Artigos • • https://doi.org/10.1590/S0100-512X2006000200011 copiar Luís C. G. Oliva Sobre o autor
O artigo pretende examinar os antecedentes do conceito pascaliano de natureza humana, desde a matriz aristotélica da idéia de natureza, passando pela absorção do conceito pelo pensamento cristão de Agostinho e Tomás, pela constituição do conceito teológico de pura natureza na escolástica tardia e sua crítica por Jansenius. Pascal aprofunda essa crítica, mostrando que a completude e a suficiência pressupostas na idéia de pura natureza são incompatíveis com a atual condição do homem, embora a infelicidade humana aponte para o fato de que a natureza humana permanece relevante como uma exigência irrealizável. Pascal; Natureza Humana; Pura natureza; Incompletude
The paper intends to examine the antecedents of the Pascalian concept of human nature, from the Aristotelian matrix of the idea of nature, going through the Christian absorption of this concept in Augustine and Thomas, to the elaboration of the theological concept of pure nature in Late Scholastics and its critic by Jansenius. Pascal deepens this criticism, showing that the completeness and sufficiency presupposed in the idea of pure nature are incompatible with the present human condition, though human unhappiness points to the fact that human nature remains relevant as an non-achievable demand. Pascal; Human Nature; Pure Nature; Incompleteness
ARTIGOS Antecedentes filosóficos e teológicos do conceito pascaliano de natureza humana Luís C. G. Oliva Professor de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo (USP). RESUMO O artigo pretende examinar os antecedentes do conceito pascaliano de natureza humana, desde a matriz aristotélica da idéia de natureza, passando pela absorção do conceito pelo pensamento cristão de Agostinho e Tomás, pela constituição do conceito teológico de pura natureza na escolástica tardia e sua crítica por Jansenius. Pascal aprofunda essa crítica, mostrando que a completude e a suficiência pressupostas na idéia de pura natureza são incompatíveis com a atual condição do homem, embora a infelicidade humana aponte para o fato de que a natureza humana permanece relevante como uma exigência irrealizável. Palavras-chave: Pascal; Natureza Humana; Pura natureza; Incompletude ABSTRACT The paper intends to examine the antecedents of the Pascalian concept of human nature, from the Aristotelian matrix of the idea of nature, going through the Christian absorption of this concept in Augustine and Thomas, to the elaboration of the theological concept of pure nature in Late Scholastics and its critic by Jansenius. Pascal deepens this criticism, showing that the completeness and sufficiency presupposed in the idea of pure nature are incompatible with the present human condition, though human unhappiness points to the fact that human nature remains relevant as an non-achievable demand. Keywords: Pascal; Human Nature; Pure Nature; Incompleteness Segundo Bernard Tocanne, o termo physis, ou natureza, encontra-se já na língua homérica, ligando-se, de um lado, à idéia de nascimento ou crescimento aplicada a plantas ou produções cujo desenvolvimento lembra o de um vegetal. O ponto de partida, portanto, é a imagem de um ser vivo que se desenvolve espontaneamente. De outro lado, o termo liga-se ao estado ou produto final desse crescimento espontâneo.
Ainda segundo Tocanne, o termo se difunde amplamente a partir do século V, assumindo uma pluralidade de significados, organizados, contudo, em torno de três grandes valores: 1) um valor ativo e dinâmico, ligado à imagem da geração e do crescimento, apontando para as idéias de espontaneidade e inatidade; 2) um valor estático, ligado à idéia de permanência diante do devir fenomênico; 3) finalmente, um valor normativo, já que o processo de geração e crescimento se dirige a um fim determinado. Ora, esses três valores estão presentes já na apresentação aristotélica do conceito de natureza. Logo no início do livro II da Física, Aristóteles destaca o caráter ativo e espontâneo dos seres naturais, opondo natureza e arte. Os animais, as plantas e os corpos simples (terra, fogo, água e ar) são da natureza; em contraste com uma cama ou uma peça de roupa, que são produtos da arte. Os primeiros distinguem-se por possuírem, em si mesmos, um princípio de movimento e parada, seja quanto ao lugar, ao crescimento ou à alteração. Já a cama não tem nenhuma tendência natural à mudança, a não ser na medida em que, acidentalmente, é feita de madeira. Nessa medida, poderá apodrecer ou mesmo brotar, mas não enquanto é cama, produto da arte, e sim enquanto, por ser de madeira, tem uma natureza. "Pois a natureza é um princípio e uma causa de movimento e de repouso para a coisa na qual reside imediatamente, por essência, e não por acidente." Enquanto cama, o referido objeto não tem uma natureza, já que o princípio de sua fabricação está fora dela, no artesão que a construiu. Daí que a natureza deva ser vista como um princípio de atividade não apenas não acidental, mas também imanente. Mas o que são esses seres que têm uma natureza? E aqui já passamos ao segundo aspecto destacado por Tocanne. Diz Aristóteles: "Ora, todas estas coisas são substâncias, pois são sujeitos e a natureza está sempre em um sujeito." O caráter substancial dos seres naturais é um elemento fundamental da concepção aristotélica. No capítulo 2 das Categorias, diz Aristóteles:
