A educação popular de hoje tem a cara dos movimentos sociais (Gohn, 2009)

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

RETROSPECTIVA SOBRE A EDUCAÇÃO POPULAR E OS

MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL

Maria da Gloria Gohn

Resumo

Estudo sobre a temática da educação popular e sua relação com movimentos sociais

no debate sobre os sujeitos sociopolíticos do processo de mudança social, destacando

a obra de Paulo Freire. O texto se estrutura em três momentos, segundo a cronologia

histórica. Inicialmente, abordam-se as principais contribuições iniciais de Paulo Freire a

partir dos anos de 1960-1970, em seguida, focalizam-se transformações na conjuntura

socioeconômica e política no Brasil ao final dos anos de 1980 e nos de 1990 e suas

repercussões na Educação Popular; e o terceiro momento destaca o cenário brasileiro

neste século, especialmente na década de 2010, quando surgem novos tipos de

movimentos sociais e novas relações no campo da educação popular. O legado do

método de Paulo Freire neste cenário é um fio condutor que percorre o texto.

Palavras-chave: Educação popular; Movimentos sociais; Paulo Freire; Sujeitos

coletivos.

RETROSPECTIVE ON POPULAR EDUCATION AND SOCIAL MOVEMENTS

IN BRAZIL

Abstract

This paper does a study on the thematic of popular education and its relationship with

social movements in the debate on subjects socio political of the process of social

change, highlighting the work of Paulo Freire. The text is structured in three moments

according to the historical chronology. Initially addressed the main initial contributions of

Paulo Freire from the years of 1960-1970, then focus on transformations in the socio-

economic and political juncture in Brazil at the end of the years of 1980 and US of 1990

and its repercussions on Popular education; And the third moment highlights the

Brazilian scenario in this century, especially in the decade of 2010, when new types of

social movements arise, new relationships in the field of popular education. The legacy

Professora Titular Faculdade de Educação UNICAMP e Profa. Visitante Senior da UFABC.

Pesquisadora 1 A CNPq. Dra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo; Pos Doc em

Sociologia na New School University, N. York. Membro do board de coordenação do RC 47 da

International Sociological Association. Autora de 20 livros sobre as temáticas da participação

social, movimentos sociais, educação não formal, políticas públicas participativas.

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

of Paul Freire's method in this scenario is a conductor thread that travels through the

text.

Keywords: Popular education; Social movements; Paulo Freire; Collective subjects.

RETROSPECTIVA SOBRE LA EDUCACIÓN POPULAR Y LOS

MOVIMIENTOS SOCIALES EN BRASIL

Resumen

El artículo tiene la obra del educador Paulo Freire como hilo conductor del estudio sobre

la temática de la educación popular y su relación con movimientos sociales en el debate

sobre los sujetos sociopolíticos del proceso de cambio social. Se estructura

cronológicamente en tres momentos: las principales contribuciones de Paulo Freire en

los años 1960-1970; las transformaciones socioeconómicas y políticas en Brasil al final

de los años 1980 y en los 1990 y sus repercusiones en la Educación Popular; y el legado

del método de Paulo Freire en el escenario brasileño en siglo XXI, especialmente los

nuevos tipos de movimientos sociales, nuevas relaciones en el campo de la educación

popular en presente década.

Palabras claves: Educación popular; Movimientos sociales; Paulo Freire; Sujetos

colectivos.

Apresentação

Este texto objetiva resgatar alguns elementos sobre o papel da educação popular

na constituição de sujeitos sociopolíticos, especialmente junto aos movimentos

sociais no Brasil. A preocupação com a questão do sujeito advém da sua

importância no processo de mudança e transformação social. A categoria sujeito

confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e grupos sociais, transforma-os

de atores sociais, políticos e culturais em agentes conscientes de seu tempo, de

sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano, político, social.

Os sujeitos se constituem no processo de interação no cotidiano com outros

sujeitos, na sociedade civil e em instituições, privadas e públicas, estatais ou não

estatais. O texto divide-se em três partes. A primeira faz um resgate histórico da

educação popular (EP) no Brasil após 1950 e o papel de Paulo Freire nesse

processo. A segunda destaca mudanças operadas nas diferentes agendas

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

construídas ao redor da temática da educação popular e as metodologias e

ferramentas de sua operacionalização na década de 1990. A terceira discute um

sujeito sociopolítico específico os movimentos sociais e suas relações com a

educação popular, destacando processos ocorridos a partir deste novo século.

A principal fonte de dados deste texto advém de uma revisão crítica sobre a

produção bibliográfica dos anos 1980-2017 sobre educação popular e o papel

dos movimentos sociais na mesma. Concluiremos com a seguinte constatação:

a educação popular desempenhou diferentes papéis junto a este sujeito coletivo

- movimentos sociais, ora atuando como agente de formação e conscientização;

ora atuando via o ‘empowerment’ da comunidade– visando a processos de

inclusão social; ora sendo recriada pelos movimentos dos indignados nas

marchas e manifestações na atualidade.

