A espiritualidade ma educação popular

Patrícia Serpa de Souza Batista



Este artigo visa evidenciar a valorização da espiritualidade nas práticas de educação popular em saúde desenvolvidas na atenção básica. O trabalho com a saúde desenvolvido na atenção básica deve considerar o indivíduo em sua essência, como um ser que tem necessidades no âmbito biológico, no psicológico, no social e no espiritual, as quais precisam ser percebidas e cuidadas. A ação educativa, norteada pela educação popular, favorece ao encontro com essa dimensão sutil que é a espiritualidade, pois é desenvolvida com base em princípios que envolvem o fortalecimento de vínculos, a relação dialogada, a escuta sensível, a solidariedade, a afetividade, a valorização da dignidade humana, entre outros. Em momentos de dor e de sofrimento, a valorização da espiritualidade pode ser extremamente transformadora, conduzindo o doente e seus familiares a renovarem o ânimo e a buscar novas formas de enfrentamento da realidade desafiadora que estejam vivenciando. Conclui-se, entre outros aspectos, que esse é um tema ainda pouco debatido na formação universitária em saúde. Sugere-se que as academias priorizem a temática espiritualidade em seus currículos, permitindo ao futuro profissional adquirir uma maior amplitude de conhecimentos, com vistas a melhor se preparar para a prática cotidiana do cuidar, no contexto da atenção básica.



saúde coletiva; atenção básica; aaúde da família; espiritualidade; educação popular em saúde


DOI: https://doi.org/10.3395/reciis.v4i3.667

e-ISSN 1981-6278 

Icict - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde

Fundação Oswaldo Cruz | Ministério da Saúde Av. Brasil, 4365 | Pavilhão Haity Moussatché | Manguinhos | CEP 21040-900

Rio de Janeiro | Brasil


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Editorial

Ana Cristina de Souza Mandarino, Estélio Gomberg

Fernando Lefèvre, Eliane Brígida Morais Falcão, Ana Maria Cavalcanti Lefèvre, Sandra Dircinha Teixeira de Araújo, Antonio de Pádua Passos de Freitas

Mariana Bteshe, Veronica Miranda de Oliveira, Tatiana Clébicar, Carlos Estellita-Lins, Isabel Salles

A espiritualidade ma educação popular

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RODRIGUEZ-B., Luis Fernando. Educação popular, intersubjetividade e espiritualidade: uma relação de memória sobre as contribuições do conceito de comunicação na obra pedagógica de Paulo Freire. Pensam. palabra obra [online]. 2019, n.21, pp.142-151.  Epub Mar 24, 2020. ISSN 2011-804X.

A importância pedagógica e histórica de Paulo Freire é fundamental para pensar a construção da memória coletiva, processos de reconhecimento social e representação política em América Latina. Seu pensamento e obra, não só têm a ver com o campo educativo especificamente, também diversas áreas das chamadas ciências sociais, entre elas a comunicação, recebem uma grande influência desde sua visão esclarecedora, crítica e cultural. Daí torna-se importante compreender a importância transversal de categorias sociais, que confluem em torno de elementos tais como o diálogo, a mediação, o popular, a libertade, o amor e a esperança. Entre muitas contribuições de sua inspiração está pensar e assumir a comunicação como uma forma crítica de desalienação dos sujeitos e emancipação do povo daquelas estruturas, tanto epistémicas como políticas que o manipulam e impedem sua própria produção de conhecimento e autonomia. A cinquenta anos da publicação da Pedagogia do oprimido, este texto apresenta uma pequena lembrança do significado crítico da comunicação desde sua obra e memória.

Keywords : comunicação; espiritualidade; pedagogia; mediação; diálogo.

