O que é um causo

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POR: Beatriz Vichessi
01 de Dezembro | 2012

O que é um causo

O povo mineiro tem a fama de ser bom contador de causos, histórias que nem sempre é possível comprovar se são verdadeiras - e aí reside o encanto delas. Saborosas, fantásticas, às vezes amedrontadoras, às vezes engraçadas, e passadas de geração em geração, elas são contadas por vozes que, com sotaque e expressões interioranas, entonação e ritmo certos, capturam a atenção.

Pois foi em Minas que os causos ganharam terreno para além de sítios, casas, bares e armarinhos e foram parar nas salas de 5º ano de duas escolas: a EM Professor Francisco Bruno Ribeiro, em Marmelópolis, a 460 quilômetros de Belo Horizonte, e a Fundação Torino, na capital. Em ambas, o trabalho tinha como objetivo desafiar os estudantes a registrar por escrito histórias apresentadas oralmente - ou seja, retextualizá-las.

Esse procedimento envolve operações complexas que interferem tanto nas questões notacionais como no sentido, segundo Luiz Antônio Marcuschi, no livro Da Fala para a Escrita - Processos de Retextualização (136 págs., Ed. Cortez, tel. 11/3611-9616, 28 reais). À primeira vista, pode parecer que a retextualização implica em melhorar o material, transformando o texto oral (considerado por muitos descontrolado e caótico) em escrito (aparentemente mais controlado e organizado). Mas não é isso. O processo tem a ver com a passagem de uma ordem a outra, sendo que nenhuma deve ser considerada a melhor ou a mais válida: elas cumprem funções diferentes e são mais (ou menos) adequadas de acordo com a situação.

Para realizar bem a tarefa com os causos, o primeiro passo é trabalhar a leitura de bons modelos. Assim, as crianças conhecem as características do gênero e os recursos utilizados pelos autores. Essa etapa, anterior à busca de boas histórias, também é importante para que a turma não encare esse tipo de texto como algo inferior a contos, notícias e outro gêneros. O renomado escritor Graciliano Ramos (1852-1953), por exemplo, escreveu causos. Leia no quadro da página à esquerda um trecho de Primeira Aventura de Alexandre. Note que o autor preserva marcas informais da fala e do vocabulário do povo do interior (como "nhor" e "vossemecê"), não despreza repetições de termos - uma característica importante da oralidade -, faz suspense antes de concluir ("Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão?") e prioriza o tempo passado.

Trecho da primeira aventura

(...) A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai:  - "Vocês não viram por aí o Xandu?" - "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" - "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" - "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" - "Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato (...). E achou o roteiro dela?" - "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa, porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. (...)" (...) Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo (...) foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não. Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

- Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Gravar os causos para guardar os detalhes e a entonação Terminadas as leituras de apreciação e as análises, é hora de organizar a coleta do material. Para o grupo de Marmelópolis, bastou que os estudantes pensassem em pessoas que viviam no entorno e que sabiam bons causos. "Nossa gente traz na memória cenas vividas por ela ou contadas por seus antepassados", diz a professora da turma, Dora Edna Pereira. Coisa de cidade do interior. Já para as crianças da capital, a pesquisa pediu um pouco mais de empenho. Elas fizeram algumas incursões a locais distantes da Fundação Torino e procuraram conhecidos e familiares mais velhos, que viveram ou ainda vivem no interior. "A turma tinha pouco contato com o vocabulário típico que tem presença marcante na história oral mineira. Era importante conhecer outro modo de falar que não a linguagem formal e o espaço que o gênero tem", diz a professora Cristiane Horta. Como se nota, explorar o gênero não requer morar no interior ou na zona rural. Orientar a meninada a gravar - com celular, filmadora ou gravador - os causos é importante. Só assim a ideia da retextualização faz sentido. Apesar de a escuta atenta ser imprescindível, nas gravações ficam registrados os detalhes e as informações importantes, que podem se perder na memória, de acordo com Sandoval Santos, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). "Tal como a entonação da voz e as pausas, esses elementos que dão o clima do texto podem ser sinalizados com interrogações e exclamações. Se não existe um material para ser consultado, o produto pode ser prejudicado", explica. Outra recomendação importante: não vale interromper o narrador enquanto ele conta o causo. "Perguntas e observações devem ficar para o fim. Se não, vira uma entrevista", explica Santos. Com o material em mãos, a garotada pode dar o primeiro passo na retextualização: a transcrição. Ela traz à tona as diferenças entre o que se fala e o que se escreve. É o registro fiel do que foi contado, ao preservar toda e qualquer palavra narrada, inclusive repetições, marcadores de fala ("né", entre outros), termos informais (como "inté"), inadequações de conjugação verbal ("nós cheguemos", por exemplo) e conter indicações de pausa na fala, que podem ser representadas com reticências entre parênteses.

