Como a corrupçao atinge a população

Por Ulysses Gadêlha e Anna Tenório 1 ABR 2018 às 10h08

Como a corrupçao atinge a população

Corrupção - Hugo Carvalho/Folha de Pernambuco

Corrupção é um verbete ao qual o dicionário reserva diversos significados, sendo resumida como o "comportamento desonesto, fraudulento ou ilegal que implica a troca de dinheiro, valores ou serviços em proveito próprio". Todavia, no imaginário popular, já se consolidou como a explicação de todos os males que enfrentamos. De fato, o Brasil está bastante atrás no ranking de países com maior percepção de integridade, de acordo com a organização Transparência Internacional. No Índice de Percepção da Corrupção (IPC), nós somos o 96º colocado, é a pior posição nos últimos cinco anos. Essa piora se deve à percepção de que fatores estruturais da corrupção nacional seguem inabalados. Atualmente, ainda vigora no País uma visão caricata do problema, que faz crer na existência de um personagem principal liderando um grande esquema de desvios. O imaginário popular está voltado para a parte superficial, a ponta do iceberg de um imbróglio que começa dentro das nossas casas, nas pequenas falhas praticadas no convívio pessoal - que costumam ser minimizadas pela sociedade, mas que têm um impacto na criação de uma cultura de corrupção. Na visão do pesquisador e psicólogo Luiz Alberto Hanns, a corrupção é formada por camadas que corrompem a Nação. A primeira é, justamente, a endêmica espalhada nos pequenos atos cotidianos de desvios sociais. A segunda é a sindrômica, onde é atingida a estrutura do estado com males como excesso de burocrácia e má gestão, que contribuem para uma armadilha social do "vale-tudo". Por fim, a corrupção que normalmente ocupa as manchetes de jornais, dos grandes esquemas e tramas de corrupção. Para combatê-las é preciso uma visão geral do fenômeno e não apenas moralista, que ataque todas as frentes do problema. Leia também

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Corrupção sistêmica

O descrédito da política tradicional está no centro do debate eleitoral deste ano e a corrupção, segundo uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é o tema que mais angustia os brasileiros. A insatisfação dos brasileiros no atual contexto se reflete numa falta de confiança generalizada no presidente (83%), nos políticos (78%) e nos partidos (78%). É justamente nesse arranjo em que incide a corrupção sistêmica, cuja figura simbólica é a cidade de Brasília. A lógica do nosso jogo democrático, na visão de especialistas, é um fator determinante para a prática da corrupção. O “presidencialismo de coalizão”, a “governabilidade” e o “financiamento das campanhas” (via caixa dois) provocam desvio éticos que produzem os escândalos de corrupção. É sobre esses elementos que a Lava Jato - maior instrumento de combate a corrupção nos últimos anos - tem se debruçado.


O procurador do Ministério Público Federal (MPF) Deltan Dallagnol afirmou, certa vez, que o ex-presidente Lula (PT) teve que negociar com partidos para garantir maioria no Congresso, o que não tinha em 2003. E, para garantir a boa relação com o Legislativo, o petista teria baseado sua gestão na “propinocracia”, cujo resultado era uma “governabilidade corrompida”. 


A investigação conduzida pela Operação Lava Jato, hoje, espera devolver aos cofres públicos de R$ 12 bilhões, mas a cifra astronômica não é obra de um único partido e, sim, um sistema enraizado desde a redemocratização e alargada pelo justamente multipartidarismo. Esse ponto é o pico de uma cultura, na alta esfera, de uma série de escândalos políticos. "A indicação de altos cargos na administração pública por legisladores, em troca de apoio político ao governo, é uma prática que tem contribuído para forjar alianças de governo", analisa o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Wilhelm Speck, no artigo 'O financiamento político e a corrupção no Brasil'. 

Um estudo feito por estudantes da USP apontou 404 nomes - entre políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros e laranjas -, de pessoas envolvidas em 65 escândalos de corrupção entre 1987 e 2014. A pesquisa revela que, a cada quatro anos, as redes de corrupção se transformam, com aumento significativo de envolvidos.


A má colocação no Índice de Percepção de Corrupção (IPC) indica que o Brasil, na 96ª colocação, não foi capaz de fazer avançar medidas para atacar de maneira sistêmica esse problema. “É fato que as grandes operações de investigação e repressão trouxeram avanços importantes, como a redução da expectativa de impunidade e o estabelecimento de um novo padrão de eficiência para estas ações”, disse Bruno Brandão, representante da Transparência Internacional no Brasil. No entanto, é preciso outras iniciativas. Entre as soluções propostas pela organização, estão a participação popular na criação das leis, uma política nacional de dados abertos e o endurecimento das penas referentes aos crimes debaixo do guarda-chuva da "corrupção", como fraude, nepotismo e outros.