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Eymard Mourão Vasconcelos

ESPIRITUALIDADE NA EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

EYMARD MOURÃO VASCONCELOS

*

RESUMO: A dimensão espiritual sempre esteve presente em gran-

de parte das práticas de educação popular, mas de forma não clara-

mente reconhecida nas análises teóricas. O instrumental teórico dos

estudos sobre espiritualidade permite entender muitas dimensões

emocionadas e simbólicas que são marcas centrais da dinâmica

educativa destas práticas. Este trabalho procura refletir o significa-

do da espiritualidade como instrumento e espaço de relação edu-

cativa entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, na luta

pela saúde, foco usualmente não discutido nos estudos teóricos pre-

dominantes sobre o tema.

Palavras-chave: Espiritualidade. Educação popular. Educação popu-

lar em saúde. Espiritualidade na saúde.

S

PIRITUALITY WITHIN POPULAR EDUCATION IN HEALTH

ABSTRACT: The spiritual dimension has always been present in

most of the popular education practices, but without a clear recog-

nized form of theoretical analysis. The theoretical instrument de-

rived from studies of spirituality helps to better understand di-

mensions linked to emotions and symbols, which are central to the

educative dynamic of those practices. This work tries to reflect on

the signification of spirituality as an instrument and space of edu-

cative relationship in-between professionals and users of health ser-

vices in their fights for health. Such a focus is usually not discussed

in the predominant theoretical studies of this field.

Key words: Spirituality. Popular education. Popular education in

health. Spirituality in health.

* Doutor em Medicina e professor do Departamento de Promoção da Saúde da Universida-

de Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:

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Espiritualidade na educação popular em saúde

trabalho em saúde sempre esteve ligado às práticas religiosas.

Mesmo com o advento da modernidade e o surgimento da me-

dicina científica, estudos antropológicos atuais têm mostrado

que a consideração de dimensões religiosas continua presente em to-

dos os estratos sociais como parte importante da compreensão do pro-

cesso de adoecimento e cura (Ibánez & Masiglia, 2000). Mas a visão

dualista inerente ao paradigma newtoniano e cartesiano de ciência, que

separa o mundo da matéria do mundo do espírito, tornou ilegítima a

consideração das dimensões religiosas da vida humana na investigação

da gênese das doenças e na busca de medidas terapêuticas. Por causa

da suspeita do modelo newtoniano-cartesiano de ciência em relação à

religião, profissionais, professores e pesquisadores do setor de saúde se

envergonham de trazer, para o debate científico e para a discussão aber-

ta nos espaços de formação dos recursos humanos em saúde, os saberes

e vivências religiosas tão importantes em suas vidas privadas. Desta for-

ma, as práticas religiosas têm estado presentes no trabalho de saúde de

forma pouco crítica e elaborada, na medida em que nele se infiltram

de modo silencioso e não debatido.

Contudo, a crescente manifestação de insatisfações ao modelo da

biomedicina (Blendon, 1990), o fortalecimento da crítica aos pressu-

postos filosóficos da racionalidade científica, a partir da segunda meta-

de do século

XX, e o surpreendente aumento dos movimentos religiosos,

no final do mesmo século, criaram condições para o florescimento de

uma extensa literatura, proclamando ideias e estratégias de saúde inte-

gradas a uma visão religiosa (Boff, 1999; Pietroni, 1988; Crema, 1995;

Remem, 1998; Leloup, 2007; Amatuzzi, 2005; Koenig, 2005; Ange-

rami-Camon, 2004; O Mundo da Saúde, 2007). Estas publicações pas-

sam a ser consumidas amplamente, tanto pela população como pelos

profissionais de saúde. Apesar desta mudança cultural, os estudos aca-

dêmicos em saúde continuam extremamente fechados à incorporação de

aspectos religiosos no entendimento do processo de adoecimento e cura.

No Brasil, só recentemente uma revista científica de renome dedicou

um número especial ao tema (Revista de Psiquiatria Clínica, 2007).

O avanço das ciências da religião, na medida em que possibilitou

a criação de conceitos e análises desvinculados de uma tradição religio-

sa específica e, assim, de uma linguagem comum, está possibilitando a

discussão mais ampla deste tema, de uma forma que supera parcialmen-

te as usuais e tensas competições entre os vários grupos religiosos.