Donde decorre que Aristóteles possa definir a substância, no capítulo 5, como aquilo que nunca se predica de um sujeito, nem em um sujeito, por exemplo, "este homem" ou "este cavalo". Como sujeito de predicados, a substância pode mudar, encaminhar-se de um estado a outro, atualizar suas potencialidades, permanecendo, contudo, idêntica. Por isso, dirá Aristóteles, "a principal propriedade da substância parece ser isto: que, apesar de permanecer idêntica, uma, e a mesma, é capaz de receber qualificações contrárias". A natureza é um princípio imanente de aquisição de predicados; princípio, portanto, indissociável da substância que os suporta. Mas não de quaisquer predicados, e sim apenas daqueles conformes à respectiva natureza, a saber, os atributos essenciais. Diz Aristóteles, "por exemplo, para o fogo o transporte para o alto; pois isto não é natureza, não tem uma natureza, mas isto é por natureza e conforme à natureza". É com estes pressupostos, o caráter de princípio de movimento e a vinculação com a substância, que Aristóteles empreenderá a complexa discussão visando a definir a natureza como matéria ou como forma. Por um lado, é a matéria, o sujeito imediato e informe de cada coisa natural, que permanece sob as mudanças, garantindo a identidade da substância. Por outro lado, a matéria é pura potencialidade, enquanto a forma é o ato da coisa. Não se pode dizer que algo é conforme à arte ou conforme à natureza quando tratamos da pura potência. Se a permanência do sujeito é dada pela matéria, a naturalidade dele não pode dispensar a forma, que o atualiza segundo seu princípio interno. Sendo assim, a palavra natureza deve ser entendida nos dois sentidos: forma e matéria, ambos objetos do estudioso da natureza; mas, sobretudo, no de forma. Resta ainda o último aspecto destacado por Tocanne, ao qual Aristóteles dedica todo o capítulo oito do livro II: a finalidade contida na natureza. A esta altura do livro, o autor já expôs sua doutrina das quatro causas e mostrou que só de posse desse conhecimento o físico poderá ter a ciência da natureza, mas é preciso antes de tudo refutar a objeção de que a natureza não seria uma das coisas que agem em vista de um fim:
São vários os argumentos que Aristóteles apresenta para defender a finalidade contra o puro mecanicismo. O que nos importa, no entanto, é aquilo que se deixa perceber por entre os argumentos: a causa final é constitutiva da própria idéia de natureza. Não há um princípio de movimento e repouso sem o fim, que representa o acabamento perfeito desse ser em movimento. Diz Aristóteles:
Desse modo, a exclusão da finalidade seria a exclusão da própria natureza, diluindo completamente a distinção entre o natural (que é por essência) e o fortuito (acidental). O Cristianismo e Santo Agostinho A idéia de natureza sofrerá importantes transformações ao introduzir-se, no século II, no pensamento cristão nascente. A concepção cristã de natureza sobrepõe-se à helênica, colocando a exigência teológica de purificar o tema de seus elementos incompatíveis com os dados da fé. Agora é preciso distinguir radicalmente a Natura creatrix e a Natura creata, Deus e sua obra, garantindo, de um lado, a transcendência divina e, de outro, a realidade própria do criado. No século IV, o pensamento de Santo Agostinho trouxe um novo ponto de vista para a questão, opondo a natureza não mais apenas ao artificial, como em Aristóteles, mas à graça. É justamente através da discussão empreendida em torno da graça que compreenderemos melhor o que é a natureza (no caso, a natureza humana) em Agostinho. Antes de mais nada, é preciso lembrar que o deus agostiniano, sendo o Soberano Bem, se basta. Não precisa de nada para além de si mesmo e, portanto, nada precisa dar ou criar. Se o faz, é livremente, gratuitamente, de modo que, em sentido lato, toda a sua obra é graça. Como diz Gilson:
Entretanto, como bem destaca Gilson, trata-se de um sentido impróprio de graça. A verdadeira graça não é aquela pela qual fomos criados, mas aquela pela qual recebemos o dom da perseverança na fé: "Além daquela graça, pela qual é criada a natureza humana (esta, com efeito, é comum aos cristãos e aos pagãos), há uma graça maior, não aquela pela qual somos criados homens pelo Verbo, mas pela qual somos feitos fiéis pelo Verbo feito carne." É desse "acréscimo" que distingue cristãos e pagãos que fala Agostinho ao referir-se à graça. Isso não impediria, por outro lado, que Deus tivesse dado ao homem ou a qualquer criatura uma natureza diversa da que tem atualmente, fosse ela melhor ou pior. Não haveria nada de indigno para Deus em fazê-lo, visto que o ato criador é totalmente livre. Daí que o que é graça hoje poderia ser natureza se a criação tivesse sido outra. É essa discussão dos limites de natureza e graça que empreende Agostinho em seus escritos antipelagianos. Para o filósofo, o ardil de Pelágio é afirmar que está discutindo a possibilidade das coisas, não sua existência efetiva, de modo que, ao ser contradito pelas Escrituras, considera-se imune, já que elas falam do que é, não do que apenas poderia ser. Por outro lado, as certezas obtidas a respeito das possibilidades ou impossibilidades devem impor-se às coisas. Daí às heresias, os passos são poucos. Diz Pelágio (citado por Agostinho): "Torno a repeti-lo: Eu digo que o homem pode viver sem pecado. O que tu dizes? Que o homem não pode viver sem pecado? Eu não digo que o homem pode viver sem pecado nem tu o dizes. Discutimos sobre a possibilidade ou não possibilidade; não discutimos sobre a realidade ou não-realidade." Para Pelágio, os contra-exemplos bíblicos não anulam a possibilidade de não pecar, do contrário não haveria culpa. E diante da objeção