Por ser algo demorado, é possível pedir que os alunos transcrevam somente um trecho da gravação, para aprenderem como se faz, depois apresentar a eles a transcrição completa, feita por você, e por fim solicitar dedicação à análise do material (leia na próxima página a transcrição de um causo de um estudante da Fundação Torino). "Eles terão de refletir sobre o que é necessário para transformar o relato oral em um texto escrito sem descaracterizar o gênero", diz Denise Guilherme, formadora de professores. Ela sugere instigar as crianças a pensar em alguns aspectos, considerando cada causo em particular:

- Como substituir os termos repetidos que prejudicam o desenrolar do causo? - Quais palavras empregadas por escritores podem ser usadas para melhorar os causos sem descaracterizá-los? - É preciso reordenar os parágrafos para que a produção ganhe coerência? - Quais marcas de oralidade devem ser mantidas para não alterar o que foi contado e quais são desnecessárias? - O que é mais adequado: escrever o texto em primeira pessoa, representando quem contou o causo, ou em terceira pessoa, considerando um narrador? Denise também enfatiza a importância de tomar decisões que têm a ver com os leitores: eles compreenderão termos e expressões regionais? Qual a necessidade de organizar um glossário? Em Marmelópolis, Dora realizou o trabalho de organização da transcrição e de revisão em duas etapas: primeiro, a classe toda se debruçou sobre o texto de um colega. Foram discutidos coletivamente diversos aspectos a fim de melhorá-lo. Ouvir o causo lido em voz alta contribuiu para as crianças pensarem na clareza, por exemplo. Depois, em duplas, elas se dedicaram ao causo que haviam pesquisado em parceria com um colega. "Orientei a revisão ortográfica. Se necessário, o dicionário poderia ser consultado", explica a professora. Outro aspecto que mereceu atenção foi a concordância verbal. Embora a maioria dos verbos se referisse ao passado, como é típico do gênero, vários foram escritos no futuro pelos alunos. Um sinal claro de que o grupo confundiu a pronúncia e o uso de AM com ÃO. Por exemplo: "(...) ficarão morrendo de medo" (em vez de ficaram).

Encerrada a tarefa, o 5º ano da EM Professor Francisco Bruno Ribeiro e o da Fundação Torino aprenderam as diferenças entre o discurso oral e o escrito como deve ser: estudando um gênero, suas particularidades e funções comunicativas, sem deixar a gramática de lado.

Análise da transcrição de um causo

O que é um causo

"Pessoar ... condo o assunto é lobisomi ... Cêis sabe cumo são as coisa, né? A gente condo vai fazer uma atividade pra tentá discubrir quem é o lobisomi, num podi alarido. Então ... tava teno lobisomi lá em casa ... condo a gente era pititico. E quem era o lobisomi? Ninguém sabia. meu pai disse assim eu voupegá esse miserável. Na cabeça dele, ele fez um dispositivo no galinheiro e o galinheiro era coberto. Num dava pra sair por cima, né? Era tela. Na hora que o lobisomi entrô, ele ficô preso lá dentro. Aí gente, gente du céu... Cêis num faz ideia quem era o tar do lobisomi ... Era o Luizão, marido da minha irmã. É, era ele o lobisomi, gente ... E aí, como é que ia fazê? Meu pai fez de tudo para ele conseguir escapar sem que arguém discubrisse o que havia acuntecido e sem que o Luizão discubrisse que meu pai soubesse tamém ... E assim foi feito. O Luizão conseguiu fugir... Tava lá peladão, porque ele disvirou, né? Aí, vortou meio chatiadão, meio injuriado ... Na próxima sexta-feira, meu pai falou, te pego! Aí meu pai saiu atrais dele ... Ele chegou num lugar e tirô toda roupa ... Espojô no chão ... E já saiu virado lobisomi ... E meu pai foi lá e carmamente e deu nó em todas as mangas de camisa, perna da carça e deu nó em tudo, que é simpatia pro caboclo nunca mais vortá a vortá a ser lobisomi. Hoje ele é um homi bão, trabaiadô.. Nunca mais virô lobisomi. Acredite se quisé. Ocorreu na nossa famia." 

termos informais

marcadores de fala

pausas na narração

falas de um personagem

conjugações verbais

trecho que indica suspense

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