Entre o corte da espada e o perfume da rosa o que significa

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ENTRE O CORTE DA ESPADA E O PERFUME DA ROSA: uma estética

da existência no rap dos Racionais Mc’s

Cintia Sanmartin Fernandes

1

, Micael Herschmann

2

& Gabriel

Gutierrez

3

INTRODUÇÃO

Além de manifestação cultural urbana típica das metrópoles contemporâneas, o Hip Hop é também uma forma estética rica no que se refere à discussão sobre as aproximações entre arte e vida. Tal relação pode ser notada na forma como os elementos que compõem o movimento - a música (rap), as artes visuais (grafite) e a dança (break) – expressam determinados estilos de vida associados à cultura de rua. No caso do rap – seu elemento mais conhecido – tal correspondência é ainda mais visível. O dialeto falado na vida cotidiana das periferias das grandes cidades é a matéria prima do artesanato poético dos rappers (Mc’s), que “cantam” o que vivem através de uma oralidade cronística, cheia de curvas e códigos cifrados. No Hip Hop, formas de viver e forma de fazer arte estão frequentemente ligadas.

Originariamente, o Hip Hop nasce nas festas de quarteirão da parte sul do Bronx nova-iorquino dos anos 1970, nas quais os MC’s (mestres de cerimônias),

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio

de Janeiro.

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

3 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado

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inspirados pela gíria afro-americana denominada “Jive talkin” de alguns radialistas jamaicanos, são acompanhados por batidas extraídas da música produzida no âmbito cultural do Atlântico Negro (GILROY, 2001). Com microfone na mão, estes MC’s animam as festas e contam histórias das suas localidades, através de um estilo de falar que é altamente musical.A partir desta origem, o rap desenvolve-se operando, ao longo do tempo, precisamente esta conjugação entre discurso musical verbal e não verbal (o fluxo discursivo do MC e as batidas dos DJs) e um certo tipo de comportamento social. Ritmo intenso e falação sinuosa são as senhas para vivenciar o “proceder” do rap.

O ritmo deste discurso não verbal é gerado pelo uso de dispositivos tecnológicos de áudio operados por DJs que compõem uma refinada bricolagem, conjugando amostras de sons cotidianos ouvidos nos guetos das cidades com fragmentos retirados da produção musical da Diáspora africana. O texto falado4 pelo MC também é altamente ritmado, e desenvolve uma forma própria de rimar, através do diálogo com os beats executado pelos Djs. Em ambos os casos, a música é um estilo de vida.

Esta potencial relação entre arte e vida dentro do universo do Hip Hop torna-se ainda mais intensa a partir da intervenção do DJ Afrika Baambata junto ao movimento. É ele quem introduz de forma mais organizada no processo de constituição do HH5 o que se convencionaria chamar depois de o “quinto elemento” do movimento: o conhecimento. Segundo Teperman (2015), a posse6 de Baambata, a Zulu Nation, foi a primeira organização comunitária do Hip Hop, criada em 1977. Seu objetivo maior foi reduzir a violência oriunda das brigas de gangues no Bronx da época, substituindo a brutalidade dos conflitos físicos por

4 Esta ênfase na oralidade remete a uma tradição de formatos de jogos verbais afro-americanos

como os soundings, as dozens e a spoken poetry

5 O Hip Hop é um movimento cultural nascido do encontro entre negros afro-americanos e

caribenhos (especialmente os jamaicanos, cubanos e porto-riquenhos). Este contato é resultado das duas ondas migratórias para os EUA: uma forjada pela escravidão no século XVI e outra ocorrida no meio do XX, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Do ponto de vista de sua gênese, esta forma cultural nasce como festa (as block partys) e lazer cotidiano de jovens, nas ruas dos bairros, nas quadras de basquete, apropriando-se da linguagem das gangs e do engenho musical de DJs no Bronx, em NY, EUA, no meio dos anos 1970s.

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embates estéticos. A ideia chave àquela altura foi reforçar a capacidade daquela então nascente manifestação cultural de servir como instrumento de transformação das condições de existência naqueles contextos através da manifestação artística.

