Por que o acaraje se tornou patrimonio nacional

Escultura em homenagem às baianas de acarajé está localizada no Largo de Amaralina, há pouco mais de 500 metros do hotel.

Celebrado no dia 22 de agosto, o Dia do Folclore tem como um dos seus símbolos as baianas de acarajé. Elas que se transformaram em uma das figuras típicas da tradição baiana vendendo seus deliciosos quitutes apresentam a cidade, os costumes e os sabores de Salvador como ninguém.

Homenagens para elas que são memória histórica e afetiva da Bahia não faltam. Exemplo disso é o Largo das Baianas, localizado em Amaralina, próximo ao Hotel Verdemar. O local que passou recentemente por uma intervenção e ganhou uma escultura do artista Bel Borba. Conheça a seguir um pouco mais dessa história!

O Largo das Baianas, em Amaralina, possui acomodação para dez baianas de acarajé, além de espaço para roda de capoeira. No local, também foram implantados parque infantil, equipamentos para academia de ginástica e quiosque para a comercialização de coco.

O grande destaque fica por conta de uma escultura, assinada por Bel Borba, em homenagem as quituteiras que são símbolos do estado. A estátua consiste em uma baiana vestida com babados e saia rodada, torço, panela entre as pernas e colher de pau em punho, preparando massa de acarajé. A peça mede 4 metros de altura, com peso de 16 toneladas.

A história da baiana do acarajé começa no período da escravidão, quando os negros chegaram à Bahia, a partir do século XVI, com seus costumes e religião. O acarajé e o abará, principais produtos do tabuleiro da baiana, eram alimentos para o corpo e para o espírito, preparados nos terreiros de Candomblé para cultuar os orixás Iansã e Xangô.Já no final do século XIX, as mulheres tinham a permissão dos senhores para sair, ao final do dia, com o tabuleiro na cabeça protegida por um torço de pano da costa para vender os bolinhos feitos de massa de feijão fradinho descascado, cebola, gengibre e camarão. Depois da abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, a tradição continuou. Até meados da década de 70 do século XX, as baianas mantinham o costume de vender o produto somente à tarde e à noite. Depois que o acarajé caiu no gosto do turista, passou a ser um dos cartões de visita da culinária baiana e a ser vendido durante o dia.

Em 2012, as baianas foram reconhecidas como Patrimônio Imaterial da Bahia e tiveram seu ofício incluso no livro de Registro Especial dos Saberes e Modos de Fazer, do  Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia - IPAC.

01/12/2004 - 21h38 LUIZ FRANCISCO
da Agência Folha, em SalvadorO acarajé, o mais famoso bolinho da culinária baiana, foi tombado nesta quarta-feira pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio nacional. A decisão foi tomada pelo Conselho Consultivo do Iphan, que se reuniu em Salvador (BA).Na mesma reunião, a atividade das "baianas" de acarajé também foi reconhecida e regulamentada como profissão --somente em Salvador existem cerca de 4.000 mulheres que exercem a atividade.Outra decisão tomada pelo Iphan foi o tombamento do Terreiro de Candomblé Ilê Maroiá Láji, de Olga de Alaketu, em Brotas (centro). "As decisões tomadas foram fundamentais para a preservação da cultura e da identidade baianas", disse o ministro Gilberto Gil (Cultura). O pedido de tombamento do terreiro foi encaminhado ao Iphan há três anos.

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    O bolinho de feijão fradinho recém-frito contém história em cada gota de dendê que sua massa absorveu. Oferenda para Iansã no candomblé, o acarajé é a comida de rua mais antiga do Brasil e sua origem, maneira de fazer e significado na cultura popular são indissociáveis das baianas, figuras bastantes presentes no estado da Bahia, mas que se encontram por todo o território nacional.

    A atividade das baianas de acarajé foi registrada como patrimônio cultural imaterial do Brasil em 2005 no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e seu registro passa pelo processo de revalidação.

    Marina Lacerda, servidora do Iphan e coordenadora de identificação e registro substituta do órgão, explica que, a cada dez anos, se reavaliam as mudanças sofridas pelo bem cultural. É uma oportunidade para refletir sobre as ações de salvaguarda feitas pela instituição nesse período e ver o que precisa melhorar.

    "Se há novas demandas, se esse bem cultural se ampliou ou se ele passou a não ser mais representativo para a comunidade", conta. 