Ao longo dos anos, estudando, analisando e escrevendo sobre o tema da

participação popular, sua importância nos sistemas democráticos, etc., tenho

observado que, sem sujeitos sociopolíticos críticos e atuantes, as mudanças

sociais e culturais são muito mais difíceis e lentas. Mas como se formam esses

sujeitos? Resolvi recorrer à área da educação e, nesta, retomar a famosa e

esquecida questão do processo de conscientização na formação de sujeitos

coletivos, tema bastante presente nos debates na área da Educação Popular nos

anos 1970 e 1980.

A preocupação com a questão do sujeito advém da sua importância no processo

de mudança e transformação social e da confusão ao redor desse termo,

utilizado segundo diferentes concepções e paradigmas epistemológicos: no

passado, já significou agente histórico de processos revolucionários, mas depois

essa interpretação foi negada por muitos com o estigma de ultrapassada; foi

substituído pela categoria ator social, assim como foi mistificado e banalizado.

Para nós, é uma categoria fundamental, que constitui e posiciona indivíduos na

história dos processos sociais, culturais e políticos de uma sociedade. A

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

categoria sujeito confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e aos grupos

sociais, transforma-os de atores sociais, políticos e culturais em agentes

conscientes de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como

ser humano, político, social. O sujeito é reconhecido objetivamente, e se

reconhece subjetivamente, como membro de uma classe, de uma etnia, parte

de um gênero, de uma nacionalidade e, muitas vezes, de uma religião, culto ou

crença. Os sujeitos se constituem no processo de interação com outros sujeitos,

em instituições, privadas e públicas, estatais ou não.

Educação Popular no Brasil a contribuição de Paulo Freire

Sabemos que o paradigma predominante da Educação Popular brasileira nos

anos 70/80 do século passado foi um conjunto de ideias políticas, filosóficas e

pedagógicas que nasceu com os Movimentos de Educação de Base e Cultura

Popular no final dos anos de 1950 e início de 1960 e que cresceu no interior da

resistência popular dos anos de 1970 e 1980. Segundo o Centro Ecumênico de

Documentação e Informação (CEDI), alguns pontos desse paradigma são:

A valorização da cultura popular, a centralidade atribuída ao diálogo, à ética e à

democracia no processo de construção de relações sociais mais justas; a

necessidade de ter como referência constante, ao longo de qualquer processo

pedagógico ou de mudança social, a realidade da vida dos educandos e a forma

como eles encaram esta realidade a relação entre conhecimento e politização,

entre educação e movimentos sociais; o estímulo à participação dos educandos

em todas as fases do processo educativo; a atenção ao pequeno, ao miúdo, ao

cotidiano; a tentativa de fazer com que o ensino seja também pesquisa, uma

investigação curiosa sobre a realidade. (Tempo e Presença, CEDI Centro

Ecumênico de Documentação e Informação, n. 272).

Em nosso entendimento, Paulo Freire é a síntese desse paradigma e isso

justifica sua escolha como o pensador que tomamos como ponto de partida neste

capítulo.

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Segundo Gadotti (1999), o método

de Paulo Freire representa, na América

Latina (e em outras partes do mundo também), um dos mais importantes

paradigmas da educação. Quando ele surgiu, significou uma alternativa

emancipatória e progressista face aos programas extraescolares predominantes

na época, patrocinados por agências norte-americanas e de outros países, com

programas de extensão rural, desenvolvimento de comunidade, etc. Esses

programas estavam sendo desenvolvidos na América Latina desde o término da

II Guerra Mundial. A obra de Paulo Freire e sua abordagem da realidade têm um

caráter multidisciplinar e contemplam diversas dimensões, destacando-se a do

educador-político. Freire postula uma educação libertadora e conscientizadora,

voltada para a geração de um processo de mudança na consciência dos

indivíduos, orientada para a transformação deles próprios e do meio social onde

vivem (FREIRE, 1970).

Inicialmente, o método estava mais centrado no tema da consciência, buscando

o desenvolvimento de uma consciência crítica. Posteriormente, os temas da

organização e do trabalho foram ganhando também relevância no próprio

processo de construção daquela consciência. Sabemos que o método foi

aplicado originalmente em programas de alfabetização de jovens e adultos da

área rural do Nordeste e ampliou-se para todo o território nacional, entre junho

de 1963 e o golpe militar de março de 1964; a partir dos anos 70, ele foi aplicado

em várias regiões do mundo em “trabalhos de base” em geral. Recordamos que

o método consistia em três momentos básicos: a investigação temática (busca

de palavras e temas-chave no universo vocabular do(s) aluno(s) e da sociedade

onde vive(m)), a tematização (a codificação/decodificação desses

Sabemos que a existência de um “método” na obra de Freire é polêmica, e ele mesmo

concordou certa vez, em uma entrevista em João Pessoa, com uma afirmação de que o método

não existia. Entretanto, muitos pesquisadores que seguem a teoria freiriana utilizam a expressão

e localizam no apêndice do livro A educação como prática da liberdade (FREIRE, 1979, 9. ed.)

a caracterização deste método. Não entraremos na polêmica e utilizaremos a expressão

“método” ao nos referirmos às propostas de Freire para a educação ou à fala de seus seguidores.