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O Brasil passou, na segunda metade do século XX, por um imen-

so processo de transição do perfil de distribuição das doenças, em que

as patologias predominantes deixaram de ser as doenças infecciosas e

parasitárias para serem as crônico-degenerativas (Barreto & Carmo,

1995). O enfrentamento deste tipo de problemas de saúde não acon-

tece com ações curativas pontuais, como é possível com a maioria das

doenças infecciosas e parasitárias. Exige modificações profundas do

modo de vida que só acontecem se é mobilizada uma grande “garra

nos pacientes e nos grupos, algo que a educação em saúde tradicional,

centrada no repasse de informações, pouco acrescenta. Encontra-se aí a

força da espiritualidade como instrumento de promoção da saúde, na

medida em que lida com as dimensões pouco conscientes do ser em

que se assentam os valores, motivações profundas e sentidos últimos

da existência individual e coletiva. Os portadores de doenças graves vi-

vem crises subjetivas intensas e mergulham com profundidade em di-

mensões inconscientes da subjetividade. É nessa elaboração subjetiva

profunda que são construídos novos sentidos e significados para suas

vidas, capazes de mobilizá-los na difícil tarefa de reorganização do vi-

ver exigida para a conquista da saúde. Há uma milenar tradição do uso

da espiritualidade no enfrentamento dos problemas de saúde que pode

ser resgatada, mas que necessita ser atualizada para as atuais caracterís-

ticas da sociedade.

A crise existencial trazida pela doença leva o paciente e seu gru-

po social a importantes questionamentos sobre suas vidas. São questio-

namentos intensamente impregnados de emoção, em que elementos

inconscientes da subjetividade participam intensamente. Podem resul-

tar em amplas transformações positivas ou em grandes catástrofes pes-

soais e familiares. A participação do profissional de saúde neste proces-

so de elaboração é dificultada pelo fato de sua formação não valorizar e

não prepará-lo para lidar com dimensões subjetivas não expressas de

forma racional e clara. Como lidar com estas dimensões?

Neste trabalho, parte-se da compreensão de que a educação po-

pular contém instrumentos teóricos e práticas para a abordagem educa-

tivas destas dimensões. Procurando explicitar a presença da dimensão es-

piritual nas práticas de educação popular, usualmente não discutida nos

estudos teóricos predominantes sobre o tema, busca mostrar a forma

como ela pode contribuir para lidar com as dimensões espirituais pre-

sentes no trabalho em saúde.

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Espiritualidade na educação popular em saúde

A forma como a espiritualidade tem estado presente nas práticas de

educação popular

A educação em saúde é o campo de prática e conhecimento do

setor saúde que se tem ocupado mais diretamente com a criação de

vínculos entre a ação médica e o fazer cotidiano e o pensar da popula-

ção. Diferentes concepções e práticas têm marcado a história da edu-

cação em saúde no Brasil. Mas, até a década de 1970, foi basicamente

uma iniciativa das elites políticas e econômicas e, portanto, subordina-

da aos seus interesses. Voltava-se para a imposição de normas e com-

portamentos por elas considerados adequados, num tipo de educação

que poderia ser chamada de “toca-boiada”, em que os técnicos e a elite

vão tentando conduzir a população para os caminhos que consideram

corretos, usando, para isso, tanto o berrante (a palavra) como o ferrão

(o medo e a ameaça). A participação de profissionais de saúde nas ex-

periências de educação popular, a partir dos anos de 1970, trouxe para

o setor da saúde uma cultura de relação com as classes populares que

representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora

da educação em saúde (Vasconcelos, 1997). Consolidou-se no setor de

saúde um movimento organizado de profissionais entusiasmados com

a potencialidade da educação popular, como instrumento de constru-

ção de uma atenção à saúde mais integral, a Rede de Educação Popu-

lar e Saúde, que vem procurando desenvolver e divulgar um saber ne-

cessário para um trabalho articulado entre os serviços de saúde e as

iniciativas dos sujeitos e movimentos das classes populares.

