A educação popular como pratica politica e padagogica emancipadora

“Não basta saber ler mecanicamente ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho.”

Paulo Freire in Moacir Gadotti, Paulo Freire: Uma Biobibliografia, 1996.

Aprender é um ato revolucionário. Por meio da educação, e de maneira coletiva, o indivíduo deve tomar consciência de sua condição histórica, assumir o controle de sua trajetória e conhecer sua capacidade de transformar o mundo. Assim pode ser resumida a ideia central do pensamento do pernambucano Paulo Freire (1921-1997), o mais notável educador brasileiro, reconhecido internacionalmente por sua concepção libertária e autônoma de educação e por seu método inovador de alfabetização de adultos.

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A educação popular como pratica politica e padagogica emancipadora
– GE/Guia do Estudante

Formado em direito, Paulo Freire optou por se dedicar ao magistério. No final dos anos 1940 até início dos anos 1960, tomou contato com a realidade de camponeses e operários pernambucanos e se envolveu em projetos de educação popular. Essas experiências foram decisivas para formar a essência de suas ideias e formatar o seu método. Freire teve suas obras traduzidas para mais de 20 idiomas. Em maio de 2017, completam-se 20 anos de sua morte.

Emancipação e autonomia

O método Paulo Freire ganhou grande repercussão após ser colocado em prática em Angicos (RN), em 1963, quando 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em 45 dias. Em vez do aprendizado mecânico e de letras e palavras descontextualizadas da vida dos educandos, o método freireano propõe partir da realidade dos alunos e de seu universo vocabular. A alfabetização ocorre mediante a discussão de suas experiências de vida, de seus problemas e de questões do cotidiano.

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A ideia é que a leitura da palavra proporcione a leitura crítica do mundo e permita a compreensão da sua realidade social e política. Essa seria a essência da educação emancipadora e autônoma, que possibilita que pessoas das classes menos favorecidas da sociedade desenvolvam uma consciência crítica de sua situação e vejam-se como protagonistas da própria história, capazes de transformar a realidade, sempre coletivamente: “Ninguém luta contra forças que não entende; ninguém transforma o que não conhece (…)” / “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

Tal educação libertadora e problematizadora, segundo Paulo Freire, só pode se constituir num processo onde educador e educando aprendem juntos. Essa visão se opõe diretamente ao que Freire chama de “educação bancária” – em referência aos bancos, como se a educação fosse um ato unilateral de depositar conteúdos. A educação bancária coloca de um lado o educador, como o único a deter o conhecimento, e, de outro, o educando, tratado como um ser passivo que nada saberia. Atuando dessa forma, a escola suprime a capacidade crítica dos alunos, acomodando-os ao mundo existente.

Educação e política

Embora repudiasse qualquer tipo de doutrinação, recentemente Paulo Freire foi alvo dos defensores do movimento Escola sem Partido, que combate uma suposta “doutrinação política e ideológica” no ambiente escolar. Segundo o autor pernambucano, não cabe ao professor ser um pregador, pois o ensino deve ser plural. E esse pluralismo não quer dizer abrir mão de ter uma opinião, mas sim tê-la e dialogar com outros pontos de vista.

Para Paulo Freire, toda educação é política – e não existe neutralidade. Enquanto a missão da “educação bancária” é eliminar a capacidade crítica dos alunos e acomodá-los à realidade, a “educação problematizadora” quer despertar a consciência dos oprimidos, inquietá-los e levá-los à ação (libertação). São, portanto, duas visões antagônicas do papel da educação.

A Educação Popular é definida como uma filosofia da educação, uma pedagogia, uma práxis e também um campo de saberes e práticas. Ela tem origem em movimentos sociais que insurgiram na América Latina contra os processos de colonização e os governos autoritários na segunda metade do século 20. No Brasil, a maior referência teórica dessa pedagogia é Paulo Freire, que elabora uma crítica ao que ele denominou ‘educação bancária’, uma forma de educação que pressupõe que alguns detêm o saber e outros não; que os professores, os que sabem, devem transferir conteúdos aos alunos, os desprovidos de saber. Para Paulo Freire, a educação bancária reproduz estratégias de opressão e dominação, de uma classe social sobre outra, da elite sobre os trabalhadores, transformam os humanos em “seres para outro” e não para si.