de que isso só é possível pela graça de Deus, Pelágio não hesita em responder que tal afirmação apenas comprova sua tese, afinal "a melhor demonstração da possibilidade de uma coisa é a formulação de suas condições, pois a qualidade exige um suporte real". Para Pelágio, se o homem tem a possibilidade de não pecar inscrita em sua natureza, o meio utilizado para alcançá-lo, seja a graça, seja o puro livre-arbítrio humano, é parte integrante dessa propriedade. Agostinho percebe muito bem que essa operação faz que a graça divina seja absorvida na natureza e, em última análise, o livre-arbítrio humano, também parte da natureza, será o responsável pela salvação. E como Pelágio responderia à acusação de que esvazia o papel da graça divina? "Quando se diz que o homem é capaz, não o atribuímos ao livre-arbítrio, contudo ao autor da natureza, ou seja, Deus. Haverá alguém que entenda que se possa conseguir sem a graça de Deus o que se considera pertencer propriamente a Deus?" A vontade de pecar ou não pecar, como a vontade de falar ou não falar, pertencem a mim, mas a capacidade para não pecar e não falar é dada por Deus na natureza. Não depende de mim não poder falar, e sim de Deus, que me deu os órgãos da fala, com os quais eu decido falar ou não. Como o não pecar é submetido ao poder não pecar, que de possibilidade lógica passou sutilmente a capacidade humana, e poder não pecar vem diretamente de Deus, devemos atribuir nossa salvação a Deus, ainda que nosso livre-arbítrio seja o fator determinante para ela. Santo Agostinho não pode deixar de denunciar esta armadilha pelagiana:
O que Pelágio consegue, com isso, é impossibilitar a idéia de natureza humana corrompida. Qualquer que fosse a natureza humana, Deus seria bom ao criá-la, pois nada lhe deve. No entanto, não se poderia aceitar uma natureza humana decaída em relação a suas próprias possibilidades, ou estas deixariam de existir e, com elas, a responsabilidade moral. Fazendo da graça parte da natureza, Pelágio faz com que uma não possa desvincular-se da outra sem contradição. De sua parte, Agostinho acredita no poder corrosivo do pecado original, por isso não pode aceitar a incorporação natureza/graça ou, se quisermos, natureza/possibilidade de realização desta mesma natureza. Todo esforço de Agostinho no A natureza e a graça é mostrar que Pelágio, ao elevar o poder da natureza humana, desconsidera que estamos diante de uma natureza corrompida, doente, diversa da situação em que foi criada. Essa natureza deve ser curada para alcançar o seu fim. De que adianta dizer, como Pelágio, que a possibilidade de andar pertence à natureza humana se o homem tiver as pernas quebradas? Dada a diferença de estados, a possibilidade de realização da natureza encontra-se muito afastada dela mesma. Santo Agostinho assume, já em Do livre arbítrio, uma duplicidade na noção de natureza humana, ou pelo menos a existência de dois estados historicamente delimitados da natureza humana.
A concepção de Pelágio, por sua vez, parece muito mais próxima da concepção aristotélica de natureza. A natureza humana pelagiana é sim um princípio de movimento que constitui substâncias tendentes a um fim. Os meios para realizar esse fim estão também nele contidos, garantindo ao conceito de natureza um elemento de completude, o qual podemos extrair de outro texto aristotélico que será importante para toda a tradição cristã, o livro II do De caelo: "Se a natureza tivesse dado ao céu uma inclinação ao movimento progressivo, teria dado também os instrumentos para tal movimento", de onde se extrai o axioma "o desejo natural não pode ser vão, já que a natureza nada faz em vão". É essa completude de princípio, fim e meios que a natureza agostiniana não pode oferecer. E não se trata apenas de um problema posterior à queda de Adão. Ao criticar Pelágio, Agostinho diz:
Mesmo Adão precisava de uma graça que transcendia sua própria natureza. Porém, precisamente enquanto sobrenatural, a graça complementa e realiza a natureza. Como diz Henri de Lubac, "entre a natureza e a graça não se tratava, para Agostinho, de oposição, mas de inclusão; não de luta, mas de união. Não se tratava para o homem de aniquilamento, mas de unificação íntima e de transformação". E o que seria a natureza pura, sem a corrupção do pecado e sem o auxílio da graça? Que tipo de realização o conceito de natureza, por si mesmo, garantiria ao homem agostiniano? Sobre isso, Agostinho silencia: "Não se encontra em Agostinho, ao que eu saiba, definição do que a essência metafísica do homem pode ter implicado como pertencente de direito a sua natureza; o ponto de vista em que ele se situa constantemente é de certo modo histórico e puramente de fato." Vamos então aos estados históricos da natureza humana. Se formos de novo ao Do livre arbítrio, texto que combate o maniqueísmo, veremos que Santo Agostinho faz questão de destacar que a corrupção da natureza humana não significa que esta perca totalmente a bondade. Se, contra Pelágio, Agostinho afirmará que o mal contaminou, sim, as capacidades da natureza humana, aqui deve ressaltar que ela mantém o caráter de substância, sem o que não há natureza, bem como sua positividade. Afinal, aquilo que é menos bom do que já foi continua sendo bom. Se a corrupção o privasse de todo o bem, tornar-se-ia incorruptível, ou seja, uma criatura tornar-se-ia superior (porque incorruptível) por meio de sua própria depravação, o que é um absurdo manifesto. Daí que a própria duplicidade da natureza humana perderia o sentido caso o estado atual fosse exclusivamente maligno.