    Segundo a Associação Nacional das Baianas de Acarajé e Mingau, Receptivos e Similares (ABAM), a estimativa é que só em Salvador haja cerca de 3,5 mil baianas e aproximadamente 10 mil pessoas trabalhando nessa atividade em todo o Brasil, das quais 90% são mulheres.

    História nos tabuleiros

    Por que o acaraje se tornou patrimonio nacional
    Embora passe por um processo de "patrimonialização", a receita do acarajé e o ofício das baianas não são engessados.| Marcelo Andrade/Pinó/Gazeta do Povo

    A atividade da baiana de acarajé remonta ao início do século 18, quando escravas de ganho saíam para vender doces e salgados nas ruas de Salvador, Recife e Rio de Janeiro, e levar o lucro aos seus senhores. "As filhas de Iansã mercavam o acará para obter o dinheiro das suas obrigações na liturgia dentro do terreiro", explica Rita Santos, coordenadora nacional do conselho executivo da ABAM.

    A figura da baiana de acarajé é retratada ao longo dos séculos como uma mulher negra, quase sempre corpulenta, vestida de bata e saia volumosa, de turbante na cabeça e muitos adereços como colares, anéis e pulseiras. Pintadas ou fotografadas, essas mulheres aparecem sentadas atrás de seus tabuleiros com as panelas e bacias dispostas à sua frente.

    "A mulher preta foi a primeira empreendedora do Brasil", define Érica Vargas, baiana de Salvador que mora desde 1989 em Curitiba. 

    À frente da barraca Pedacinho da Bahia, Érica serve acarajé, vatapá, bolinhos, bobó de camarão, tapiocas e suco de caju natural em nove feiras semanais na capital paranaense. A cozinheira sucedeu a mãe, Maria do Carmo Vargas e Sousa, no ofício.

    "Ela trabalhava com artesanato, mas teve a oportunidade de vir a Curitiba num evento servir comida baiana em um estande de uma feira da área. Vendeu em dois dias todo o acarajé que tinha programado para dez", diverte-se Érica.

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    A massa do acarajé é preparada à mão diariamente.| Marcelo Andrade/Pinó/Gazeta do Povo

    Todos os dias, ela repete os gestos e preparos que aprendeu em família – irmãs, primas e tias dividiam as funções na cozinha e na barraca de feira, de modo que ninguém tinha um lugar fixo. "Você era caixa se precisava de alguém no caixa, fritava o acarajé, servia os clientes", relembra Érica.

    O feijão fradinho é pilado à mão com cebola e sal até virar uma pasta, armazenada em grandes potes plásticos que aguardam ao lado do fogareiro, aos fundos da barraca. Moldados e fritos no azeite de dendê na hora, o bolinho é rapidamente cortado ao meio e recheado com vatapá, caruru, vinagrete, camarões e um molho de pimenta próprio.

    "Eu sei quando o acarajé está pronto de olho. Não conto os minutos, cada dia leva um tempo", diz a cozinheira, formada e pós-graduada em Gastronomia.

    "Ajustei algumas coisas em receitas tradicionais depois de estudar, mas tem coisas que não se mexem, por isso bato a massa à mão", resume. "Minha mãe acreditava que Iansã tinha passado essa receita para ela, então eu continuo preparando da mesma maneira", diz. Dona Maria morreu em 2020 e fazia suas oferendas à orixá toda quarta-feira.

    Ofício "tombado"

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    O ofício das baianas de acarajé em si é recente, mas a história delas remonta a 300 anos.| Francisco Moreira da Costa/divulgação Iphan

    Na patrimonialização, o registro no Livro dos Saberes está para o patrimônio imaterial assim como o tombamento está para o patrimônio material. Porém, a função do registro passa longe de manter uma prática "igual era antigamente": é um pontapé inicial para que a atividade tenha mais apoio do Estado e siga sendo praticada.

    "Não é catalogar de maneira folclórica e memorialista, e sim reconhecer sua importância para que o Estado garanta os meios de produção e reprodução desses bens culturais no presente e no futuro", resume a historiadora e pesquisadora do patrimônio alimentar Gabriella Pieroni, diretora da Associação Slow Food Brasil. 

    Por ser o registro de algo vivo, a patrimonialização não é feita para receitas, e sim para o ofício. "O patrimônio é vivo e a cultura está em movimento. Patrimonializar uma receita seria engessar uma cultura", diz Gabriella.