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temas/palavras e seu significado social) e a problematização (busca de

superação das primeiras impressões por uma visão crítica).

Destacamos que uma das maiores inovações do método de Freire, quando

surgiu e também atualmente, é o fato dele ter como base o diálogo. Portanto,

nos anos 60, quando o método foi elaborado, ele era moderno e avançado para

sua época, pois dava grande ênfase aos processos comunicativos. Sabe-se que

o tema da comunicação entrou na agenda contemporânea da comunidade dos

acadêmicos e dos planejadores públicos como “obrigatória” apenas nos anos 80,

dado o avanço dos meios de comunicação, das novas tecnologias e do papel da

mídia. Para Freire, “o diálogo consiste em uma relação horizontal e não vertical

entre as pessoas implicadas” (GADOTTI, 1999, p. 9). A reflexividade – tão

aclamada nas teorias dos anos 90 já estava colocada no método de Freire na

medida em que o oprimido só se liberta quando adquire a capacidade de refletir

sobre as condições de sua própria vida e conquista autonomia para realizar seu

destino histórico. A pedagogia do diálogo redefiniu a relação pedagógica na

medida em que reconfigurou a relação professor/aluno, educador/educando. O

professor é visto por Freire como alguém ao lado do aluno, um ser que busca e

também aprende; o aluno passa a ser sujeito das ações educativas e não mais

objeto, ganhando dignidade no processo educativo.

As experiências de Freire no Chile e na Guiné Bissau, ao final dos anos 60 e nos

anos 70, foram decisivas para a redefinição de algumas de suas concepções

iniciais, que destacavam mais as ações culturais e problematizadora como

geradoras da consciência. Freire passou a enfatizar também a importância da

organização (a ação organizada) e da consciência gerada via a experiência

profissional no processo produtivo de trabalho. Ele chamou a atenção dos

educadores na primeira fase do método, quando se procura descobrir o

universo vocabular do grupo para que atentem tanto para as palavras

carregadas de sentido existencial (cunho emocional) como para outras

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experiências típicas da vida cotidiana dos educandos, expressas por “formas de

falar particulares, palavras ligadas à experiência do grupo, especialmente à

experiência profissional” (FREIRE, 1980, p. 42).

Portanto, para Paulo Freire, a conscientização não significa um ato mecânico,

instantâneo, de tomada de consciência da realidade. Ela é um processo

construído por momentos onde se caminha do nível espontâneo e ingênuo, que

ocorre quando a pessoa se aproxima da realidade, para uma tomada de

consciência.

A conscientização não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação-

reflexão. [...] Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É

também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os

homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. [...] A

conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado, e o mundo,

de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está

baseada na relação consciência-mundo. [...] A conscientização [...] supõe, por sua

vez, o superar a falsa consciência, quer dizer, o estado de consciência semi-

intransitivo ou transitivo ingênuo, e uma melhor inserção crítica da pessoa

conscientizada numa realidade desmitificada (FREIRE, 1980, p. 26 e 90).

Na obra de Paulo Freire, a educação, como ato educativo de conhecimento e

como prática de liberdade, é, antes de tudo, conscientização. A educação é

pensada por ele como um ato político, um ato de conhecimento e um ato criador.

Seu ponto de partida é a realidade dada, que precisa ser transformada. Para que

ela possa ser libertadora, é vista como um processo longo; precisa construir nos

educadores(as) uma consciência histórica, o que demanda tempo.

Os postulados freireanos tiveram um papel fundamental na atividade educativa

gerada pelas atividades político-organizativas nos anos 70 e parte dos anos 80.

Foi um período em que, na América Latina em geral, e no Brasil em particular, a

Educação Popular se tornou sinônimo de movimento social popular, pois a

principal estratégia educativa utilizada, a conscientização, situava a prática

política e os processos de aprendizagem em uma mesma linha de objetivos., E

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essas duas ações se articulavam em um plano de ação política (MEJIA, 1991;

TORRES, 1994; DAM, 1996). Nos anos 70, esse plano teve um espaço

privilegiado para seu desenvolvimento, a saber: as ações das comunidades

eclesiais de base cristãs. O trabalho educativo de formação de lideranças gerou

também inúmeras iniciativas populares que contribuíram para a organização das

massas populares, especialmente urbanas, tais como: bibliotecas populares,

rádios comunitárias, centros culturais de bairros, grupos de teatro, inúmeros

cursos de formação em centros populares e operários, boletins e uma variada

gama de mídia alternativa, músicas e concursos populares, etc. A Educação

Popular era vista como parte integrante do processo organizativo das classes e

camadas populares, que era desenvolvido pela Igreja, pelo clero, pelas facções

políticas novas, e não somente uma tarefa dos partidos e sindicatos. Ao

contrário, em alguns casos, havia tensão e conflitos entre os programas de

alguns partidos de esquerda considerados como radicais e as novas

organizações populares, mais afeitas às orientações cristãs-neomarxistas ou

socialistas-libertárias (GOHN,1997). Um aspecto relevante da obra de Paulo

Freire é a sua utilização junto aos movimentos populares.