A natureza, como primeiro dom de Deus, enquanto criador, ao homem, não pode ser ruim. É um dos primeiros princípios assumidos por Agostinho que de Deus só provenham o bem e a justiça. Não poderia, portanto, conceber uma natureza totalmente maléfica oriunda de Deus. E muito menos poderia conceber uma natureza positivamente má oriunda de um princípio maligno oposto a Deus, sob o risco de ver-se recair no maniqueísmo. Agostinho pode, isto sim, ver a natureza humana de um duplo aspecto: primeiro como uma substância boa e incorrupta, embora não incorruptível, como foi a de Adão; depois como uma substância boa, mas corrompida por acidentes ruins, os quais, embora acidentes, podem condená-la à morte eterna. Essa segunda, diminuída e viciosa, é a que vemos hoje e que surgiu com o pecado original. No entanto, a verdadeira natureza humana, o verdadeiro homem à imagem de Deus, é o que foi criado em Adão. "Assim pois chamamos vício àquilo que vemos de falta na perfeição da natureza, manifestando com isso louvor àquela natureza cuja imperfeição vituperamos, precisamente porque desejaríamos que fosse perfeita." A falta dos chamados dons preternaturais, que não temos hoje, mas permitiam a Adão conseguir a salvação eterna e viver num paraíso agradável junto a Deus, é o que nos leva às misérias físicas e morais que se seguiram ao pecado. A concupiscência, as misérias, a morte não são naturais, mas penais. São decorrências do pecado original. O homem primitivo não recebeu uma graça que o obrigasse a perseverar, mas teve uma que lhe permitia fazê-lo se o quisesse. Adão teve todos os bens necessários, muito mais do que temos hoje, porém preferiu se rebelar. Tinha mesmo uma vontade que se inclinava ao bem e não uma vontade meramente neutra como queriam os pelagianos. Essa neutralidade seria repugnante à bondade de Deus, de quem Adão era imagem. Mas o Criador deixou-lhe ainda a possibilidade de pecar e foi este o caminho escolhido. Como castigo justo por não ter usado o poder de não pecar, o homem perdeu esse poder. As raízes penais de nossa condição miserável ficam claras se pensarmos que a onipotência de Deus não permite que nada escape à ordem universal que Ele impôs. Se o homem teve a liberdade de pecar é porque havia um castigo correspondente que recolocava as coisas dentro do plano divino.
Em nossa natureza atual, o pecado gera o domínio da concupiscência, mal oposto a todas as exigências legítimas do espírito humano. Ela pode ser assim caracterizada: "(...) esta condição viciosa que faz que estes movimentos desregrados, acompanhados de estímulo a um gozo sem fim nem utilidade, se elevem em nós sem que o queiramos, ou mesmo contra a nossa vontade". O movimento de nossos instintos é ruim quando se liberta de toda finalidade boa e espiritual. Os bens materiais, que deveriam ser meios para o encaminhamento espiritual, tornam-se bens em si mesmos. Esses impulsos se libertam da vontade e atuam contra nossas intenções, instaurando uma guerra entre o corpo e a alma. Essa luta, aliás, aponta para o fato de que essa não é nossa condição primitiva, pois não há porque duvidar que a harmonia e a paz caracterizavam o modelo original de Deus. Afinal, em hipótese, o fato de corpo e alma serem dois opostos não impediria que se harmonizassem, assim como a umidade e a secura se harmonizam no corpo saudável. Mas condenar a concupiscência em si e não apenas em eventuais excessos não é reconhecer a existência de um princípio maligno positivo, ou seja, maniqueísmo?
A concepção agostiniana do mal continua intacta: o mal não é uma criação positiva de Deus, mas é negação, privação, nada, e o nada não pode ser criado. O que não significa que não possa contaminar nossa natureza.
Analogamente, o pecado não é substância; mas, privando-nos do bem supremo (Deus), pode nos levar à morte eterna. Resta-nos investigar, agora, se nesse quadro ainda é possível falar de um princípio de movimento e repouso teleologicamente orientado ou se o conceito já rompeu totalmente com o aristotelismo. O dinamismo próprio à idéia de natureza parece reduzido, após a queda, a um movimento de corrupção autônomo, cada vez mais aprofundado, que nada tem a ver com a intervenção da graça, a qual o interrompe. Isso não seria grave caso houvesse uma finalidade própria da natureza humana, corrompida ou não, que independesse da gratuidade. Todavia, vimos que Agostinho recusa-se a falar de uma natureza humana abstrata, limitando-se aos dois estados históricos: o adâmico e o decaído. Sendo assim, para falar de uma natureza humana, ainda que num sentido secundário em relação ao estado de inocência, devemos descobrir se o fim sobrenatural do homem de algum modo se manifesta no seio da corrupção em que o homem está inserido. Em A vida feliz, Agostinho mostra como é infeliz aquele que carece de algo e, mais ainda, que toda infelicidade é uma forma de carência ou indigência, enquanto a felicidade é a saciedade. Mas de quê? Os bens passageiros e sujeitos ao acaso não podem satisfazer o desejo humano, seja por sua própria transitoriedade, seja pelo receio de perdê-los que obrigatoriamente toma seu possuidor. Por isso, se alguém quiser ser feliz, deve buscar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado por um revés da sorte. Ora, esse bem eterno e imutável é Deus. É feliz quem possui Deus e infeliz quem dele carece. Não podemos, porém, dizer que Deus está em tudo e por isso tudo possui Deus? Em certo sentido, sim, mas aquele que vive em pecado possui Deus como distante e desfavorável. Já aquele que procura a Deus sem ter encontrado tem Deus propício a ele (do contrário, sequer o procuraria), mas nem por isso é feliz, pois não tem o que deseja, por mais que Deus lhe esteja presente de alguma maneira. É preciso encontrar Deus para ser feliz, o que só pode ser feito quando é sanada a carência suprema, aquela que contém todas as outras, a carência de Sabedoria.
