais locais e nacionais de luta com pautas e demandas mais circunscritas territorialmente. A partir dos anos 90, várias lutas sociais se internacionalizaram rapidamente. Novos conflitos sociais eclodiram, abrangendo temáticas que vão da biodiversidade, do biopoder, das lutas e das demandas étnicas até às lutas religiosas de diferentes seitas e crenças. Nesta categoria, encontramos organizações que atuam em redes, como a CLOC – Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo, que não se estrutura como um movimento com sede, um corpo diretivo, etc. Atuam mais virtualmente, como uma rede, e novas pautas surgiram nas demandas e lutas. Eles colocam questões instigantes e completamente novas. Movimentos com reivindicações seculares, como a terra para produzir (MST) ou para viver seu modo de vida (indígenas). Movimentos identitários, reivindicatórios de direitos culturais que lutam pelas diferenças: étnicas, culturais, religiosas, nacionalidades, etc., expandiram-se. Movimentos comunitários de base, amalgamados por ideias e ideologias, foram enfraquecidos pelas novas formas de se fazer política, especialmente pelas novas estratégias dos governos, em todos os níveis da administração. Surgiram novos movimentos comunitaristas, organizados de cima para baixo, em função de programas e projetos sociais estimulados por políticas sociais governamentais. O Estado promoveu reformas, descentralizou operações de atendimento na área social, criou canais de mediação e inúmeros novos programas sociais. Institucionalizaram-se formas de atendimento às demandas. De um lado, observa-se que esse fato foi uma vitória porque se reconheceram demandas anteriores como direitos, inscrevendo-as em práticas da gestão pública. De outro, a forma como foram implementadas as novas políticas, ancoradas no
25 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. pragmatismo tecnocrático, resultou em que a maioria dos projetos sociais implementados passou a ter caráter fiscalizatório ou fazia parte de redes clientelistas e não de controle social de fato. As novas políticas do Estado globalizado priorizam os processos de inclusão social. Nos anos de 1980-1990, falava-se muito em cidadania, progressivamente, o termo foi sendo substituído por inclusão/exclusão. Vemos que as categorias que nomeiam os problemas sociais também se alteram ao longo da história. Acrescentem-se ao cenário acima as inúmeras ações e redes cidadãs que se apresentam como movimentos sociais, mas na realidade são organizações civis atuando em fóruns, conselhos, câmaras, consórcios, em escala local, regional, nacional, etc. Elas passam agora a ser analisadas sob outra rubrica – a da participação social institucionalizada. A participação nos conselhos, nas conferências nacionais e nas assembleias organizadas por esferas do poder público é outra arena no novo associativismo civil deste novo milênio. Essas novas formas atuam no campo das políticas públicas, que prosseguiram na focalização do atendimento aos usuários/cidadãos como redes de proteção para camadas em situação de vulnerabilidade socioeconômica (com inúmeros tipos de bolsas e auxílios financeiros) e programas de inclusão social para segmentos historicamente excluídos, como o PROUNI (Programa Universidade para Todos) no campo da educação. A educação formal passou a ser um requisito classificatório das pessoas ao mundo do trabalho, e a educação não formal (GOHN, 2010), um complemento na vida dos cidadãos, independentemente de classe ou camada social, por meio da participação em cursos, programas e projetos sociais desenvolvidos na sociedade civil com o apoio ou parcerias com órgãos públicos. Esses projetos, no meio popular, desenvolveram novas formas de associativismo civil. Muitos deles são também eixos de mobilização social, especialmente para a participação em eventos articulados no plano nacional, alguns organizados por entidades governamentais, a exemplo das conferências nacionais (educação, saúde, alimentação, etc.). As conferências nacionais
26 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. tornaram-se a forma principal de articular a participação da sociedade civil e, ao mesmo tempo, estabelecer acordos e marcos regulatórios. Elas se transformaram no suporte para dar legitimidade às políticas públicas no campo social. Portanto, olhando o cenário do associativismo civil brasileiro nas últimas décadas do século XX e comparando-o com o da atualidade, merecem destaque as diferenças nos processos educativos. Conforme assinalamos acima, durante os anos de resistência ao regime militar e de transição à democracia, o processo educativo desenvolvido nos movimentos tinha natureza essencialmente sociopolítica porque ele era um instrumento de mobilização e organização popular. Era um processo permanente de aprendizagem a partir da prática, geradora de processos organizativos e de consciência social nas classes populares. Na atualidade, os métodos e processos de construção das ações coletivas civis alteraram-se e os processos socioeducativos também. As pedagogias