Mudanças nas análises sobre o papel do sujeito na história e a educação

popular na década de 1990

Resumindo, podemos observar, até a década de 1990, os seguintes pontos: 1a

a continuidade do uso do método Paulo Freire nos movimentos populares

urbanos que sobrevieram dos anos 80 especialmente na luta pela moradia; 2a

a continuidade do uso do método na área da educação, não apenas nos

programas de alfabetização de adultos desenvolvidos por entidades do terceiro

setor e por programas oficiais nacionais, mas também na área da educação não

formal (GOHN, 2011b), em trabalhos com crianças e jovens adolescentes em

situação de risco; 3a o uso do método em programas relativos ao meio

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ambiente nas escolas e junto às comunidades. A obra de Freire (1995) À sombra

desta mangueira tem sido uma referência sobre a ecologia. No 4a ponto,

destaca-se ainda a grande importância da utilização do método em programas

junto a grupos de mulheres sobre seus próprios problemas de saúde e

sexualidade, sobre seu lugar na família, das relações com filhos e com seu

companheiro, sobre seu papel na sociedade, no sentido da igualdade de gênero,

além de programas socioeducativos contra todo tipo de violência e

discriminação, e a utilização dos ensinamentos de Freire sobre gênero nas

escolas, a partir de seu livro Professora sim, tia não (1993). No 5a ponto, um olhar

sobre a educação no campo, no mundo rural, talvez possamos constatar que o

método de Paulo Freire tem sido o mais utilizado desde os anos 90. Trata-se do

uso/aplicação ou readaptação do método pelo MST Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem-Terra. (GOHN, 2012, 2011, 2000a, 2000b, 1997). O

método foi (e continua sendo) utilizado tanto em trabalhos da educação escolar

principalmente na alfabetização e em outros níveis da educação fundamental

nas escolas do próprio MST como nos cursos e demais atividades de formação

de lideranças e de organização do trabalho nas cooperativas dos

assentamentos.

A educação popular, no Brasil e demais regiões da América Latina, nos anos de

resistência aos regimes militares e no período da transição à democracia, teve

uma natureza essencialmente sociopolítica, porque era um instrumento de

mobilização e organização popular. Esse período gerou, além de inúmeros

movimentos sociais populares na sociedade civil, que tiveram um papel decisivo

para a mudança do regime político vigente, uma série de técnicas e metodologias

de trabalho de campo, de natureza ativa e participativa. Destacam-se: o

sociodrama, o teatro de comédias e pantomimas, jogos de papéis, dinâmicas

grupais, produção de audiovisuais, vídeos populares, cartazes, cartilhas, leituras

coletivas de textos, etc., em um jeito novo e livre de “fazer política” no cotidiano

questionando a ordem dominante.

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Alguns pesquisadores latino-americanos, adeptos dos todos participativos

nos anos 70 e 80, reviram suas abordagens, afirmando que, nos anos 90, as

práticas educativas de conscientização durante mais de uma década:

Alimentou e provocou mudanças na forma de fazer e pensar a educação de

adultos e, mais especificamente, a educação de adultos dos setores populares [...]

Tais necessidades foram concebidas como direitos dos cidadãos e deveres do

Estado. [...] mas são poucos os países onde o Estado consegue responder a estas

demandas[...] A conscientização em décadas passadas, como na atualidade em

algumas experiências de educação popular e investigação participativa, não

oferece alternativas sobre como satisfazer tais expectativas e demandas

(GAJARDO, 1994, p. 278 e 274).

Segunda essa autora, a sobreideologização do discurso político-pedagógico

impediu uma articulação entre as demandas populares por educação e outras

reivindicações básicas. O fracasso de algumas experiências de conscientização

é atribuído aos vazios teóricos e às imprecisões conceptuais existentes nas

mesmas. Lamentam-se a ausência de princípios educativos que pudessem

operar como elementos de coesão social e a falta de clareza quanto ao papel do

Estado e da sociedade civil, e indaga-se sobre quais seriam as reivindicações

possíveis e o desenho de estratégias que possibilitassem aos grupos

demandantes apropriar-se dos espaços que existem na sociedade (GAJARDO,

1994). Ou seja, a revisão da Educação Popular e a sua aproximação às políticas

públicas levaram à retomada de certas práticas em que se espera que o

“desenho” ou uma “boa estratégia” de uma proposta, programa ou projeto

resolvam problemas da EP.

Em relação ao Estado, os mesmos analistas reconhecem a sua importância

como elemento-chave na definição e na formulação dos serviços educativos

oferecidos aos setores populares. Destacam que a educação, enquanto uma das

ênfases centrais nas políticas e nos discursos oficiais nos anos 90, criou um

campo de negociação, de acordos e conflitos, em que o resultado depende da

força dos diversos atores que participam. É interessante observar que essas

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análises sobre a “governabilidade” da educação colocavam-na menos como um

direito e mais como um serviço. Falava-se em forças dos atores, mas não se

falava da força política deles para reverter o quadro de miséria e de exclusão

social que as políticas neoliberais geraram em todo o continente latino-

americano a partir dos anos de 1990.