Fortemente associado à valorização da identidade negra (estadunidense e caribenha), o significado de “conhecimento” no Hip Hop está intimamente atrelado às noções de consciência e “pedagogia7”. E esta é a chave analítica da argumentação deste trabalho: encarar o Hip Hop como um tribalismo contemporâneo (MAFFESOLI, 1995) - com suas ressurgências étnicas e apego à localidade - fortemente associado a processos éticos de estetização da existência em que o rapper propõe saídas subjetivas a seu público. Acreditamos, portanto, que o rap, especialmente em sua vertente política, mas não só nela, carrega em si um discurso sobre possibilidades ativas de conduzir a vida, criando o que Rose (1994) chama de “narrativas de possibilidade”, frente à existência dura e repleta de adversidades concretas e simbólicas experimentada pelos habitantes das periferias das cidades pós-industriais do mundo contemporâneo.

Especificamente, o propósito do artigo é analisar o rap dos Racionais Mc´s como uma comunicação musical de contornos éticos que aproxima uma linguagem artística à proposta de uma experiência vivencial, orientada por valores micropolíticos capazes de elaborar “linhas de fuga” (TAKEUTI, 2010) tanto em relação ao engajamento no crime quanto à sujeição ao trabalho precarizado. Nascido num território historicamente marcado pelo desinvestimento, a São Paulo dos anos 90, a música dos Racionais sempre desfrutou de imenso prestígio na periferia (KEHL, 1999) e se definiu como “a voz da favela”. O que diz esta voz?Como o rap dos Racionais conjugou musicalidade e propostas éticas a respeito da vida naquelas condições? Como esta música foi além da narração indignada dos problemas cotidianos e sugeriu posturas em relação à comunidade e ao autodesenvolvimento individual? Como os Racionais tentaram produzir um discurso capaz de ativar a consciência comum (a mencionada “coletividade na quebrada8”) e a consciência de si? Estas são as questões que serão abordadas neste trabalho.

7 Em sua importante discussão sobre a Modernidade do ponto de vista do que chamou de Atlântico

Negro, Paul Gilroy (2001) define o Hip Hop como “afirmação, brincadeira e pedagogia”.

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O RAP E OS TRIBALISMOS contemporâneos

O mundo contemporâneo testemunha a eclosão de modos de vida alternativos, que não mais se encaixam no produtivismo moderno ou na mecânica evolutiva da História, em que meta-relatos organizam uma vida pautada pela racionalidade econômica e pelo contratualismo político (MAFFESOLI, 1996). Habitando um período intermediário, no precário momento entre o fim de um mundo e o nascimento de outros, a realidade social atual apresenta diversas brechas, repletas de novas categorias e sensibilidades alternativas, deixadas pela falência das velhas verdades. A partir de uma multiplicidade de marginalidades centrais, assiste-se à emergência de um politeísmo de valores, que formatam novos ethos, fervilhantes de valores heterogêneos entre si (MAFFESOLI, 1996).

Neste ambiente cada vez mais aberto à razão sensível (ligada a aspectos do imaginário, do cotidiano, da estética e a uma atmosfera afetiva), emerge uma disponibilidade social para novas maneiras de ser ancoradas em novos mitos fundadores. Com frequência, formas inéditas de vibração comum atrelada a um desejo comunitário ganham corpo na “socialidade de base” (MAFFESOLI, 1996). É neste contexto que se dá a emergência de tribalismos de toda sorte, dentro dos quais os sujeitos se encontram entre si para partilhar emoções e sentimentos comuns.

O movimento Hip Hop pode ser compreendido exatamente como um destes tribalismos pós-modernos, em que uma manifestação cultural abrangente estrutura em torno de si efervescências juvenis e culturas musicais. Neste ambiente, os Racionais despontam como um destes novos “mitos fundadores” - de uma certa juventude negra periférica da cidade de São Paulo – que se agrupam a partir do consumo de música. Tal consumo ensejou constituições identitárias relacionadas ao potencial micropolítico do estilo. Esta relação entre estilo e política presente no Hip Hop remete à explosão, nos anos 1970 nos EUA, da cultura black, na qual a questão da liberação racial e musical entrelaçam-se. A este respeito, De Oliveira (2015) afirma que o consumo das sonoridadas do soul estadunidense à época por parte do público brasileiro que frequentava os bailes black implicava também a adoção de um ethos relacionado às premissas do black is beautiful, black power e soul brothers unidos em uma causa comum.