    Marina Lacerda, do Iphan, complementa: "A baiana de acarajé não virou quituteira porque tem um talento. Ela está vestida de acordo com a obrigação de santo, e o preparo do acarajé vai muito além da receita. O Iphan trabalha com a perspectiva de continuidade histórica, por isso um ofício para ser registrado tem que ter pelo menos três gerações de pessoas o praticando".

    A gastronomia de um povo é uma das expressões culturais mais palpáveis, tanto pela sua natureza enquanto alimento, quanto pela sua repetição cotidiana – afinal, planta-se e come-se todos os dias.

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    Érica sucede a mãe à frente da barraca Pedacinho da Bahia. em Curitiba.| Marcelo Andrade/Pinó/Gazeta do Povo

    Quando se tem um ofício ligado à comida de rua sendo reconhecido como patrimônio cultural imaterial, as atividades ligadas à produção daquele alimento são fortalecidas, e as solicitações e medidas requeridas por associações representativas, como a ABAM, ganham mais peso. É o caso das baianas do acarajé.

    "A gente fala com a prefeitura para ver alguma liberação de ponto, explica a importância cultural e histórica que a atividade tem e fala sobre o registro como bem cultural nacional", exemplifica Rita. 

    Apesar de o Iphan ser uma autarquia octogenária, a preservação de patrimônio cultural imaterial é uma política pública recente: data de 2000, quando foi criado o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, seguindo a definição de bens culturais descrita no artigo 216 da Constituição Federal de 1988.

    "O Brasil é um Estado multiétnico e multicultural. Todos têm o direito de preservar sua identidade cultural e sua história, então o registro como patrimônio cultural imaterial é um reconhecimento da pertença dessa atividade à História do Brasil", define o antropólogo Raul Lody, que esteve na coordenação do projeto de patrimonialização do ofício das baianas no início da década de 2000. Lody é autor do livro "Santo Também Come" (Ed. Pallas, 2006), em que trata de ingredientes, receitas e rituais de origem africana no Brasil.

    Registro dos Saberes

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    Vitrine da barrada de Érica Vargas em Curitiba, tematizada com adornos que remetem à Bahia.| Marcelo Andrade/Pinó/Gazeta do Povo

    Outros bens culturais ligados à gastronomia registrados pelo Iphan são o ofício das paneleiras do bairro Goiabeiras de Vitória, no Espírito Santo (2002); o modo artesanal de fazer o queijo minas nas regiões do Serro, Serras da Canastra e do Salitre, em Minas Gerais (2008); o sistema agrícola tradicional do Rio Negro, no Amazonas, com o cultivo da mandioca-brava (2010); a produção tradicional da cajuína e as práticas associadas à sua produção, no Piauí (2014); o modo de fazer cuias no Baixo Amazonas, no Pará (2015); as tradições doceiras da região de Pelotas, no Rio Grande do Sul (2018); e o sistema agrícola tradicional de comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (2018).

    A feira de São Joaquim, na Bahia; os ofícios das quitandeiras de Minas Gerais e das tacacazeiras da Região Norte; o modo de fazer queijo artesanal serrano em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul; a pesca artesanal com auxílio de botos; e o engenho artesanal de farinha de mandioca, ambos em Santa Catarina, também são bens culturais em processos de registro junto ao Iphan.

    O registro do modo artesanal de fazer queijo minas também passará pelo processo de revalidação em breve e uma das requisições que podem aparecer nos documentos será a de ampliar as localidades descritas no Livro dos Saberes junto das regiões do Serro, Serras da Canastra e do Salitre.

    "Os pareceres técnicos indicam a discussão. Quem define o que será incluído no registro é o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, constituído por membros da sociedade civil, ministérios e universidades e pessoas ligadas a institutos de patrimônio, como arqueólogos e antropólogos", explica Marina.

    No caso das baianas de acarajé, o registro abrange todo o território nacional. Na construção dos documentos enviados pela ABAM à Câmara Setorial do Patrimônio Imaterial para a revalidação (estágio anterior ao Conselho Consultivo), foram realizadas uma série de ações junto a baianas de todo o Brasil e exterior – há baianas em Portugal, Espanha, França, Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo – para reunir as solicitações e entendimentos de diferentes regiões e realidades.

    "Esse ofício existe há mais de 300 anos", diz Rita. "Hoje, muitas mulheres saem da Bahia e quando não conseguem trabalho, fazem acarajé. Nosso papel é assegurar que elas tenham condições de continuar por muitos e muitos anos", conclui.