O paradigma teórico que passou a alicerçar as novas orientações é uma mistura

de velho e novo (GOHN, 2014c). De velho, temos o retorno às teorias do

interacionismo simbólico, a redescoberta do indivíduo e da psicologia social

renovados. De novo, temos as modernas teorias da comunicação, da semiótica

e da linguística. O interessante desse procedimento será a redefinição do sentido

do processo de conscientização, antes centrado na política com P maiúsculo,

utilizando metodologias mais inquisitivas, questionadoras do status quo,

passando-se para um sentido da conscientização como processo de negociação

de atores sociais em posições diferentes: quem ensina, quem aprende. A

horizontalidade da relação é posta em questão. As novas orientações enfatizam

um método de conscientização de ordem mais psicológica de um lado, ele está

centrado nos indivíduos, em sua cultura; de outro, trabalha o emocional,

estimulando a expressão dos desejos e aspirações. Trata-se agora de um

processo focado em uma mudança de comportamento e de atitudes, na

incorporação de novos valores e práticas. A metodologia de trabalho é mais

problematizadora no sentido da busca de formulações e soluções alternativas

sustentáveis, e a interação é estimulada para o pensar coletivo sobre “como

fazer”, “como resolver”, “como agir”, “como intervir a partir de um projeto, de uma

ideia”.

Sabemos que a conscientização não opera em um vazio, não é um processo

individual, mas ocorre por etapas, em processos de interação do indivíduo em

coletivos organizados.; Ela é um ato político. Não poderá ser vista e trabalhada

como uma relação individual, isolada, centrada apenas no educador/educando,

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descontextualizada de outras variáveis, tais como os valores que informam essa

relação, o ambiente onde ocorre, o contexto do programa onde se desenrola.

Estamos entendendo a conscientização como um processo transformador, que

vislumbra, de um lado, mudanças estruturais que venham a promover os direitos

de uma cidadania plena, isto é, a justiça social, a igualdade, a liberdade,

fraternidade, solidariedade, etc., e, de outro lado, como um processo que atua

sobre a consciência dos indivíduos, propiciando-lhes compreender o universo de

valores, de símbolos e de códigos que permeiam sua realidade imediata,

decodificando-os de forma a poder estabelecer diferenças entre aqueles que

contribuem para a liberdade e autonomia dos indivíduos, enquanto seres

humanos, e aqueles que os oprimem e aprisionam. Nesse segundo aspecto, os

analistas da Educação Popular têm razão ao destacar que não se trata de um

processo de simples absorção de conhecimentos ou informações vindos de fora

para dentro. Trata-se de um processo de interação entre o que o indivíduo sabe

por herança cultural ou experiência vivenciada e o que ele recebeu como

estímulo na interação gerada no próprio processo educativo.

A mudança operada na metodologia de trabalho desenvolvida pela Educação

Popular nos anos 90 passou de áreas problemas para áreas temáticas

específicas na atuação em periferias carentes das grandes cidades. Nos anos

70/80, a EP atuava sobre um leque enorme de demandas dado pelos problemas

de moradia/favelas e loteamentos clandestinos; falta de creches e escolas

fundamentais; carência de transportes públicos e asfalto; ausência de postos de

saúde e de profissionais para o seu atendimento; absoluta falta de segurança,

postos policiais, ou locais próximos para a retirada de documentos; não

existência de cemitérios; inexistência de varejões postos de abastecimentos

de gêneros alimentícios de primeira necessidade; além do não saneamento com

esgotos, etc. Nos anos 90, a atuação da EP concentrou-se em áreas temáticas

específicas: produção cooperada, educação infantil, escolar, saúde das

mulheres, proteção do meio ambiente, cultura local, tradições culturais, lazer e

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

esporte para jovens e adolescentes, programas educativos para crianças fora do

horário escolar, apoio escolar, etc. As novas ações são desenvolvidas com

grupos sociais específicos mulheres, crianças, jovens, idosos, comunidades

indígenas, desempregados, pessoas portadoras de limitações físicas ou com

doenças de risco, etc. Essa mudança alterou o sentido da ação social coletiva.

As ações deixaram de ser uma meta externa a ser atingida nas áreas problemas

via a pressão sobre aqueles que coordenam ou detêm o poder de decisão e

passaram a ser metas que visam a operar mudanças nos próprios indivíduos nas

áreas temáticas para que eles revejam suas práticas e valores e se incorporem

em coletivos propositivos . Antes se reivindicava e se ficava à espera da

resposta dos poderes constituídos ou da reação dos poderes públicos face às

pressões. As ações coletivas eram ativas até certo ponto (organização,

mobilização e pressão). Depois elas se estancavam na espera. Construíam-se

na heroica resistência de seus demandantes: os oprimidos. Algumas se perdiam,

pelo desânimo e pela descrença dos demandantes, dado o não atendimento das

demandas pelos poderes públicos; outras mudavam de caráter porque seus

componentes/participantes escolhiam outras vias de atuação, via partidos de

esquerda ou ações conjuntas com os sindicatos; algumas ainda se

transformaram em práticas emancipatórias que ainda persistem, sem perderem

a radicalidade, mas se organizaram de outra forma, aproveitando todas as

oportunidades políticas que foram surgindo nas brechas e nos espaços da

conjuntura do país.