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Os Racionais são herdeiros manifestos deste processo. Sua música tem raízes declaradas no movimento black São Paulo, que por sua vez retoma uma vasta tradição afro-diáspórica de interseção entre música e postura, arte e estilo. Como assinala Hall (2003), na cultura negra, a aproximação entre estética e sociedade é destacadamente importante. Especialmente, quando se pensa a noção de “estilo”. Visto por muitos críticos apenas como embalagem frívola, o estilo no repertório negro é frequentemente em si mesmo o material do acontecimento artístico, o que é evidente no caso da cultura Hip Hop, com seu modo vestir, de falar e, finalmente, de ser. Além disso, deslocado da cultura logocêntrica (ancorada na escrita), o povo negro encontrou a estrutura profunda de sua vida cultural na música (HALL, 2003). Cronistas da realidade cotidiana, os rappers têm em sua maneira de falar um dos elementos centrais de sua arte. O uso do corpo (na dança break, por exemplo) também sugere essa aproximação entre arte e vida no Hip Hop. Segundo Hall (2003), os negros trabalham o corpo como telas de representação (como na dança de rua), já que frequentemente ele é o único capital cultural de que dispõem e o único espaço performático disponível. Tais repertórios, segundo Hall (2003), foram produzidos pelo encontro entre a herança africana e as condições da Diáspora que gerou inovações linguísticas na estilização retórica do corpo, formas de ocupar um espaço social alheio, expressões potencializadas, estilos de cabelo, posturas, gingados, maneiras de falar e, de forma complementar, meios de constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade.

Em direção semelhante, Kellner (2001) sinaliza para uma caracterização do rap como uma espécie de “fórum cultural onde os negros urbanos podem expressar experiências, preocupações e visões políticas”. Um espaço de vocalização de críticas e demandas relacionadas à denúncia e à resistência, no qual há uma conjunção de voz, música, espetáculo e, especialmente, participação. Mais uma vez, a afinidade entre uma linguagem artística e uma espécie de conduta vem à tona. Desta maneira, o rap pode ser visto como o episódio recente de uma ancestral tradição cultural negra, em que a crônica social e a manifestação dos anseios por liberdade são realizadas por meio da música e da performance (ROSE, 1994).

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Para alcançar o propósito do artigo, e analisar a música dos Racionais como uma comunicação de contornos éticos, é fundamental também compreender a estética9 como um fator decisivo de amálgama na contemporaneidade. Segundo Maffesoli (1996), é possível localizar o “querer artístico” como um dos principais motores das agregações sociais na atualidade. Isso significa levar a arte para além da discussão das Belas Artes e do gosto, e pensar, como sugere o autor, toda a vida cotidiana como obra de arte. A partir desta perspectiva, a estética se estende ao conjunto da vida social, como maneira de sentir e experimentar em comum. Se afinal a sociedade é capacidade de agregação social, o cimento para esta atração, no caso do Hip Hop, é a emoção estética produzida pela música. Neste contexto, a arte executa uma “função de reconhecimento, reconhecimento a partir de um efeito estético de um determinado símbolo” (MAFFESOLI, 1996). O sujeito reconhece um signo na relação com outros e, assim, reconhece o que o une aos outros. Essa função signo, ou emoção coletiva, pode exprimir-se, por exemplo, através da letra de um rap, que acaba exercendo sobre estes sujeitos uma agência capaz de sugerir processos de produção de subjetividade.