Esse é o fim a que nos destinamos, mas nem por isso podemos obtê-lo nesta vida, ainda que possamos buscá-lo com ajuda da graça. Qual é então o dinamismo produzido em nós pelo fim sobrenatural? Dinamismo que permite falar, mesmo que de modo precário, de uma natureza? Certamente não é o movimento da concupiscência, que nos conduz à destruição. Este é apenas conseqüência do pecado, levando-nos inutilmente a tentar preencher o vazio infinito de nossa carência. O movimento natural produzido por essa finalidade inatingível vivida como carência é outro: a inquietude. Como diz Agostinho, no início das Confissões: "Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti." Como explica Franklin Leopoldo e Silva,
Se a inquietude é imposta pela própria condição de criatura, que impõe uma aspiração irrealizável devido à distância desproporcional que a separa do criador infinito, por outro lado ela ganha uma nova dimensão com a corrupção do pecado: a condição humana é agora de miséria.
A corrupção não pode ser um caminho para o retorno, mas o mergulho na própria miséria pode dar o verdadeiro sentimento da nossa condição que nos move a pedir. A inquietude não nos garante o fim, mas aponta para o fim, fazendo de nosso movimento natural menos a atualização de possibilidades intrínsecas do que a prece ou a súplica pelo preenchimento do espaço desproporcional que nos separa daquilo de que mais carecemos. Sem a graça, não podemos sequer suplicar, mas isso não significa que a carência e a inquietude estejam menos presentes. Nossa natureza também aí estará, buscando sua completude no que não tem a mínima solidez. São Tomás No caso de Tomás de Aquino, a carência e inquietude agostinianas devem achar ressonância na noção de apetite natural, por isso é através desta noção que buscaremos compreender a concepção tomista de natureza. Na sua retomada cristã do pensamento de Aristóteles, Tomás opõe, de um lado, Deus, ato puro, logo sem movimento e sendo desde sempre o que deve ser, ao universo criado, que, de outro lado, está mergulhado no devir. Todo ser criado, assim, deve passar da potência ao ato, ou seja, à condição de ser realizado. Por conseguinte, o acabamento de uma natureza criada, ou melhor, seu fim, impõe um desejo natural desse fim, uma tendência de todo o ser para seu fim, e é precisamente isso que São Tomás denomina apetite natural. Diz o autor: "O apetite natural nada outro é que a inclinação da coisa a seu fim natural." O fim, ou termo desse apetite natural, é o que define propriamente a natureza, dado que esta, ser inacabado, é concebida em vista do termo concreto a que se destina. É porque tem tal acabamento preciso a conquistar que a natureza é o que é no momento. Isso ocorre porque, como explica Laporta,
Daí Tomás dizer no seu comentário da Física, 2.15.15, que o fim não é tal porque a matéria é tal, mas, antes, a matéria é tal porque o fim é tal. Como Tomás explica no De veritate, 27.2.c, nas coisas naturais três coisas são pré-exigidas para a obtenção do fim: "a natureza proporcionada àquele fim, a inclinação àquele fim, que é o apetite natural do fim, e o movimento para o fim". Por isso estes quatro elementos (natureza, fim, apetite e movimento) são inseparáveis, ainda que, como explica Laporta,
Isso não significa, porém, que não haja seres que não alcançam seus fins e cujos movimentos naturais, portanto, não se completam nunca. Ao contrário, isso ocorre freqüentemente. A não-realização do fim, no entanto, não lhe tira o caráter de razão de ser da natureza e sua prioridade na ordem das causas, de modo que, alcançado ou não, continua sendo constitutivo da natureza. Já o apetite é inseparável da natureza num sentido ainda mais forte pois a natureza é inconcebível sem ele, mesmo quando não chega ao fim. Portanto, como diz Laporta, em termos escolásticos: "se o apetite natural é um acidente no sentido predicamental, não o é jamais no sentido predicável; ou seja, se o apetite natural é um acidente por oposição a uma substância, não pode ser um acidente por oposição ao necessário". É claro que o apetite natural é algo "em outro", não é "por si" como a substância, mas nem por isso será um acidente no sentido de que podia não ter existido. Sem ele, a substância é destruída. Tudo que até aqui foi dito vale para a totalidade da criação e não apenas para os seres providos de intelecto:
Tudo tem um fim e um apetite natural. A vontade, no entanto, não é o próprio apetite natural dos seres intelectuais. O fim dela, sem dúvida, aproxima-se do fim dos seres intelectuais, já que a razão de ser dela é justamente experimentar a felicidade de um ser intelectual que alcançou sua destinação. Todavia, a beatitude em si mesma é objeto do intelecto, não da vontade, por conseguinte, o fim a que se destina o apetite natural dos seres intelectuais será um conhecimento. Diz Tomás:
Evidentemente, isso não nos impede de dizer que um apetite natural liga a vontade à beatitude. Esta é o fim a que se destina aquela, mas apenas na medida em que se subordina ao intelecto:
Esse fim da vontade, porém, pode passar despercebido, atraindo-a sem que haja consciência disso, o que fere aquela definição de vontade como apetite do fim pré-conhecido. Por isso, mostra Laporta que encontramos para a vontade um segundo apetite natural, este sim um fato psicológico observável, para além daquele apetite natural metafísico que é comum a todas as coisas:
É na medida em que a vontade é atraída, de maneira forçosamente consciente, por esse ideal vago, que ela se enquadra na definição anterior de apetite do fim previamente conhecido. Isso não significa, porém, que ela acerte: "Ora, a verdadeira beatitude não se diferencia da falsa pelo ato da vontade, pois a vontade se mostra igualmente desejando, amando, ou se deleitando, o que quer que se lhe proponha como seu bem, seja ele verdadeiro ou falso." Como explica Laporta, este sempre perseguido ideal vago cada vez se encarna em um objeto real, no que a vontade é no mais das vezes decepcionada, permanecendo insatisfeita. Daí a importância da seguinte distinção:
E o que é a beatitude, o fim das substâncias intelectuais? Antes de mais nada, é preciso explicitar qual é o fim de todas as coisas.