utilizadas nos movimentos e associações civis mudaram porque a conjuntura sociopolítica, econômica, cultural e tecnológica é outra. Predominam nos movimentos sociais manifestações, marchas e ocupações promovidas por coletivos organizados que convidam outros participantes online, via blogs e redes sociais como Facebook, etc. A participação nos eventos acontece via agregação ad hoc. De simpatizantes da causa, os sujeitos que vão aos atos de protesto poderão se tornar ativistas de um novo movimento social. A sensibilização primeira é para uma causa, vista como um problema social, seja a corrupção de políticos, a ganância de banqueiros ou o preconceito contra gays, etc. As manifestações, os atos são o chamariz, que poderão se transformar em motivação na vida dos sujeitos mobilizados. São ativistas, não militantes (GOHN, 2014a e 2014b). Registre-se que a maioria desses ativistas é formada por jovens pertencentes a camadas médias da população, e eles participam por suas identidades e
27 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. pertencimentos temáticos e não por lutas classistas ou sindicais. As marchas e manifestações atuais negam a política e o comportamento antiético de muitos políticos. As pedagogias alternativas continuam, não mais no estilo da educação popular das décadas anteriores, voltadas para a organização e o desenvolvimento da consciência social. Agora formas de participação online dos movimentos sociais convivem com formas de participação direta nas associações civis, onde há pedagogias baseadas em métodos focais, participação em oficinas e em projetos sociais, redes de cooperativas de geração de renda, cursos de curta duração, viagens e participação em grandes eventos e conferências. Tudo isso ocupa a maior parte da agenda dos participantes, organizados em movimentos ou associações civis nucleadas por projetos sociais. Aprendizagens e construção de saberes continuam a ser gerados. O sentido e o significado dessas aprendizagens, em termos de processos de mudança e de transformação social, são variados e necessitam ainda de avaliação, reflexão e análise. De toda forma, é importante diferenciar as ações coletivas advindas das associações civis das promovidas por movimentos sociais, no que se refere especialmente ao caráter das aprendizagens (GOHN, 2015). Os objetivos das ações coletivas, antes focadas no protesto e nas demandas por cidadania pelos movimentos, agora estão voltadas prioritariamente para os processos de inclusão social, processos esses mediados por ONGs e entidades do terceiro setor – são entidades civis sem fins lucrativos, com formação ideológica híbrida, que descartam a política e os conteúdos formativos de uma cultura política crítica, desenvolvendo conteúdos humanistas, de ações solidárias. Em consequência, ao falarmos do campo do associativismo brasileiro atual, temos sempre que usar o plural, porque não há um modelo ou uma forma hegemônica. Há uma pluralidade de formas, a maioria abriga-se em processos institucionalizados, que não tencionam o status quo vigente.
28 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. Em síntese, em um breve olhar sobre os movimentos sociais atuais, observam- se: movimentos transnacionais (anti e alterglobalização) em que o escopo das lutas ampliou-se para dimensões territoriais além do estado-nação; marchas contra a falta de ética e a corrupção mobilizaram pessoas nas principais capitais brasileiras de 2011 a 2017. Criaram-se movimentos e associações civis relacionados à questão da produção e da distribuição dos alimentos, etc. Os movimentos rurais se multiplicaram e abriram-se para ações transnacionais, em redes, como a Via Campesina. Antigos movimentos sociais, a exemplo da luta pela moradia ou luta pela terra, convivem com novos movimentos, organizados segundo múltiplas identidades – ser negro, mulher, idoso, jovem/adolescente, etc. (vide GOHN, 2017a). Lutas sociais por reconhecimento convivem com lutas pela redistribuição e acesso a bens e serviços. No novo contexto, o método de Paulo Freire continuou a ser uma referência, pois contém muitos dos princípios delineados nas reformulações da Educação Popular: ele destaca a cultura e a dialogicidade do ato educativo. Entretanto, sua utilização, a partir dos anos 90, ocorreu menos pela sua dimensão política- participante – que deu espaço aos movimentos populares e aos militantes de facções político-partidárias, nos anos 70-80, para realizarem um trabalho “de base”, gerador de consciências críticas no sentido pleno da transformação social, contestador da ordem social vigente – e mais pela sua dimensão de “empowerment” dos indivíduos e grupos de uma comunidade – gerando um processo de incentivo às potencialidades dos próprios indivíduos para melhorarem suas condições imediatas de vida, promovendo o “empoderamento” da comunidade, isto é, a capacidade de gerar processos de desenvolvimento autossustentável, com a mediação de agentes externos – os novos educadores, atores fundamentais na organização e no desenvolvimento dos projetos (GOHN, 2010).