Trata-se, portanto, de levar em conta uma espécie de criatividade popular como substrato para a diversidade da criação social. Segundo Maffesoli (1996), com o fim do imperativo progressista da Modernidade, a sociedade ficou “entregue” a si mesma. E, num mundo sem transcendência, em que o divino está diluído no todo social, os sujeitos operam entre si uma religação imanente, efetivando uma socialidade encarada como potência artística10. Este mundo entregue a si mesmo vai, então, alicerçar-se na potência intrínseca que o constitui. Será que não foi exatamente a partir desta “ausência” de transcendência, associada ao abandono por parte do poder público, que o gueto empobrecido produziu o Hip Hop, que nasce como festa de rua, mas converte-se, especialmente na obra de rappers polítizados como os Racionais, numa estratégia de ressiginificação da experiência da violência e pobreza? Será que não foi exatamente este “espírito do lugar” (MAFFESOLI, 2004) que deu luz ao rap como uma possibilidade de

9 Maffesoli (1996) retoma a abordagem kantiana de aisthesis: a ênfase está no processo que me faz

admirar um objeto artístico e não no objeto em si.

10 Maffesoli (1996) salienta que segue a rota proposta por Nietzsche, de aproximação entre

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criação de valor que sinaliza ao seu público noções de autodesenvolvimento, consciência e comunidade?

Para responder a esta questão, seguimos a trilha deixada por diversos trabalhos anteriores que já tiveram os Racionais como objeto de análise (OLIVEIRA; SEGRETO e CABRAL, 2013); (GARCIA, 2003); (PINHO e ROCHA, 2011); (GARCIA, 2013) e (DANDREA, 2013). Vários deles sugerem abordagens macropolíticas e sociológicas. Outros têm ênfase cultural ou estética. Nossa argumentação vai na direção de afirmar que os Racionais capturam seu público pela “razão sensível”11, ou seja, pelo entrelaçamento da sensibilidade (afetiva, estética e cultural) com a racionalidade política.

O próprio grupo afirma, em entrevista ao programa Estação Periferia, que a música veio antes da política quando se trata de explicar sua relação com o rap. Por isso, acreditamos que um dos caminhos de pesquisa mais férteis para a investigação ora proposta é exatamente entender como a música do grupo está repleta de sentidos (micro)políticos que são articulados de maneira estética e, por fim, ética. Trata-se, enfim, de analisar como estes sentidos aparecem tanto em algumas letras dos Racionais, quanto em entrevistas, ou nas chamadas “orelhadas”: falas de Mano Brown entre músicas no show.

ESTILIZAÇÃO DA VIDA NA MÚSICA dos Racionais MC’S

Logo no início da música “Fim de semana no parque”, do disco “Raio X do Brasil”, Edi Rock anuncia: “você está entrando no mundo de informação, autoconhecimento, denúncia e diversão”. Esta introdução revela o caráter multifacetado do trabalho musical dos Racionais. Há vozes de diversão, que falam sobre os momentos festivos da vida no dia a dia, vozes de denúncia e informação, que fazem a crônica do cotidiano na favela e impulsionam rajadas de revolta contra opressões e, finalmente, vozes de autoconhecimento (o já mencionado

11 A partir da obra de Michel Maffesoli, “Eloge de la Raison Sensible”. Paris: Grasset, 1996,

Fernandes (2009), segue trabalhando sob a perspectiva a respeito de formas de sociabilidade com base em uma comunicação com fins práticos, mas que não podem ser interpretadas meramente como instrumentais e reguladoras em que o universo das emoções, dos afetos e das sensibilidades se apresentam de grande valor na compreensão das dinâmicas sociais.

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“quinto elemento”), que falam a respeito de possíveis saídas para as encruzilhadas que emergem da existência dura na desigual sociedade brasileira. Estas são vozes poéticas, que sugerem posturas éticas e linhas de fuga, num encontro especial entre ética e estética. Talvez o que os Racionais chamam de uma “Fórmula mágica da paz12”. Ou uma maneira de seguir “Sobrevivendo no inferno13” que era o Capão Redondo14 (terra de Mano Brown e Ice Blue) dos anos 1990 e início dos anos 2000. A intenção deste trabalho é sublinhar exatamente o discurso dos Racionais que vai nesta direção, presente fragmentariamente em diversas letras e em outras falas. E especialmente nas músicas “Fórmula mágica da paz” e “Tô ouvindo alguém me chamar”, do disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, e “A vida é desafio”, “Vida Loka I” e “Vida Loka II”, do álbum “Nada como um dia após o outro dia” de 2002.