Contudo, isso não significa que todas as coisas se ordenem a Deus da mesma maneira; o farão de acordo com as respectivas naturezas. Donde se coloque a pergunta sobre a maneira própria das substâncias intelectuais, cuja resposta não poderia ser outra:
Mas Tomás vai mais longe e se pergunta, no capítulo 38, em qual conhecimento de Deus consistirá a felicidade última dos seres intelectuais. Não será no conhecimento comum e confuso que quase todos os homens têm do ser supremo, nem no conhecimento oriundo das demonstrações filosóficas que corrigem aquelas noções elementares, e nem sequer no conhecimento que se tem pela fé, todos eles ainda imperfeitos e incapazes de saciar completamente o desejo de conhecer do homem, logo ineptos para ser o fim último dos seres intelectuais. O problema é que isso aponta para a impossibilidade de o homem alcançar sua felicidade última nesta vida:
O conhecimento capaz de satisfazer nosso desejo natural é o que nos dará nada menos do que a visão da essência de Deus. Isso, porém, além de extrapolar os limites desta vida, parece extrapolar os limites naturais da substância criada:
Todavia, Tomás reafirma o axioma "o desejo natural não pode ser vão, já que a natureza nada faz em vão (livro II do De caelo)", o que lhe permite afirmar não só que teremos outra vida em que a beatitude será possível, mas de que maneira a visão será possível: "foi acima demonstrado (cap. XLIX) que a substância divina não pode ser vista pelo intelecto mediante uma espécie criada. Donde ser necessário, sendo Deus visto em sua essência, que pela mesma essência divina o intelecto a veja, de modo que nesta visão a essência divina seja o que é visto e aquilo pelo qual é visto". O que exige o axioma aristotélico não é pouco: para que o desejo natural de beatitude se realize, será preciso que a forma de Deus se torne forma do intelecto criado que a vê. Ora, isso está muito além do alcance da natureza criada, pois ver Deus pela essência divina é algo próprio da natureza divina, e só dela. Diz Tomás:
Em outras palavras, e este é um ponto crucial para compreender a noção de natureza humana, a criatura intelectual é definida por um fim que ela não pode alcançar por suas próprias forças. Digo criatura intelectual, e não só o homem, pois isso não se limita a uma natureza decaída, mas estende-se a qualquer natureza intelectual criada. A natureza parece exigir a sobrenatureza. A correta compreensão dessa aparente contradição passa pela noção de potência passiva natural. Como explica Laporta,
Por requerer um agente natural que a atualize, a potência passiva assume um acento diverso do apetite natural, mas ambos tendem ao mesmo fim, a plena realização da natureza em questão, de modo que, embora sejam coisas diversas, o ato de ambos é o mesmo. Sendo assim, a potência passiva pode abarcar um leque bem mais amplo de possibilidades, mas a potência passiva natural é uma só, definida estritamente pela natureza do sujeito, que comporta uma só finalidade. O questionamento levantado por Laporta é a respeito da potência passiva natural para o sobrenatural, que, segundo o comentador, Tomás ora afirma, ora nega. O agente que atualiza uma potência pode ser natural ou não natural. Sendo natural, ele será tão determinado pelo fim quanto o apetite natural, do qual não se desvincula:
Ora, se tomarmos os atos naturais, aqueles que realizam um apetite natural e são feitos por agentes naturais, Deus não pode ser o agente natural deles, pois não é determinado naturalmente a aquele fim. Sendo assim, poderíamos ser levados a pensar, como o tomista Cajetan, que, não havendo potência natural sem agente natural, a potência da natureza para o sobrenatural, ou seja, para a graça e a visão beatífica, não pode ser uma potência passiva natural, mas apenas uma potência obediencial. Esta, para Tomás, seria:
Em outras palavras, trata-se de um milagre divino. A posição de Tomás, porém, como mostra Laporta, não é tão cristalina. No Compêndio de teologia, Tomás nega categoricamente a potência passiva natural com relação à visão beatífica: "algo está naturalmente em potência a respeito das coisas que podem ser reduzidas a ato pelo agente natural". Ou seja, se a visão é inacessível à criatura, não há potência passiva natural. Por outro lado, no IV Escrito sobre as sentenças e na Suma teológica, Tomás se pergunta se a justificação do ímpio é um milagre. Para sê-lo, deveria, além de constituir uma ação realizável apenas por Deus, cumprir um dos dois requisitos: ou bem realizaria uma potência passiva natural do sujeito, mas com um agente sobrenatural substituindo o agente natural, ou bem não realizaria nenhuma potência natural do sujeito, caindo no caso da potência obediencial. Ora, Tomás responde que a justificação dos ímpios não é milagre, pois: "1) quanto à graça, há uma potência, de modo algum obediencial, mas natural; 2) e esta potência natural é cumprida pelo único agente natural adequado, Deus, não substituindo, desta vez, nenhum agente natural. Assim, nem o primeiro nem o segundo tipo de milagre se realizam; tudo permanece