Na contramão da educação bancária, Paulo Freire apresenta a pedagogia do oprimido como uma prática dialógica que problematiza e desvela a realidade, aquilo que é ocultado nas relações de poder e também aquilo que é naturalizado, como a desigualdade social, o patriarcado, o racismo, a misoginia e a dominação de classe. Essa naturalização da realidade passa pelas estratégias de colonização, opressão, doutrinação, mercantilização da vida e medicalização da saúde próprias do capitalismo e do neoliberalismo. A educação popular é um levante contra tudo isso, é uma pedagogia da indignação.

Diferente da educação bancária, que adapta e ajusta o ser humano à ordem social capitalista, a educação popular compreende que o ser humano é uma construção histórica e por isso pode se reinventar. E, como toda prática social, a educação é um ato político que tem relação com a construção do mundo e da existência humana. Nesse sentido, é uma pedagogia libertadora.

Qual o lugar da Educação Popular no Sistema Único de Saúde (SUS)?

A Educação Popular é muito importante para o SUS. Na verdade, alguns movimentos de Educação Popular, como o Movimento Popular de Saúde, o MOP, surgiram no contexto de implantação  de serviços comunitários de saúde, participaram da luta pelo direito à saúde e se alinharam- ao movimento de reforma sanitária e de construção do SUS. Articulada aos movimentos de base, a Educação Popular foi e é muito importante no processo de conquista do direito à saúde.

No final dos anos de 1990, surgiu a Rede Nacional de Educação Popular e Saúde, a RedePop, depois, foi criado o Grupo Temático de Educação Popular em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Em 2003, foi criada a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde, a Aneps e, em 2005, a Articulação Nacional de Extensão Popular, a Anepop. Até que, em 2013, a educação popular foi institucionalizada como uma política nacional, a PNEPS-SUS. A partir daí, ganhou força, foi semeada por projetos e iniciativas que se desdobraram da política, como foi o EdpopSUS, o Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde, coordenado pela Escola Politécnica, que formou mais de 11 mil trabalhadores em 15 estados brasileiros. Houve ainda outras iniciativas , todas com base nos princípios estabelecidos na política: diálogo, problematização, participação, construção compartilhada de conhecimento, construção de um projeto popular e democrático para a saúde, amorosidade e emancipação humana.

A educação popular acontece na relação dos serviços com a população, principalmente na Atenção Básica, nos territórios cobertos pela Estratégia Saúde da Família e, especialmente, pelos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Vigilância em Saúde que atuam junto à população e fazem a mediação entre os saberes técnico-científicos da saúde e os saberes e práticas populares. Os agentes de saúde são importantes educadores e cuidadores, são trabalhadores e trabalhadoras que colaboram muito com a construção de um modelo de atenção com base na realidade e nos modos de vida das pessoas e comunidades.

O lugar da Educação Popular no SUS é um lugar estratégico, porque valoriza as experiências de vida, de trabalho, de luta e de resistência como fontes de aprendizagem e saber; reconhece a cultura, a arte, a espiritualidade e os saberes populares como dimensões fundamentais para a construção do vínculo comunitário e para a produção do cuidado. Além disso, a educação popular reforça a indissociabilidade entre educar e cuidar, atos que devem estar comprometidos com a formação humana e com a construção de um mundo livre da opressão.

Quais ações de Educação Popular estão sendo ou podem ser realizadas no contexto da pandemia?

Muitas coisas estão acontecendo. Em função da pandemia, nós, trabalhadores da saúde, tivemos que incorporar nos nossos afazeres ações de enfrentamento do Covid-19. Nosso compromisso com a saúde pública é muito grande. Ter que enfrentar essa pandemia no momento em que o SUS tem sido desmantelado e reduzido, os trabalhadores cada vez mais precarizados, os movimentos sociais atacados e as políticas dirigidas à lógica privada e liberal, é muito difícil. Mas como nosso verbo é o “esperançar”, a gente investe na possibilidade de uma virada, de um despertar da participação popular e democrática diante dessa crise sanitária, política e humanitária.

Precisamos considerar que a prevenção do Covid-19 passa, hoje, por medidas de higiene, pelo isolamento e o distanciamento social - e sabemos a dificuldade que isso representa para as classes populares, para os trabalhadores precarizados, para os que não têm proteção social, principalmente, para os que vivem em extrema pobreza. Então, a Educação Popular é importante porque reconhece as condições de vida, atua a partir da realidade e promove e organiza redes de apoio social que, neste momento, são fundamentais.