No campo da saúde, a educação popular tem sido utilizada

como uma estratégia de superação do grande fosso cultural existente

entre os serviços de saúde e o saber dito científico, de um lado e, de

outro lado, a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular. Atu-

ando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões ligadas

ao funcionamento global dos serviços, busca entender, sistematizar e

difundir a lógica, o conhecimento e os princípios que regem a subjeti-

vidade dos vários atores envolvidos, de forma a superar as incom-

preensões e mal-entendidos ou tornar conscientes e explícitos os con-

flitos de interesse. A partir deste diálogo, soluções vão sendo delineadas.

Neste sentido, a educação popular tem significado não uma atividade

a mais que se realiza nos serviços de saúde, mas uma ação que reorienta

a globalidade das práticas ali executadas, contribuindo na superação do

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biologicismo, autoritarismo do doutor, desprezo pelas iniciativas do

doente e seus familiares e da imposição de soluções técnicas restritas

para problemas sociais globais, que dominam na medicina atual. É, as-

sim, um instrumento de construção de uma ação de saúde mais inte-

gral e mais adequada à vida da população.

Educação popular é o saber que orienta nos difíceis caminhos,

cheios de armadilhas, da ação pedagógica voltada para a apuração do

sentir/pensar/agir dos setores subalternos para a construção de uma so-

ciedade fundada na solidariedade, justiça e participação de todos.

Ela, desde a sua origem nos meados do século

XX, esteve muito

ligada ao campo religioso, seja pela origem cristã de muitos de seus

pioneiros, seja pela estreita ligação de suas práticas com as pastorais,

principalmente da Igreja Católica, após o golpe militar de 1964. A

partir dos anos de 1970, as igrejas cristãs, que conseguiram resistir à

repressão política da ditadura, se tornaram espaços privilegiados de

apoio às iniciativas de educação popular e, consequentemente, de deli-

neamento de suas características. No mais famoso livro de Paulo Freire,

Pedagogia do oprimido, escrito em 1968, as marcas desta espiritualidade

já aparecem, em muitos momentos, em afirmações como: “a fé no ho-

mem é o pressuposto do diálogo” ou “sendo fundamento do diálogo, o

amor é, também, diálogo” (Freire, 1979, p. 95). Em escritos e depoi-

mentos posteriores, ele assume com muito mais veemência a impor-

tância da religiosidade em seu pensamento. No entanto, a produção

acadêmica sobre educação popular, refletindo o dualismo da ciência que

divide o mundo em dois (o empírico e o espiritual ou, no dizer de

Descartes, a natureza, de um lado, e a graça em teologia do outro

[Durozoi & Roussel, 1996, p. 141]), tendeu a ver a associação com o

religioso como circunstancial. A religiosidade presente na maioria das

práticas de educação popular seria apenas a linguagem de expressão

possível, naquela cultura e naquele contexto político repressivo. A reli-

giosidade presente em autores, como Paulo Freire, também foi perce-

bida como peculiaridade de suas personalidades não aplicáveis à estru-

tura do pensamento e prática pedagógica da educação popular.

Não se quer, com isso, afirmar o caráter religioso da educação

popular, mas sim que a forte presença da dimensão religiosa em suas

práticas e na formulação de alguns dos pioneiros de sua sistematização

teórica indica uma característica epistemológica de suas práticas que

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grande parte da reflexão sociológica e pedagógica não conseguiu cap-