De uma forma ampla, apesar da politização geral que as ações propiciaram em

um passado recente, havia muitos problemas porque os indivíduos e grupos, sob

a ação da Educação Popular, permaneciam muito dependentes de seus

articuladores, coordenadores, das redes que estruturavam os trabalhos, etc.

Poucos, de fato, atingiam a autonomia no pensar e no agir, ainda que, no

conjunto, o resultado tenha sido significativo em termos de ganhos

sociopolíticos, no sentido da conquista de espaços democráticos na sociedade

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civil e política. De fato, não havia horizontalidade entre os participantes não o

tipo de horizontalidade a que aludem os revisores da EP, centrada na relação

professor/aluno, educador/educando. A não horizontalidade estava basicamente

entre os que programavam as ações e os que as executavam na base. Entre a

base e os articuladores nacionais/estaduais ou locais e os outros membros

da rede associativista. As hierarquias de poder nem sempre eram formais, mas

usualmente informais. Mas todos as conheciam e as vivenciavam.

Nos anos 90, em geral, predominou um estilo de atuação da Educação Popular

em que as ações são instrumentalizadas/suportadas/estimuladas pelos

educadores da EP (com seus projetos), pelas políticas públicas (com suas

diretrizes e programas) e pelos organismos financiadores internacionais (que

exigem percentuais ou cotas de aplicação dos empréstimos, em projetos sociais,

etc.). Em consequência todos tiveram que reorientar suas atividades no sentido

ativo/propositivo.

Transformações no cenário do associativismo e na educação popular no

novo século: novíssimos sujeitos em cena- os Indignados

um novo cenário do associativismo civil no novo milênio: novos tipos de

movimentos, novas demandas, novas identidades, novos repertórios (GOHN,

2013). Proliferam movimentos multi e pluriclassistas. Surgiram movimentos que

ultrapassam as fronteiras da nação, são transnacionais, como o movimento alter

ou antiglobalização, presente no Fórum Social Mundial. Eles atuam em redes

conectadas via meios tecnológicos da sociedade da informação. As novas

tecnologias, uso da Internet, e-mails, celulares, etc., são uma das novidades que

alteraram as formas de associativismo existentes. Os movimentos globais,

globalizantes ou transnacionais, como o Fórum Social Mundial, são lutas que

atuam em redes sociopolíticas e culturais responsáveis pela globalização de

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muitos movimentos sociais, regionais, nacionais ou transnacionais. Na realidade,

esse fenômeno constitui a grande novidade deste novo milênio e foi estruturado

ao longo dos anos 90. Na década de 80, esses movimentos estavam ainda

embrionários, configurados enquanto redes sociais locais e nacionais de luta

com pautas e demandas mais circunscritas territorialmente. A partir dos anos 90,

várias lutas sociais se internacionalizaram rapidamente. Novos conflitos sociais

eclodiram, abrangendo temáticas que vão da biodiversidade, do biopoder, das

lutas e das demandas étnicas até às lutas religiosas de diferentes seitas e

crenças. Nesta categoria, encontramos organizações que atuam em redes,

como a CLOC Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo,

que não se estrutura como um movimento com sede, um corpo diretivo, etc.

Atuam mais virtualmente, como uma rede, e novas pautas surgiram nas

demandas e lutas. Eles colocam questões instigantes e completamente novas.

Movimentos com reivindicações seculares, como a terra para produzir (MST) ou

para viver seu modo de vida (indígenas). Movimentos identitários,

reivindicatórios de direitos culturais que lutam pelas diferenças: étnicas,

culturais, religiosas, nacionalidades, etc., expandiram-se. Movimentos

comunitários de base, amalgamados por ideias e ideologias, foram

enfraquecidos pelas novas formas de se fazer política, especialmente pelas

novas estratégias dos governos, em todos os níveis da administração. Surgiram

novos movimentos comunitaristas, organizados de cima para baixo, em função

de programas e projetos sociais estimulados por políticas sociais

governamentais.

O Estado promoveu reformas, descentralizou operações de atendimento na área

social, criou canais de mediação e inúmeros novos programas sociais.

Institucionalizaram-se formas de atendimento às demandas. De um lado,

observa-se que esse fato foi uma vitória porque se reconheceram demandas

anteriores como direitos, inscrevendo-as em práticas da gestão pública. De

outro, a forma como foram implementadas as novas políticas, ancoradas no

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pragmatismo tecnocrático, resultou em que a maioria dos projetos sociais

implementados passou a ter caráter fiscalizatório ou fazia parte de redes

clientelistas e não de controle social de fato. As novas políticas do Estado

globalizado priorizam os processos de inclusão social. Nos anos de 1980-1990,

falava-se muito em cidadania, progressivamente, o termo foi sendo substituído

por inclusão/exclusão. Vemos que as categorias que nomeiam os problemas

sociais também se alteram ao longo da história.