Estes raps fazem parte do que Gutierrez (2015) afirma ser a segunda fase do trabalho do grupo, cujo discurso contêm significados que, de alguma forma, sugerem condutas ao público. Segundo o autor, nesta fase, que começa com o disco “Raio X do Brasil”, de 1993, os Racionais alteram o seu lugar de fala, desatrelando-se da militância do movimento negro, reduzindo o tom didático e moralizante dos primeiros trabalhos, e passando a dirigir-se à periferia como um todo. A partir desta nova abordagem, seu rap começa a levar mais em conta questionamentos subjetivos do MC, agora menos convicto e mais questionador, menos descritivo e mais poético. Em entrevista15, Brown explicita essa inclinação a partir de um determinado momento da carreira do grupo:

A gente descobriu que não era só o negro. Muita gente não sabia nem que era negro. Então o lance era ir além do bagulho da raça. Era uma coisa de existência mesmo, pai, mãe, avô, camarada, religião, tradição, valores. Um monte de coisa que era proibido. As pessoas eram tratadas como se fosse animal, curral, gente sem alma.

Os Racionais parecem inserir-se precisamente naquilo que Fernandes (2009) descreve quando afirma que as expressões artísticas e as emoções coletivas são

12 Música do disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997. 13 Nome do disco de 1997.

14 No ano de 1996, a ONU considerou Jardim Ângela, território que à época fazia parte do Capão

Redondo, como o lugar mais perigoso do planeta

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hoje centrais para “empatia geradora do élan comunitário-tribal” e este tipo de identificação fundada na arte acaba desempenhando uma função ética no plano social. Parece-nos que a música do grupo articula-se com uma sensibilidade coletiva que serve de fundamento à existência social e carrega também um sentido de organização da postura dentro de uma coletividade. A ética aqui é encarada sob a ótica da comunicação e da emoção coletiva, e não como dever-ser universal (MAFFESOLI, 1996). Brown costuma, inclusive, recusar a posição de líder, dizendo que, em vez de ser a “cabeça”, prefere “ser braço”. Talvez para estar ombro a ombro com o público, sem hierarquias. Em algumas letras, isso fica claro, como em “Formula magica da paz16”:

Então, como eu tava dizendo, sangue bom, Isso não é sermão, ouve aí, tem o dom? Eu sei como é que é, é foda parceiro. É a maldade na cabeça o dia inteiro. Nada de roupa, nada de carro, sem emprego, Não tem Ibope, não tem rolê sem dinheiro.

Ou em outro momento da mesma música:

Assustador é quando se descobre que tudo deu em nada e que só morre o pobre. A gente vive se matando irmão, por quê ? Não me olhe assim, eu sou igual a você. Descanse o seu gatilho, descanse o seu Gatilho, entre no trem da humildade, o meu Rap é o Trilho17.

A partir deste discurso mais horizontal de identificação surge um dos traços mais instigantes da dimensão ética/estética da música dos Racionais: perceber como a experiência compartilhada com o público gera um valor e, portanto, funciona como vetor de criação existencial. Como afirmam Oliveira; Segreto e Cabral (2013), ao longo do tempo, o grupo desenvolveu uma fala coletivizada, de estabelecimento de vínculos e convergências com a comunidade, que de alguma forma produz uma ideia de representatividade a partir da identidade entre o jovem negro da periferia e a “retórica profética” do grupo a respeito da vida cotidiana na favela. Como sugere Garcia (2007), “condensada em uma forma lapidar, a experiência se torna conceito, sabedoria popular que sugere regras de conduta”.É a partir daí que desenhamos nosso argumento, propondo que há singular sinergia entre ética e estética no rap dos Racionais. A ética aqui é vista no sentido forte do

16 Música do disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997.

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termo: aquilo que permite ao sujeito, a partir de alguma coisa exterior, um reconhecimento de si (MAFFESOLI, 1996).

