O que marginalizou o Legislativo durante a ditadura

Marco Antonio Reis | 27/03/2014, 20h15

O Golpe de 1964, que mergulhou o país em mais de duas décadas de arbítrio, não foi gestado apenas nos quartéis. Nos primeiros atos, o movimento recebeu apoio considerável da sociedade e de seus representantes políticos. O próprio Congresso Nacional, que durante a Ditadura teve seus poderes limitados pelos militares, teve um papel dos mais importantes no aumento da temperatura política e na própria deposição do presidente João Goulart. Nos debates em Plenário, era possível perceber o embate duro, radicalizado, que permitiria pouco espaço para solucionar as crises políticas.

A partir de 25 de agosto de 1961, data da renúncia do presidente Jânio Quadros, até o fatídico 1º de abril de 1964, a temperatura política foi sempre das mais elevadas. A Campanha da Legalidade, em 1961, garantiu a posse de João Goulart, mas seu curto governo foi marcado pela tensão política: o presidente da República só passou a ter plenos poderes depois de plebiscito que deu fim ao parlamentarismo de ocasião, em janeiro de 1963. Nesse contexto de discursos inflamados e tentativas de apaziguamento, alguns parlamentares se destacaram.

Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a Presidência; Ranieri Mazzilli, que assumiu o governo temporariamente à espera do primeiro general-presidente; Filinto Muller, associado a ditaduras desde o Estado Novo; Pedro Aleixo, que se tornou vice de Costa e Silva, mas não teve a benção dos militares para assumir; Arthur Virgílio e João Agripino, que duelavam na tribuna sobre os rumos do país; Leonel Brizola, incendiário para uns, revolucionário para outros; e Tancredo Neves, mestre na arte da conciliação e que ajudaria a conduzir o país para fora da tormenta do arbítrio. São nomes que, para o mal ou para o bem, dão a medida da importância do respeito às diferenças políticas e da preservação das instituições democráticas.

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Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Sumário

1. Introdução. 2. Os dois primeiros Atos Institucionais, a fragilização do sistema de freios e contrapesos e a ideia de poder constituinte permanente. 3. A Constituição de 1967. 4. O Ato Institucional no 5: o Direito a serviço do “Poder”. 5. O final do regime militar. 6. Conclusão.

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A data escolhida pelos militares para assumir o poder no Brasil foi no mínimo inusitada. Em primeiro de abril de 64 a presidência é declarada vaga. O presidente João Goulart acabava de ser deposto, acusado de tramar a favor do comunismo. Não era uma brincadeira de primeiro de abril, e a partir dali o país teria 20 anos de ditadura militar. Um período que ficou marcado pelas perseguições políticas, pelo cerceamento da liberdade e pela luta de homens e mulheres contra essa situação.

E o Congresso Nacional foi palco de acontecimentos que marcaram a história brasileira. Manter o poder legislativo funcionando era uma forma de dar uma aparência de normalidade ao país, como explica o professor de História da Universidade de Brasília, Antônio Barbosa.

"De 64 a 84, nos vinte anos do regime militar, o Congresso Nacional, até para dar um ar de normalidade institucional ao país, ele foi mantido funcionando, com raríssimas exceções em que ele entrou em recesso. Mas é um poder legislativo extremamente emasculado, fragilizado, que não pode ultrapassar certos limites, aí entra o caso das cassações"

Nesse período, foram cassados 168 deputados, que perderam o mandato em nome da segurança nacional. Além da cassação, eles perdiam os direitos políticos, ou seja, eram sumariamente retirados da vida pública no Brasil. Logo depois do golpe, foram atingidos não apenas deputados, mas todas as personalidades identificadas com o governo deposto, pessoas que se mostravam a favor das reformas de base que Jango defendia. Deputados como Leonel Brizola e Francisco Julião estavam na primeira lista das cassações. Mas não foram apenas deputados que perderam o mandato. Antônio Barbosa relembra que um importante senador também foi cassado.

"Num primeiro momento é o caráter subversivo, de esquerdismo, que está sendo utilizado pelo poder militar. Mas ao tempo a cassação vai ser um instrumento utilizado para tirar do caminho lideranças civis potencialmente fortes que de alguma forma poderiam significar algum obstáculo ao poder militar que estava se instalando. O melhor exemplo que a gente dá é o de Juscelino Kubitschek. Juscelino é um dos primeiros a ser cassados, em junho de 64, e de esquerdista ele jamais poderia ter sido acusado"

Apenas no dia seguinte ao da publicação do Ato Institucional número 1, 40 deputados perderam o seu mandato. Isso aconteceu 10 dias após o golpe. Nos próximos meses muitos outros também seriam cassados.

Mas em 66, o então presidente da Câmara, Adauto Lúcio Cardoso, fez um acordo com Castelo Branco para que o Congresso fosse preservado dali em diante e não houvesse mais cassações. Só que essa informação foi publicada na imprensa, e para demonstrar a autoridade do governo militar, Castelo Branco cassou mais seis deputados em novembro daquele ano. Entre os cassados, estava Doutel de Andrade, deputado do PTB de Santa Catarina. Quem conta a reação do deputado ao receber a notícia da cassação é Lígia Doutel de Andrade, sua esposa.