29 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. O significado e o resultado do uso da dimensão do “empowerment” não têm um caráter universal, pois este tanto poderá, de fato, promover e impulsionar grupos e comunidades no sentido de seu crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas em sentido material e como seres humanos dotados de uma visão crítica da realidade social), como poderá promover simplesmente a pura integração dos excluídos, carentes e demandantes de bens elementares para a sobrevivência, serviços públicos, atenção pessoal, etc., em sistemas precários, que não contribuem para organizá-los, porque os atendem individualmente, em uma ciranda interminável de projetos de ações sociais assistenciais. Vários fatores determinam a diferenciação dos dois tipos de processos e seus resultados, os principais deles são a natureza, o caráter e o sentido do projeto social da(s) instituição(s) que promove(m) o processo de intervenção social. Outro fator é o tipo de movimento (ou, mais precisamente, qual movimento), examinando-se a sua trajetória histórica: origem, composição social, entidades articuladoras, redes sociais a que pertence, lutas que desenvolveu, projetos que elaborou, sucessos, perdas, etc. Portanto, o pensar, o refletir criticamente via aprendizagem gerada no processo da Educação Popular deslocou-se de sentido lentamente. Em geral, não se trata mais de processos de lutas no sentido de embates político-ideológicos contra uma dada ordem sociopolítica. Trata-se, agora, de aprender a gerar renda, aprender a se inserir em uma economia desregulamentada, em um mercado de trabalho sem direitos sociais. Os novíssimos movimentos sociais dos indignados que passaram a ocorrer em várias partes do mundo, e mais especificamente no Brasil a partir das manifestações nas ruas, em junho de 2013, alteram novamente o sentido do caráter educativo das práticas dos movimentos. A massiva participação de jovens, especialmente pertencentes às camadas médias da população, irá questionar os processos de formação vinculados a partidos, sindicatos ou
30 Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017. qualquer outra organização. Organizam-se em coletivos esses novos sujeitos históricos e fazem da multidão seu grupo de inclusão e não as políticas ou os projetos socioeducativos das ONGs e outros (GOHN, 2014a). Concluímos este artigo com a afirmação: a educação popular desempenhou diferentes papéis junto ao sujeito coletivo “movimento social”, ora atuando como agente de formação e conscientização (décadas de 1970-1980), ora atuando via o ‘empowerment’ da comunidade – visando a processos de inclusão social (1990-2010), ora sendo recriada pelos movimentos dos indignados nas marchas e manifestações da atualidade (década de 2010 em curso). No cenário atual, ocorrem mudanças no perfil e na formação dos educadores (as) populares. Ser apenas “ativista”, ter um largo currículo de militância ou de compromisso com certas lutas sociais não é mais suficiente para qualificar uma pessoa para o desempenho de suas tarefas. Exigem-se outras qualificações, tais como ser membro de redes sociais e ter habilidades comunicativas on line. Referências CEDI-Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Tempo e Presença, n. 272, 1993. DAM, A.V.; MARTINIC, S. Educación popular en América Latina. Santiago do Chile: CIDE, 1996. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. ______. Conscientização – teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 4. ed. São Paulo: Moraes, 1980. ______. Educação como prática da liberdade. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ______. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho D´Agua, 1993.
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