Desta forma, a música torna-se capaz de promover estilos particulares, um modo de vida, uma deontologia, uma maneira de vestir, falar e se comportar – tudo que está na ordem da paixão partilhada. A faceta cronística do rap dos Racionais entra em jogo aí para conjugar os problemas individuais do rapper narrador aos problemas sociais que ele enfrenta no dia a dia e propor saídas. Como canta Edi Rock em “A vida é desafio18”:

É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível, Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase, E o sofrimento alimenta mais a sua coragem

Desta forma, os Racionais construíram uma carreira de sucesso comercial e reconhecimento de crítica a partir de uma alquimia entre uma linguagem artística e uma proposta ética que cativou multidões de jovens19. A partir de então, muitos jovens periféricos brasileiros teriam referências discursivas alternativas às dominantes para pensar sua própria realidade e agir perante ela. Costurando uma abordagem mais subjetiva e íntima com uma interpretação da realidade social que enfrentam, os Racionais falam de suas vidas, seus dilemas, suas questões, seus desafios, articulando suas experiências aos processos sociais que forjam os dramas cotidianos das periferias. Como uma espécie de filosofia20 forjada no gueto:

Ó, filosofia de fumaça e nariz, E cada favelado é um universo em crise, Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem, Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém21

Uma espécie de filosofia que sugere um sentido ético para a vida, como diz Edi Rock, mais uma vez, em “A vida é desafio”:

18 Música do disco “Nada com um dia após o outro dia”, de 2002.

19 Na música “Capítulo 4, Versículo 3”, o grupo diz que é “apoiado por mais de 50 mil manos”. 20 Gilroy (2001) propõe que a música deva ter o mesmo status da filosofia e da literatura no que se

refere a sua capacidade de investigar, representar e criar realidade, já que é através dela que se tem uma das mais poderosas respostas negras à modernidade, a partir da ação de músicos que operam como efetivos intelectuais negros.

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A vida não é o problema, é batalha, desafio, cada obstáculo é uma lição, eu anuncio, é isso aí, você não pode parar, esperar o tempo ruim vir te abraçar, acreditar que sonhar sempre é preciso, é o que mantém os irmãos vivos

A esta altura, é importante retomar as mencionadas noções de “auto-reconhecimento” e “autoconsciência”, tão caras ao quinto elemento do HH. Quando pensa a ética da estética, Maffesoli (1996) fala de um vitalismo que engendra atitudes sociais, eventualmente consideradas frívolas ou imorais, mas que reconhecidas fora de qualquer juízo normativo, são como técnicas de auto-fabricação. Ou formas de “produzir a si mesmo como sujeito ético”. Como quando, ao final da música “A fórmula mágica da paz”, no disco “Mil trutas, Mil tretas”, Brown dá uma de suas “orelhadas”:

Não se acostume a um cotidiano violento porque essa vida não foi feita pra você, rapaz. Você foi feito pra correr nos campos, andar de cavalo, brincar com crianças, cachorros, velhos. Flores, natureza, rios, água limpa pra beber. Essa foi a vida que Deus preparou pra você. Mas o ser humano é ambicioso, ele estragou tudo! Estragou tudo! Vamos viver. Esse é o caos, esse é o mundo em que você convive hoje. Século XXI, uma geração do século XXI. O que você vai fazer pra mudar? Cruzar os braços e reclamar ou você vai ser a revolução em pessoa? Acredite em você, rapaz. Procure a sua, eu vou atrás da minha… Fórmula mágica da paz.

Diante de um corpo que pode epifanizar-se através da música, o rap dos Racionais parece ter a capacidade de atuar como um vetor de desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1996), criando no campo estético o que os autores chamam de “linhas de fuga”. No caso, um novo modo de ser negro e periférico, em que novas possibilidades subjetivas são capazes de ultrapassar confinamentos culturais e cognitivos. E a partir de uma ética de afirmação da vida, fabricar a si mesmo como obra de arte.Brown fala com frequência desta aproximação entre arte e vida, como na versão de “Vida Loka I”, também do disco “Mil trutas, Mil tretas”:

A vida real é bem menos contagiante do que a vida artística. Ah se a vida fosse sempre assim: o palco, o show. Ah se a vida fosse sempre um show como seria bom. Mas segunda feira é dia de preto tá chegando, tá pertinho.