tar. Se entendemos a religiosidade como a forma mais utilizada pela

população para expressar e elaborar a integração das dimensões racio-

nal, emocional, sensitiva e intuitiva ou a articulação das dimensões

conscientes e inconscientes de sua subjetividade e de seu imaginário

coletivo (Valla, 2001), esta sua forte presença significa um avanço em

seu método de perceber e tratar as interações entre educador e edu-

cando, em relação ao pensamento sociológico e pedagógico, ainda pre-

so ao paradigma modernista que continua dominante. Significa que a

centralidade do diálogo no método da educação popular não se referia,

nas suas práticas pedagógicas, apenas à dimensão do conhecimento e

dos afetos e sensações conscientes, mas também às dimensões simbóli-

cas do inconsciente, presentes nas relações sociais. Nas práticas de edu-

cação popular conduzidas numa linguagem religiosa, dimensões in-

conscientes participam explicitamente de forma central dos diálogos

que se estabelecem, através das metáforas das histórias míticas e dos

símbolos da liturgia. Assim, o questionamento maior do saber popu-

lar, tão valorizado nas práticas de educação popular, ao pensamento

moderno não está nos conhecimentos inusitados e surpreendentes que

ele expressa sobre as estratégias da população adaptar-se à realidade

onde vive, mas na sua forma de estruturar o conhecimento de uma for-

ma que integra dimensões racionais, intuitivas e emocionais. Seu mai-

or ensinamento para os profissionais de formação científica, que com

ele interagem, é epistêmico, ou seja, questiona o paradigma ou o mo-

delo geral como o pensamento tem sido processado na produção e

estruturação do conhecimento considerado válido pela sociedade mo-

derna. O saber popular não está submetido à ditadura do saber apren-

dido conscientemente e logicamente estruturado. Inclui e se articula

com o saber que brota do corpo e que utiliza estados de inebriamento

e excitação para se estruturar. Isso não foi captado pela maior parte da

reflexão teórica sobre educação popular que se construiu.

A convivência intensa de alguns profissionais de saúde com as

classes populares e os seus movimentos tem-lhes ensinado um jeito

diferente de conduzir seus atos terapêuticos. Aprendem a romper

com atitude fria dominante no modelo da biomedicina e passam a

criar um vínculo emocional com as pessoas cuidadas, que gera um

estado de alma aberto para ser afetado profundamente por elas. Este

envolvimento com as pessoas cuidadas desencadeia intuições que são

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acolhidas e colocadas em operação no trabalho em saúde. Vai-se, com

o tempo, adquirindo uma confiança neste agir orientado também pela

emoção e a intuição. Aprende-se a valorizar percepções sutis dos senti-

dos. Vai-se também aprendendo a manejar, de forma equilibrada, a re-

lação entre a razão, a emoção e a intuição na estruturação do ato tera-

pêutico. A intuição traz à tona saberes produzidos nas estruturas

arquetípicas do processamento mental inconsciente que foram desco-

bertas por Jung, permitindo acessar saberes acumulados durante todo

o processo histórico de construção da espécie humana, que são herda-

dos por todos pela genética e pela assimilação de elementos simbólicos

da cultura (Maroni, 1998).

Justamente por este aprendizado junto às classes populares pro-

piciado pela convivência, têm sido os profissionais e pesquisadores do

movimento da Educação Popular em Saúde que vêm tomando a frente

para trazer o debate sobre o tema da espiritualidade no trabalho em

saúde para o campo da saúde coletiva no Brasil.

Contudo, por que a mentalidade religiosa tem se mostrado tão

presente na cultura das classes populares latino-americanas? O sociólo-

go chileno Cristian Parker afirma que o processo de modernização in-

dustrial, comandado pela lógica da ciência e da racionalidade técnica

nos Estados Unidos e na Europa ocidental (e também em bolsões de

prosperidade da América Latina), resultou no que se pode chamar de

um conforto mínimo para a maioria da população destas regiões do

mundo (Valla, 2001). O relativo sucesso deste processo de moderniza-

ção gerou o fenômeno da secularização, afastando o imaginário social

da forma religiosa de organizar a subjetividade. Nestes locais, o discur-

so da modernidade foi incorporado fortemente até mesmo entre as clas-

ses populares. Já o processo de modernização na América Latina não

teve um efeito claramente positivo para a maioria da população. Pelo

contrário, aumentou enormemente a desigualdade e a percepção de

subalternidade. Por esta razão, o processo de substituição da mentali-

dade religiosa por uma visão centrada na razão e na lógica científica foi

muito menor. Apesar das intensas mudanças econômicas e sociais em

países como o Brasil, a população continua com uma visão religiosa

muito profunda. Para ele e outros pesquisadores, a religião popular é

uma das características mais importantes da cultura das classes popula-

res latino-americanas. Ela é a forma particular e espontânea de expressar

os caminhos que estas classes escolhem para enfrentar suas dificuldades

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no cotidiano. A religião popular é um saber e uma linguagem de ela-