Acrescentem-se ao cenário acima as inúmeras ações e redes cidadãs que se

apresentam como movimentos sociais, mas na realidade são organizações civis

atuando em fóruns, conselhos, câmaras, consórcios, em escala local, regional,

nacional, etc. Elas passam agora a ser analisadas sob outra rubrica a da

participação social institucionalizada. A participação nos conselhos, nas

conferências nacionais e nas assembleias organizadas por esferas do poder

blico é outra arena no novo associativismo civil deste novo milênio. Essas

novas formas atuam no campo das políticas públicas, que prosseguiram na

focalização do atendimento aos usuários/cidadãos como redes de proteção para

camadas em situação de vulnerabilidade socioeconômica (com inúmeros tipos

de bolsas e auxílios financeiros) e programas de inclusão social para segmentos

historicamente excluídos, como o PROUNI (Programa Universidade para Todos)

no campo da educação. A educação formal passou a ser um requisito

classificatório das pessoas ao mundo do trabalho, e a educação não formal

(GOHN, 2010), um complemento na vida dos cidadãos, independentemente de

classe ou camada social, por meio da participação em cursos, programas e

projetos sociais desenvolvidos na sociedade civil com o apoio ou parcerias com

órgãos públicos. Esses projetos, no meio popular, desenvolveram novas formas

de associativismo civil. Muitos deles são também eixos de mobilização social,

especialmente para a participação em eventos articulados no plano nacional,

alguns organizados por entidades governamentais, a exemplo das conferências

nacionais (educação, saúde, alimentação, etc.). As conferências nacionais

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

tornaram-se a forma principal de articular a participação da sociedade civil e, ao

mesmo tempo, estabelecer acordos e marcos regulatórios. Elas se

transformaram no suporte para dar legitimidade às políticas públicas no campo

social.

Portanto, olhando o cenário do associativismo civil brasileiro nas últimas

décadas do século XX e comparando-o com o da atualidade, merecem destaque

as diferenças nos processos educativos. Conforme assinalamos acima, durante

os anos de resistência ao regime militar e de transição à democracia, o processo

educativo desenvolvido nos movimentos tinha natureza essencialmente

sociopolítica porque ele era um instrumento de mobilização e organização

popular. Era um processo permanente de aprendizagem a partir da prática,

geradora de processos organizativos e de consciência social nas classes

populares.

Na atualidade, os métodos e processos de construção das ações coletivas civis

alteraram-se e os processos socioeducativos também. As pedagogias utilizadas

nos movimentos e associações civis mudaram porque a conjuntura sociopolítica,

econômica, cultural e tecnológica é outra. Predominam nos movimentos sociais

manifestações, marchas e ocupações promovidas por coletivos organizados que

convidam outros participantes online, via blogs e redes sociais como Facebook,

etc. A participação nos eventos acontece via agregação ad hoc. De

simpatizantes da causa, os sujeitos que vão aos atos de protesto poderão se

tornar ativistas de um novo movimento social. A sensibilização primeira é para

uma causa, vista como um problema social, seja a corrupção de políticos, a

ganância de banqueiros ou o preconceito contra gays, etc. As manifestações, os

atos são o chamariz, que poderão se transformar em motivação na vida dos

sujeitos mobilizados. São ativistas, não militantes (GOHN, 2014a e 2014b).

Registre-se que a maioria desses ativistas é formada por jovens pertencentes a

camadas médias da população, e eles participam por suas identidades e

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Movimento-Revista de Educação, Niterói, ano 4, n.7, p.10-32, jul./dez. 2017.

pertencimentos temáticos e não por lutas classistas ou sindicais. As marchas e

manifestações atuais negam a política e o comportamento antiético de muitos

políticos. As pedagogias alternativas continuam, não mais no estilo da educação

popular das décadas anteriores, voltadas para a organização e o

desenvolvimento da consciência social. Agora formas de participação online dos

movimentos sociais convivem com formas de participação direta nas

associações civis, onde pedagogias baseadas em métodos focais,

participação em oficinas e em projetos sociais, redes de cooperativas de geração

de renda, cursos de curta duração, viagens e participação em grandes eventos

e conferências. Tudo isso ocupa a maior parte da agenda dos participantes,

organizados em movimentos ou associações civis nucleadas por projetos

sociais. Aprendizagens e construção de saberes continuam a ser gerados. O

sentido e o significado dessas aprendizagens, em termos de processos de

mudança e de transformação social, são variados e necessitam ainda de

avaliação, reflexão e análise. De toda forma, é importante diferenciar as ações

coletivas advindas das associações civis das promovidas por movimentos

sociais, no que se refere especialmente ao caráter das aprendizagens (GOHN,

2015).

Os objetivos das ações coletivas, antes focadas no protesto e nas demandas por

cidadania pelos movimentos, agora estão voltadas prioritariamente para os

processos de inclusão social, processos esses mediados por ONGs e entidades

do terceiro setor são entidades civis sem fins lucrativos, com formação

ideológica híbrida, que descartam a política e os conteúdos formativos de uma

cultura política crítica, desenvolvendo conteúdos humanistas, de ações

solidárias. Em consequência, ao falarmos do campo do associativismo brasileiro

atual, temos sempre que usar o plural, porque não há um modelo ou uma forma

hegemônica. Há uma pluralidade de formas, a maioria abriga-se em processos

institucionalizados, que não tencionam o status quo vigente.