Desta maneira, os Racionais fazem uma poderosa cartografia psíquica da subjetividade dos jovens negros das periferias das grandes cidades brasileiras. Sobre isso, Guattarri (1990) salienta o fracasso das ciências humanas e sociais em compreender as dimensões intrinsecamente evolutivas, criativas e autoposicionantes dos processos de subjetivação. Talvez por isso seja necessário buscar na arte os elementos para a compreensão de novos processos de

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subjetivação, como os descritos aqui. A partir de inspirações ético-estéticas, sugeridas por este autor, afirmamos que o rap dos Racionais atua precisamente neste sentido, produzindo módulos e narrativas que oferecem elementos para a produção de subjetividades autônomas, ao retratar em suas letras processos de subjetivação que são poderosa inspiração para seu público. Algo semelhante ao que aponta Takeuti (2010), falando do rap em geral.

É precisamente a partir desta cartografia que os Racionais fazem sua “proposta” para o enfrentamento de um desafio ético: como encarar o cotidiano na periferia de São Paulo com dignidade e inteligência, lidando de forma ativa com as possibilidades e encruzilhadas que a vida na cidade violenta e segregada apresenta para seus habitantes? Como encontrar uma alternativa à inserção no mercado trabalho precarizado, na condição de subproletário22, e à atividade criminosa? Como sair da sina de ser mais um dos “corpos vazios e sem ética” que “lotam os pagodes rumo à cadeira elétrica23”? Brown não dá uma receita pronta. Antes, parece abrir espaço para a potência criativa da agência humana, propondo com sua música uma visão plástica da existência, que rompe com o já vivido para agenciar a vida de outra maneira. É a arte que torna possível o novo, ao invés de representar o já vivido, deixando o corpo aberto aos fluxos das potencialidades do devir e disposto para criar um agenciamento próprio, mapeando novos territórios cognitivos, e estando disponível para fluxos de energia desterritorializada. Nas palavras do próprio Mano Brown, numa “orelhada” entre uma música e outra em um show na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, uma possibilidade de criação subjetiva é “viver a vida como artista”:

Você vê que às vezes você tem que ser artista pra sobreviver dentro de favela, dentro de morro (...) Quem vive dentro sabe qual é o lado podre da maçã, onde que tá, onde tem que melhorar... (...) Muitas vezes você tem que ser artista pra você conviver com regras que você não aceita. Muitas vezes você tem que ter mais fé no que tá fora, do que no que tá dentro da favela. Muitas vezes você tem que ser um exímio operador pra você conseguir sobreviver, não concordando com as regras que imperam no local, mas respeitando, sabendo que você não pode se corromper. Isso é ser artista, o dia a dia ensina a você ser malandro, a você conviver com o que você gosta e com o que você não gosta.

22 Ver Singer (2012).

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É importante notar que quando Brown fala de levar a vida como artista, não está falando de necessariamente se tornar um cantor ou algo do tipo, apesar deste ter sido o caso dele. Ao contrário, como afirmamos acima, a ideia central é forjar uma prática de si que crie uma estética da existência, e que, por fim, funcione como uma ética de resistência seja em que atividade for. E esta ética da estética passa a fazer do sentir algo junto com outros um fator de socialização, que transforma a lógica da identidade (individual) numa mecânica da identificação (coletiva) (MAFFESOLI, 1996). Por isso, a noção de técnica de auto-fabricação, este “cuidado de si”, só faz sentido quando favorece o que o autor chama de uma “estilística do vínculo”. O cuidado consigo caminha ao lado da valorização do outro. Assim, em espaços historicamente marcados pelo desinvestimento, como os guetos das grandes cidades onde o Hip Hop costumeiramente floresce e onde encontramos “estresse concentrado e um coração ferido por metro quadrado24”, o rap dos Racionais sugere, ao mesmo tempo, posturas em relação à comunidade e ao autodesenvolvimento individual. Ou seja, uma consciência da coletividade e uma consciência de si.