boração e expressão da dinâmica subjetiva, parte da cultura popular,

em que a população se baseia para buscar o sentido de sua vida. Cria

uma identidade mais coesa entre os grupos sociais, ajuda a enfrentar as

ameaças e a ganhar novas energias para encarar a luta pela sobrevivên-

cia e pela alegria. É uma forma de resistência cultural ao modo de vida

que a elite lhes quer impor. Assim, a questão religiosa das classes po-

pulares não pode ser vista como uma questão tradicional e arcaica. O

importante não seria constatar a importância da religião para estas clas-

ses, mas a sua dinâmica de transformação que a faz uma resposta atua-

lizada e renovada às intensas transformações sociais que estão aconte-

cendo. É um instrumento de resistência à lógica da modernidade que

ampliou a desigualdade e a injustiça. Uma estratégia de sobrevivência,

em que a busca do sobrenatural tem a ver com a solução de problemas

imediatos e cruciais e não com o investimento na vida após a morte.

Muitas das resistências dos intelectuais progressistas em valori-

zar a dimensão religiosa da população se devem à percepção de se tra-

tar de um campo marcado pela dominação de uma hierarquia religiosa

que tem se mostrado historicamente bastante autoritária e dogmática,

bem como vinculada frequentemente ao poder político e econômico.

Mas a importância da religiosidade na vida da população parece se dar

não por uma identificação com estas hierarquias religiosas, mas pelo

papel que ela assume na sua vida cotidiana. E há grandes diferenças

entre a religiosidade popular e aquela difundida oficialmente. A religi-

osidade popular, como toda prática humana, é povoada de contradi-

ções e ambiguidades, de conformismo e resistência. A superação de

suas dimensões negativas é um desafio a uma educação popular que a

problematize. Mas, para isto, é preciso que se entenda a complexidade

simbólica de suas práticas.

Nesse sentido, a ênfase no conceito de espiritualidade, ao invés

de religiosidade, pode ajudar a desbloquear resistências, uma vez que

se refere a práticas não necessariamente ligadas às religiões. É um

conceito que ressalta principalmente a dinâmica de aproximação com

o eu profundo, que não corresponde necessariamente aos caminhos

padronizados difundidos pelas hierarquias religiosas tradicionais.

Mesmo líderes religiosos, como Boff (1999), afirmam que o decisivo

não são as religiões, mas a espiritualidade subjacente a elas. Assim, a

priorização do conceito de espiritualidade tem um papel inclusivo em

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uma sociedade que tende para a diversidade cultural. E salienta a di-

mensão de vivência em detrimento da dimensão formal de ligação ou

não com as instituições religiosas que, até a pouco, era mais valorizada.

Desde 1974, estou envolvido com o movimento da Educação

Popular no Brasil. Algumas destas reflexões começaram a ser feitas por

mim, a partir de uma conversa, em 1981, com o padre Celestino Gri-

lo, que trabalhava comigo na pastoral dos direitos humanos, no interi-

or da Paraíba. Ele afirmava que muitos intelectuais colaboradores das

iniciativas educacionais da Diocese de Guarabira desvalorizavam a reli-

giosidade presente nos grupos. Aceitavam-na apenas como estratégia de

inserção no meio popular, pois a Igreja era ali a única instituição que

dava suporte ao trabalho educativo junto às classes populares daquela

região rural. Recorriam à linguagem religiosa de forma utilitarista ape-

nas para terem acesso à população e serem ouvidos. Sonhavam com o

dia em que poderiam assumir a problematização das questões sociais

de forma direta, objetiva e racional, sem ter que recorrer aos “volteios

da religiosidade. Ele notava, no entanto, que quando estes intelectuais

organizavam iniciativas educativas, discutindo os problemas da popu-

lação sem deixar espaço para ritos, comemorações, orações e dinâmicas

reflexivas feitas de forma afetiva, os trabalhos não prosperavam.