Corrupção sindrômica

O jargão sobre pessoas que “criam dificuldades para vender facilidades” caracteriza bem uma das faces da corrupção no Brasil. Historicamente, o estado brasileiro é contaminado por um espírito burocrático cuja sua natureza tem a ver com o patrimonialismo - a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e os limites do privado. Esse comportamento, implantado num aparelho estatal com 9 milhões de servidores públicos, que cresceu 71% entre 1998 e 2014, segundo a FGV, provoca efeitos colaterais que impactam diretamente na sensação de que as coisas não estão funcionando.


Na formação do Estado brasileiro, ainda sob a influência portuguesa, será dominante o “patrimonialismo”, segundo a leitura do sociólogo Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder (1958). “O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com a estratificação social, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo - o cargo carregado de poder próprio”, analisa o estudioso. 


Esse conceito mobilizou diversos pesquisadores de renome, como Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho e Florestan Fernandes. “Essencialmente, a corrupção tem a ver com ambiente de credibilidade das normas do Estado. O cientista sueco Bo Rothstein fala sobre a teoria da armadilha social, onde um sujeito que, muitas vezes, é honesto acaba sendo levado a ser omisso ou se envolver com irregularidades por conta da estrutura da sociedade e do seu descrédito”, esclarece o cientista político Elton Gomes.


Entre os sintomas da corrupção sindrômica, estão o suborno e a fraude em licitações públicas, o superfaturamento de obras por meio de aditivos, os casos em que são ofertados alimentos em decomposição que para a merenda de alunos em escolas públicas, sem contar no desperdício de dinheiro público em obras desnecessárias ou mal planejadas. "A burocracia é necessária, mas ela é o caminho por onde passam a troca de favores, os servidores que não desempenham suas competências como deviam, que burlam as regras em troca de dinheiro, a própria questão do clientelismo", descreve o vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), o conselheiro Dirceu Rodolfo.


Dirceu acredita que o País tem uma teia burocrática muito complexa, o que atrai os atos de corrupção. A sensação de impunidade é o que permite que esses casos de má gestão se propaguem. "Um ato de corrupção, como prevaricação ou tráfico de influência, aborta gerações, aborta oportunidades, seifa vidas, gera violência, uma série de coisas. As punições deveriam ser de crimes hediondos. Além disso, é preciso maior conscientização, aumento do controle externo e social e uma estrutura administrativa racional, com uma engenharia lógica do funcionalismo, que mire a efetividade", avalia.

Corrupção endêmica

Com grandes escândalos de corrupção atingindo os principais atores políticos nacionais e pautando os noticiários diariamente, o brasileiro comum também tem a sua parcela de responsabilidade nessa questão. São “pequenos” desvios - em ações corriqueiras - que influenciam diretamente na conjuntura econômica e política do Brasil. Quando se permite que as pequenas infrações aconteçam, cria-se espaço e alicerces para tornar a sociedade mais propícia à corrupção.


O historiador e sociólogo Salviano Feitoza, explica que uma das grandes polêmicas da corrupção é enxergá-la “apenas como um problema moral”. Para ele, “é mais comum que se perceba a corrupção do alto escalão político da sociedade do que o que ocorre nesse cotidiano”. Isso acontece porque a sociedade percebe mais facilmente essas transgressões quando são feitas em larga escala do que quando um sujeito vem a cometer pequenos delitos - que são desempenhados, de modo geral, porque acredita-se que sua ação não tem capacidade de influenciar o sistema como um todo. “Visto muito mais como uma vantagem que se tira dentro de um sistema que é todo marcado por vantagens que são tiradas”, pondera.


No dia a dia, o comportamento das pessoas resulta no famoso: “jeitinho brasileiro”, que legitima toda uma cultura para se tirar proveito pessoal de determinas situações. As pequenas ações cotidianas são encaradas como primeiros níveis de corrupção. Da propina dada ao guarda, a falsificação da carteirinha de estudante, até a sonegação do imposto de renda, todos têm seus reflexos de efeitos das ações sentidos por toda a população, e, todos são feitos na busca de se encontrar mais facilidades.


Ainda de acordo com Feitoza, a população oscila entre acomodação e revolta de uma forma bastante “paradoxal”. Sendo assim, ao mesmo tempo em que se critica a postura dos políticos, as pessoas admitem que fariam o mesmo se estivessem em seus lugares. “Esse incômodo não passa da página 1, uma vez que assistimos a letargia da população diante do conjunto de situações noticiadas todos os dias”.


Na tentativa de solucionar o problema da corrupção - por meio da burocracia - se instituiu a previsão em lei de atos considerados ilícitos e a inserção de mecanismos legais no serviço público para dificultar o desenvolvimento das infrações. De acordo com a doutora em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ana Paula Portella, para ser considerado corrupção, até mesmo nos primeiros níveis, é preciso que se burle a legislação vigente.

“Uma lei que deveria ser aplicada, e que você recorre a um agente público para que a lei não seja aplicada”. Em situações onde não se respeitam filas - por exemplo -, ainda segundo a cientista social, a tendência é considerar o ato de “furar fila” mais como uma quebra de norma social, do que propriamente um delito corruptor. E explica que essas ‘pequenas transgressões à lei’ são fruto de uma cultura onde o brasileiro acredita que precisa tirar vantagem de todas as situações.

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