"O Adauto ficou surpreso e ao mesmo tempo irritado, pois a palavra que havia sido dada a ele foi descumprida. O Doutel, quando se viu cassado, foi à casa do Adauto no Rio e disse: Presidente, eu não reconheço a minha cassação. Não reconheço autoridade moral e política para o regime militar me cassar o mandato que foi outorgado pelo povo brasileiro, que é o único que pode suprimi-lo. E eu vou voltar ao Congresso, vou me sentar lá e exercer o meu mandato"

A Câmara estava em recesso branco pois as eleições se aproximavam. Adauto Lúcio Cardoso disse que iria reabrir o Congresso e deu início à convocação dos deputados. Eles foram chegando aos poucos, sob o olhar atento da opinião pública, que via com muita emoção a primeira resistência do Congresso desde o golpe. Mas aquela rebeldia não seria recebida com tranqüilidade, como relembra Lígia.

"Isso começou a irritar muito os militares, principalmente o marechal Castelo Branco, e ele acabou mandando cortar a água e a luz do Congresso Nacional. E finalmente de madrugada, eles invadiram o Plenário. Estavam todos os deputados lá e o presidente da Câmara. E o Doutel se encaminhou para um militar e perguntou "O que os senhores desejam". Ele disse ´Nós queremos que os senhores se retirem do Plenário´. Então o Doutel disse ´Retirem-se os senhores, essa é a nossa Casa, essa é a casa do povo, vocês é que são os intrusos´"

Lígia foi eleita deputada naquelas eleições, depois de apenas 30 dias de campanha. Em 69, ela também teria seu mandato cassado.

Costa e Silva assume a presidência em 67, em um momento onde os Atos Institucionais 1 e 2, que davam o poder de cassar o mandato dos políticos, não estavam mais em vigor. A falta de um controle maior sobre os parlamentares inquietava os militares, como detalha o jornalista Carlos Chagas.

"Então o Costa e Silva, no ano de 67, não cassou e nem podia cassar nenhum mandato. No ano de 68, os militares radicais, aquela gorilada toda, eles estavam na ponta dos cascos. Os comunistas estão voltando, olha aí a movimentação estudantil, a movimentação sindical. E em dezembro de 68, eles conseguem dobrar a resistência do Costa e Silva, e ele assina o Ato Institucional Número 5"

Em 13 de dezembro de 68 entrou em curso o período mais severo do regime militar, época que o jornalista Elio Gaspari chama de ditadura escancarada. E o pretexto usado para o AI 5 envolveu a cassação de um deputado. Nas vésperas do sete de setembro, o deputado Márcio Moreira Alves fez um rápido discurso no pinga fogo, onde conclamava o povo a não sair às ruas para o desfile militar e pedia também às mocinhas que não dançassem com os cadetes nos bailes da independência. Foi um discurso sem maiores repercussões, mas foi a desculpa para que os militares voltassem a ter um controle maior sobre o Congresso. Como o governo não podia cassar o mandato de Moreira Alves, o Supremo Tribunal Federal foi acionado. Mas o Supremo pediu a autorização da Câmara para iniciar o processo de cassação, como explica Carlos Chagas.

"O Supremo pede a Câmara então para que dê ou não dê licença para cassar o Marcito. Aí o Congresso embuiu-se de um pouco de dignidade, de orgulho e disse não, não deram a licença para cassar o Marcito. Isso foi 12 de dezembro de 68. Pois no dia 13, a milicada pressiona o Costa e Silva, reúne o ministério, o conselho de segurança, e todos votam pedindo o Ato Institucional numero 5. Aí foi um horror total, foi cassação pra todo lado, listas e listas.

O governo Médici foi o mais agressivo em termos de perseguições políticas, e ironicamente nenhum parlamentar foi cassado nesse período, de outubro de 69 a março de 74. Mas no governo seguinte, de Ernesto Geisel, o cerceamento aos parlamentares de oposição ocasionou mais cassações. O professor Antônio Barbosa detalha uma cassação desse período.

"O deputado Alencar Furtado, do MDB do Paraná, fez um discurso na televisão no horário eleitoral, e indiretamente falava na tortura. Então ele falava as "viúvas do quem sabe", as "viúvas do talvez". Era um discurso dramático, sem a menor dúvida, mas até meio poético. Bastou isso para que o governo Geisel o cassasse"

Alencar Furtado diz que a participação naquele programa de tv, em junho de 77, não foi heroísmo, mas apenas a luta contra os desaparecimentos e os atos de tortura daquele período.

"Eu, como líder, não poderia deixar de exteriorizar a angústia nacional que visitava os nossos gabinetes todo dia. O sofrimento era grande, a tortura, os desaparecimentos de cidadãos, o assassinato, exílio, cassação. Então eu tinha por dever, não havia nada de heroísmo nao, mas por dever denunciar isso à nação o que estava havendo"

O parlamentar perseguido pela ditadura relembra que ser cassado naquela época era motivo de orgulho para um deputado, ao contrário do que acontece nos dias de hoje.

"Naquela época, o camarada, quando era cassado como eu fui e outros foram, era uma condecoração, porque a gente lutava por liberdade, democracia, lutava contra uma ditadura para que a gente pudesse respirar liberdade nesse país. Hoje cassação é sinônimo de execração, é algo que condena. Naquela época era uma absolvição, a gente ficava orgulhoso apesar do vexame da cassação"

Alencar Furtado diz que, do alto dos seus oitenta anos, gostaria de ver o Brasil democratizado e com dirigentes que pudessem servir de exemplo para as novas gerações.

De Brasília, Daniele Lessa