Como “cuidado de si”, o incremento de autoestima é um dos elementos centrais na proposta dos Racionais para esta estética da existência. O trabalho de DAndrea (2013) indica inclusive que a música dos Racionais é a própria narrativa legitimada pela população periférica para falar orgulhosamente da periferia. Como se os Racionais tivessem contribuído decisivamente para a constituição da autoimagem que a periferia tem de si, forjando, assim, ao lado de uma visão crítica à sociedade que os condena à segregação e ao racismo, um intenso sentimento de dignidade e altivez25. Em entrevista26, o DJ KLJay expressa o papel dos Racionais na produção desta espécie de cuidado de si:

Racionais trouxe auto-estima pros pretos do Brasil inteiro. (...) A grande arma contra o racismo se chama “autoestima”. Quando você tem autoestima, ela fica estampada na sua cara. O racista olha pra você e fala assim: “esse negão aí... vou mexer com ele não. Eu nem gosto, mas não dá”. É a mesma coisa que você ver um tanque de guerra na rua, você fala: sai da frente.

24 Referência à música “Vida Loka II”, do disco “Nada como um dia após o outro dia”, de 2002. 25 Como é possível perceber na música “Negro Drama” ou “Capítulo 4, Versículo 3”.

26 Declaração dada a Ronald Rios no programa “Histórias do Rap Nacional | Produtores de Rap e

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CONSIDERAÇÕES finais

O presente trabalho argumentou que o rap é caracterizado por uma forte aproximação entre vida e arte. Um dos grandes nomes da música brasileira dos últimos 25 anos, os Racionais MC’s são exemplo desta aproximação, relacionando ética e estética. A partir da análise do material musical dos Racionais Mc’s, discutiu-se a possibilidade do élan comunitário engendrado por sua música encampar uma proposição ética a respeito de como levar a vida de forma ativa frente às adversidades apresentadas pela cidade de São Paulo. Criadores de uma poética refratária ao mito da democracia racial e crítica da violência policial, os Racionais ajudaram para a afirmação da autoestima dos negros da periferia da maior metrópole do país e sugeriram atenção à coletividade.

A ideia central do artigo foi analisar o rap dos Racionais como um discurso capaz de produzir um devir outro postural, em que o público que ouve sua música é instado a uma participação estética e vivencial. Neste sentido, a arte do grupo carregaria em si uma proposta micropolítica para a vida no cotidiano. A saber: uma alternativa tanto em relação ao engajamento no crime como em relação à entrada no trabalho precarizado, ou seja, nem a violência, nem a resignação à posição socialmente subalterna. Tratar-se-ia, ao invés, da invenção, através da estética musical, de uma ética que extrapole a sobrevivência espoliada pela vida em condições pré-modernas e afirme a autoestima e o sentimento de comunidade.

Neste contexto, a noção de resistência apresenta-se para além da política institucionalizada e configura “vias de saída” subjetivas para as problemáticas condições de vida dos jovens da periferia brasileira. Este registro interpretativo traz a possibilidade de vislumbrar uma agência criativa por parte do público dos Racionais face aos problemas vivenciados em espaços violentos e desprovidos de acesso a direitos básicos. Desta maneira, a arte dos Racionais sugeriria uma estética da existência, uma política da vida a partir da qual emergem posturas subjetivas para o enfrentamento das dificuldades cotidianas.

Portanto, com a compreensão das aproximações entre a expressão artística do rap e uma política do estilo no universo do Hip Hop brasileiro, o artigo sugeriu que o trabalho dos Racionais cria no campo estético um novo modo de ser jovem na periferia brasileira. Gerando, assim, referências para a “criação de si como obra de arte” a partir da emergência de novas modalidades de subjetividade.

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Considerando a mediação entre a arte e a micropolítica, nossa hipótese é a de que o rap é capaz de sugerir, por meio da sensibilidade musical, a ultrapassagem de confinamentos culturais e cognitivos. Onde a performance, expressa por uma “potencialidade estético-comunicativa” (FERNANDES, 2009), ultrapassa as instâncias político-institucionais da ação, e alcança um estado de latência ética fazendo-nos recordar que o afetivo, as sensações compartilhadas pelas músicas, gestos, modos de escuta, de se vestir, amalgamam a relação-comunicação, nessas e outras possíveis experiências estéticas e éticas do jovem da periferia brasileira.

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Artigo recebido em 30 de setembro de 2016. Artigo Aprovado em: 28 de novembro de 2016.

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