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Em síntese, em um breve olhar sobre os movimentos sociais atuais, observam-

se: movimentos transnacionais (anti e alterglobalização) em que o escopo das

lutas ampliou-se para dimensões territoriais além do estado-nação; marchas

contra a falta de ética e a corrupção mobilizaram pessoas nas principais capitais

brasileiras de 2011 a 2017. Criaram-se movimentos e associações civis

relacionados à questão da produção e da distribuição dos alimentos, etc. Os

movimentos rurais se multiplicaram e abriram-se para ações transnacionais, em

redes, como a Via Campesina. Antigos movimentos sociais, a exemplo da luta

pela moradia ou luta pela terra, convivem com novos movimentos, organizados

segundo múltiplas identidades ser negro, mulher, idoso, jovem/adolescente,

etc. (vide GOHN, 2017a). Lutas sociais por reconhecimento convivem com lutas

pela redistribuição e acesso a bens e serviços.

No novo contexto, o método de Paulo Freire continuou a ser uma referência, pois

contém muitos dos princípios delineados nas reformulações da Educação

Popular: ele destaca a cultura e a dialogicidade do ato educativo. Entretanto, sua

utilização, a partir dos anos 90, ocorreu menos pela sua dimensão política-

participante que deu espaço aos movimentos populares e aos militantes de

facções político-partidárias, nos anos 70-80, para realizarem um trabalho “de

base”, gerador de consciências críticas no sentido pleno da transformação

social, contestador da ordem social vigente e mais pela sua dimensão de

“empowerment” dos indivíduos e grupos de uma comunidade gerando um

processo de incentivo às potencialidades dos próprios indivíduos para

melhorarem suas condições imediatas de vida, promovendo o “empoderamento”

da comunidade, isto é, a capacidade de gerar processos de desenvolvimento

autossustentável, com a mediação de agentes externos os novos educadores,

atores fundamentais na organização e no desenvolvimento dos projetos (GOHN,

2010).

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O significado e o resultado do uso da dimensão do “empowerment” não têm um

caráter universal, pois este tanto poderá, de fato, promover e impulsionar grupos

e comunidades no sentido de seu crescimento, autonomia, melhora gradual e

progressiva de suas vidas em sentido material e como seres humanos dotados

de uma visão crítica da realidade social), como poderá promover simplesmente

a pura integração dos excluídos, carentes e demandantes de bens elementares

para a sobrevivência, serviços públicos, atenção pessoal, etc., em sistemas

precários, que não contribuem para organizá-los, porque os atendem

individualmente, em uma ciranda interminável de projetos de ações sociais

assistenciais. Vários fatores determinam a diferenciação dos dois tipos de

processos e seus resultados, os principais deles são a natureza, o caráter e o

sentido do projeto social da(s) instituição(s) que promove(m) o processo de

intervenção social. Outro fator é o tipo de movimento (ou, mais precisamente,

qual movimento), examinando-se a sua trajetória histórica: origem, composição

social, entidades articuladoras, redes sociais a que pertence, lutas que

desenvolveu, projetos que elaborou, sucessos, perdas, etc.

Portanto, o pensar, o refletir criticamente via aprendizagem gerada no processo

da Educação Popular deslocou-se de sentido lentamente. Em geral, não se trata

mais de processos de lutas no sentido de embates político-ideológicos contra

uma dada ordem sociopolítica. Trata-se, agora, de aprender a gerar renda,

aprender a se inserir em uma economia desregulamentada, em um mercado de

trabalho sem direitos sociais.

Os novíssimos movimentos sociais dos indignados que passaram a ocorrer em

várias partes do mundo, e mais especificamente no Brasil a partir das

manifestações nas ruas, em junho de 2013, alteram novamente o sentido do

caráter educativo das práticas dos movimentos. A massiva participação de

jovens, especialmente pertencentes às camadas médias da população, irá

questionar os processos de formação vinculados a partidos, sindicatos ou

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qualquer outra organização. Organizam-se em coletivos esses novos sujeitos

históricos e fazem da multidão seu grupo de inclusão e não as políticas ou os

projetos socioeducativos das ONGs e outros (GOHN, 2014a).

Concluímos este artigo com a afirmação: a educação popular desempenhou

diferentes papéis junto ao sujeito coletivo “movimento social”, ora atuando como

agente de formação e conscientização (décadas de 1970-1980), ora atuando via

o ‘empowerment’ da comunidade – visando a processos de inclusão social

(1990-2010), ora sendo recriada pelos movimentos dos indignados nas marchas

e manifestações da atualidade (década de 2010 em curso). No cenário atual,

ocorrem mudanças no perfil e na formação dos educadores (as) populares. Ser

apenas “ativista”, ter um largo currículo de militância ou de compromisso com

certas lutas sociais não é mais suficiente para qualificar uma pessoa para o

desempenho de suas tarefas. Exigem-se outras qualificações, tais como ser

membro de redes sociais e ter habilidades comunicativas on line.

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Recebido em: 11.10.2017

Aceito em: 25.10.2017