Os coletivos de Educação Popular e Saúde continuam investindo em ações que possam ampliar o diálogo entre os trabalhadores da saúde e a população, nas comunidades, nos diferentes territórios, ouvindo as pessoas e problematizando questões, como: O que representa a pandemia? O que os estudos e as experiências dizem? Quais medidas estão sendo tomadas pelos governos? Quais medidas podemos tomar diante do risco de adoecer e morrer? Como podemos nos cuidar? Como podemos cuidar do território?

No âmbito dos projetos, articulações e movimentos nacionais, foram intensificadas as reuniões e as atividades mediadas por tecnologias de comunicação. O GT da Abrasco, além das reuniões onde compartilhamos nossas ações e buscamos conjugar outras, promoveu recentemente um painel temático “Educação Popular em Saúde e a Pandemia”. A Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde, a Aneps, em conjunto com a Rede de Educação Popular em Saúde, a Redepop, o Movimento Popular de Saúde, o MOPS, e a rede de Práticas Integrativas e Complementares iniciaram encontros de troca de experiências entre agentes de saúde e outros profissionais da Atenção Básica sobre suas ações educativas no território. A partir desses encontros, surgiu o movimento ‘O SUS nas ruas’. Desse movimento, se desdobrou a proposta de um curso de Educação Popular em Saúde para abordar o trabalho dos agentes de saúde e lideranças comunitárias durante o enfrentamento da pandemia.

A também professora-pesquisadora da EPSJV, Vera Joana Bornstein, está participando da construção desse curso e também, pela escola e pela Aneps, da organização do Encontro Internacional de Educação Popular e Cidadania. Esse encontro aconteceria agora, em junho de 2020, no Rio de Janeiro, e foi adiado, mas passou a organizar um painel virtual chamado “Diálogos”, abrangendo reflexões sobre o contexto atual. Quer dizer, a Escola Politécnica tem atuado junto aos coletivos de Educação Popular e colaborado com essas iniciativas.

Enfim, são pesquisadores, professores, educadores, trabalhadores da Atenção Básica, de escolas técnicas, muita gente comprometida com a compreensão do que está acontecendo e com o fortalecimento da participação popular na gestão da vida coletiva e comunitária. Sabemos que muitos agentes de saúde são hoje educadores populares formados pelo EdPopSUS e acreditamos que isso faz diferença na produção do cuidado. A Educação Popular valoriza a arte e as práticas integrativas e populares de cuidado, que, neste momento, são de grande relevância. Estamos percebendo que não vivemos sem cultura e que a arte é uma via de bem-estar. E também estamos aprendendo que a saúde mental tem a ver com o modo como organizamos a vida. O capitalismo é adoecedor.

Quais os desafios da Educação Popular no enfrentamento da pandemia e no pós-pandemia?

São muitos os desafios, e não só da Educação Popular, mas de todos que se comprometem com o direito à saúde e à vida. O mais imediato é conseguir resistir a toda a necropolítica que está sendo imposta pelos governos, diminuir os danos da pandemia, fortalecer as redes de apoio para que as populações vulneráveis consigam o mínimo das condições necessárias para sobreviver, principalmente nas favelas, periferias e territórios indígenas. E também organizar os trabalhadores para lutarem por seus direitos, incluindo o direito urgente aos equipamentos de proteção para os trabalhadores da saúde que estão morrendo em função do trabalho. É um absurdo a precarização do trabalho e da vida em nome da economia.

De forma permanente, temos o desafio do diálogo. O negacionismo e o obscurantismo dificultam o diálogo, quando não o negam, por isso, nos desafiam a insistir no diálogo como possibilidade de transformação do mundo, por ser um caminho democrático. Para isso, precisamos estar dispostos a ouvir e interpretar as classes populares, como observava Victor Valla. Compreender a construção do conservadorismo, por exemplo, é um passo importante para poder problematizá-lo. As experiências de Educação Popular mostram a potência do diálogo no questionamento do mundo como algo dado e também na construção de outras formas de sociabilidade que passam por relações de solidariedade e empatia.

É preciso também articular os movimentos e iniciativas que estão surgindo durante a pandemia. Isso será muito importante na passagem para o que vem sendo chamado de um novo “normal”; e que não podemos aceitar como “normal”, porque o mundo que queremos, e pelo qual precisamos lutar, não é um mundo em que alguns podem morrer em nome da economia, porque é exatamente o modelo econômico capitalista que tem nos desumanizado e nos destruído.

O desafio é grande, muito grande, temos que ter fôlego e perseverança, porque não será fácil, não está sendo. Mas precisamos tentar caminhos em outro sentido, como a construção de sistemas políticos capazes de promover o bem viver. A educação popular em saúde tem muito a colaborar nesse sentido.