Tomada da inconsciência

Na luta pela cidadania, é usual utilizar a expressão tomada de

consciência, referindo-se à apropriação da capacidade da consciência

de conhecer os direitos e deveres que todos devem ter, principalmen-

te por parte daqueles que não têm acesso a estes direitos. Esta cons-

cientização sobre os direitos e os caminhos de luta para conquistá-los

no jogo político é, de fato, fundamental. Rolnik (1994), todavia, cha-

ma a atenção para sua insuficiência a partir de observação da realida-

de dos países mais avançados da Europa, onde há um sólido reco-

nhecimento social dos direitos de cada cidadão que se traduz num

grande respeito ao outro e, ao mesmo tempo, um distanciamento en-

tre as pessoas, no que ela denominou de uma anestesia à interação

afetiva, que se expressa por um cotidiano de solidão, apatia e sensa-

ção difusa de rejeição social. Há, então, um máximo reconhecimento

do outro em sua condição de cidadania e um mínimo acolhimento

do outro em sua totalidade. Na medida em que o inconsciente é o

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modo de apreensão e elaboração das dimensões invisíveis e misterio-

sas do ser humano integral, na construção de uma sociedade solidá-

ria, justa e saudável, seria então também importante a tomada da in-

consciência, no sentido do cultivo, na sociedade, da capacidade de

acolhimento afetivo e espiritual ao outro pelo aprendizado subjetivo

da habilidade de lidar com as transformações e perturbações interio-

res que este encontro com a subjetividade, de quem é diferente, de-

sencadeia, em uma sociedade de massa em que as pessoas estão con-

tinuamente se cruzando.

A valorização da tomada da inconsciência, integrada à tomada

de consciência, aponta para um imaginário ético que vai além da luta

pelo respeito aos direitos formais de todos. Orienta-se por uma ética

que inclui também uma situação social de amplo acolhimento de

cada cidadão em sua inteireza e, portanto, de extrema abertura ao

processo de recriação subjetiva e de novos modos de existência. Uma

sociedade que, além da justiça e direitos sociais reconhecidos, seja

marcada pela intensa interação amorosa. Onde a abertura e entrega à

processualidade da vida e às suas criativas e surpreendentes conse-

quências sejam o valor maior.

O acréscimo da valorização da tomada da inconsciência à já bas-

tante ressaltada tomada de consciência significa a incorporação do

aprendizado de que, mais que respeitar o outro, é importante abrir-se

ao outro, dispondo-se a viver a experiência de desapego aos arranjos

subjetivos estabelecidos e consolidados em cada um, aceitando a

impermanência da vida de forma mais radical.

Assim, pode-se dizer que uma educação popular restrita aos as-

pectos conscientes do problema humano é insuficiente, porque não

aborda as dimensões intuitiva, sensorial e emocional de forma integra-

da à razão. Na América Latina, as relações sociais no meio das classes

populares não são marcadas por este distanciamento afetivo, pois elas

não estão tão subjugadas ao modo racionalista e utilitarista de manejo

da subjetividade trazido pela modernidade. O processo de tomada da

inconsciência está muito mais precário entre os intelectuais e técnicos

educadores que, com seu poder, têm grande capacidade de moldar as

relações educativas de que participam. As suas práticas pedagógicas, que

impõem abordagens restritas aos aspectos conscientes do problema hu-

mano, acabam tolhendo a entrada na cena educativa desta vivacidade

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intuitiva presente no popular. Acabam esvaziadas, como notava o pa-

dre Celestino Grilo, já em 1981.

Recebido em abril de 2008 e aprovado em maio de 2009.

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