normal". Em resumo, para manter válido o axioma "O desejo natural não pode ser vão", Tomás precisa cindir o conceito de potência passiva natural. Como capacidade de ser realizada por um agente natural, a potência passiva natural para o sobrenatural não está no homem, já que só Deus a atualiza. Como capacidade de evoluir conforme seu impulso natural, ela está presente, pois é Deus, o único agente natural apropriado para atualizá-la, que realiza o fim que constitui a natureza humana. Essa distinção, porém, não dissolve o desequilíbrio de fundo da natureza humana. Como em Agostinho, é infinita a distância entre o que a criatura intelectual necessariamente deseja e o que ela pode conquistar por si mesma. Esse desequilíbrio, por sua vez, aponta para a grandeza da criatura humana:
Como dissemos antes, o fim é pensado em relação à natureza. Logo, se a natureza humana se destina a um fim inalcançável por suas próprias forças e, nesse sentido, sobrenatural, essa qualificação deve ser considerada secundária e subordinada. O natural, no sentido forte, é a finalidade inscrita na natureza. Mesmo que se fale de um fim natural proporcionado a nossas forças, a saber, a contemplação da verdade tanto quanto é possível nesta vida, trata-se apenas de um fim provisório, que, como Tomás explica (Suma contra os Gentios III, 63), está contido no verdadeiro fim natural, a visão beatífica. Por isso a graça, auxílio sobrenatural necessário para merecermos a justificação, está contida na potência passiva natural, completando a natureza. Se trouxesse um novo fim para a natureza humana, a graça sequer seria desejável, pois mudar o fim é destruir a natureza em questão. Isso não significa, porém, que todos devam chegar à visão beatífica. Como já dissemos, muitos são os seres que não realizam seu fim; mas o irrealizado não é o irrealizável. Com o auxílio apropriado, o homem pode salvar-se, todavia, se esse lhe for negado, nem por isso sua natureza será destruída. Sem a graça, o homem permanece com o mesmo apetite e o mesmo fim naturais, por mais irrealizados que sejam, e pode até ser feliz (de uma maneira bastante imperfeita). Mesmo incapaz de merecer a graça (Suma contra os Gentios III,149), o homem não está condenado à miséria, só à imperfeição. Mais uma razão para constatarmos que o deus tomista não deve a salvação a ninguém; mesmo assim, e até por isso, a natureza humana persiste intocada. Nas palavras de Laporta,
Como em Agostinho, a gratuidade é necessária ao pensamento tomista da natureza. A teologia moderna Apresentadas as doutrinas de Agostinho e Tomás, as matrizes maiores do pensamento cristão, podemos passar à teologia moderna e à maneira como ela lidou com a idéia de natureza humana. O primeiro nome a destacar, este tradicionalmente ligado ao agostinismo, é o de Baius. Como Agostinho, Baius também afirma que é necessário ao homem o socorro externo de Deus para que possa realizar seu destino. Também como Agostinho, não concebe um estado em que o homem, reduzido a suas próprias forças, chegaria a sua perfeição como pura natureza, sem intervenção da graça. A maneira como os dois autores vêem a graça e a relação do homem com ela é, contudo, bastante diversa. Nas palavras de Lubac:
A proximidade com Pelágio é evidente, mas ao mesmo tempo surpreendente para um teólogo agostiniano. Se Pelágio naturalizava os instrumentos necessários para concretizar a natureza, e portanto naturalizava a graça, Baius faz desse instrumento o objeto de uma dívida de Deus para com a natureza humana, que sequer merece o nome de natureza sem o pagamento:
Sem a graça, não haveria integridade na natureza humana (o que não seria diferente em Agostinho ou Tomás), mas o resultante não seria um bem menor, e sim um mal, algo contra a natureza. Desse modo, a graça não é apenas um aperfeiçoamento da natureza, mas um complemento lógico e necessário da criação. Baius busca mostrar, como vimos em Tomás, que não é incompatível falar de um fim sobrenatural para a natureza humana; o que faz desse sobrenatural, no limite, um fim natural. Todavia, Baius vai diretamente contra a letra de Tomás ao fazer da obtenção desse fim uma obrigação divina. Tomás diz:
Para Baius, a carência do fim não se apresenta como inquietude (à maneira de Agostinho) ou apetite (São Tomás), mas como a cobrança de um direito (aos meios). Mesmo após o pecado, a dependência da graça divina tem em Baius um caráter bem diverso do de Agostinho. Para o moderno, no homem corrompido a intervenção divina em vista do ato salutar não é mais devida, mas essa gratuidade não incide sobre a essência mesma do ato:
Como instrumento, a graça é, sim, condição necessária do ato meritório, mas não constitui este mérito, não transfere ao homem uma dignidade sem a qual não há mérito. Portanto, mesmo após o pecado, não se pode dizer que o mérito seja dom divino, o que afasta Baius do mestre Agostinho. Como diz Lubac, "quaisquer que sejam as colaborações divinas, o resultado permanece inteiramente humano. A graça precede o ato do justo, mas não se poderia dizer que o informa; ela o torna possível de fora, ela não o sustenta por dentro". Foi em grande parte no intuito de rejeitar a heresia baiana que a escolástica tardia desenvolveu um conceito que, se talvez já estivesse implícito, ao menos não era evidente na tradição teológica: a pura natureza. Essa idéia, cuja perfeita formulação só se dará em Suarez, visava antes de tudo impugnar a ilação de que, se a graça é necessária para realizar plenamente a natureza humana, ela é devida por Deus ao homem. Este pode, ao contrário, realizar de maneira puramente natural os seus desejos naturais, com instrumentos naturais, chegando por fim a uma felicidade puramente natural que não depende da intervenção gratuita. Perde completamente o sentido, portanto, a idéia de dívida. Sigamos Lubac, mais uma vez, na sua tentativa de rastrear as origens do conceito de pura natureza: a primeira fonte apontada pelo comentador para tal idéia foram as especulações medievais em torno da potência absoluta de Deus, a qual poderia perfeitamente produzir um semelhante estado. Tais especulações, contudo, não questionavam de fato a tese tradicional sobre o fim último do homem. A segunda fonte para a idéia vinha de um problema teológico bastante concreto:
Tratava-se, no entanto, de um caso excepcional, que por isso não podia servir de modelo para a condição humana em geral. A última fonte, segundo Lubac, seriam as especulações dos humanistas do século XV que elaboraram a idéia de religião natural. A partir daí, vários teólogos do início do século XVI começaram a tratar do tema, mas sempre como uma "ficção útil" e sem criar uma dualidade de fins últimos. Mesmo que considerassem a possibilidade de um fim puramente humano, este estava sempre subordinado ao verdadeiro fim, a visão beatífica, no que os teólogos modernos nada diferiam de Agostinho e Tomás. Pode-se constatar isso no próprio Catecismo do Concílio de Trento, publicado em 1566. Belarmino, na sua refutação a Baius, traz algo novo. À objeção de que ao homem, cujo fim natural é ver Deus, são-lhe devidos os meios para isso, o autor responde com uma argumentação de cunho tomista:
Em outras palavras, o fim é natural quanto ao apetite, mas sobrenatural quanto à consecução, o que não indica a miséria da condição humana e sim sua grandeza, o fato de ser à imagem de Deus. Até aqui, nada de novo. Mas então Belarmino aprofunda, ainda com argumentos tomistas, a objeção de Baius:
Ou seja, se o homem tivesse outro fim, sua própria natureza mudaria. Curiosamente, aí onde parece nada restar para a idéia de uma pura natureza, desvinculada dos fins sobrenaturais, Belarmino vê a ocasião para introduzir a idéia:
O pássaro da noite não vê o sol, como estaria em sua capacidade e seu apetite, mas nem por isso é uma potência vã. Ele tem uma atualização proporcionada a suas capacidades, pela qual vê muitas outras coisas. Do mesmo modo, o homem, por seu intelecto, está destinado à visão de Deus, mas nem por isso é uma potência vã, pois pode ver o que está ao seu alcance. Não se trata, evidentemente, de Beatitude, palavra que Belarmino não usa para esse fim puramente natural, mas é sim uma realização suficiente para impedir a conclusão do raciocínio de Baius. O instrumental de Belarmino vem todo de Tomás, mas o acento deve mudar, já que Tomás não tinha um adversário tão perigoso quanto Baius. Por isso o que era um fim secundário e subordinado deve agora adquirir relativa autonomia, dando espaço para a idéia de pura natureza. É somente com Suarez que a nova teoria se delineia mais perfeitamente. Ele sistematiza a idéia de pura natureza, integrando-a à doutrina dos estados da natureza humana. Além do estado adâmico e do estado de natureza decaída, temos agora o estado de pura natureza, embora esse não corresponda a nenhum momento de fato existente na história humana, sendo apenas um modelo teórico para pensar o homem enquanto tal, ponto de partida necessário de qualquer dos chamados estados históricos:
Quanto ao conteúdo propriamente dito desse estado, ele inclui todas as faculdades naturais, corporais ou materiais, contidas na potência humana, bem como o concurso e a providência de Deus naturalmente devidos, ou seja, necessários para a atualização das potencialidades naturais. Por outro lado, ele exclui tudo o que seja acrescido à natureza, a ela não devido, seja mal ou bem, a saber, nem o pecado, nem a culpabilidade dele decorrente, nem o dom da graça ou outras perfeições não devidas à natureza. A parte positiva, segundo Suarez, não gera disputa, por isso discutirá com mais atenção as coisas que o estado de natureza exclui. Diz o autor: "Deus não pode ser o autor do pecado, e por isso deve-se conceder que a natureza não infunde culpa, mas é necessário que ela se derive de outra raiz infecta, como ocorre no pecado original, ou nasça da própria vontade criada." Portanto, independentemente do que hoje ocorre, não há contradição em pensar o homem sem pecado ou culpa. Desde que o consideremos criado imediatamente por Deus, tal possibilidade está garantida, e isso basta para a constituição de uma hipótese como é o estado de pura natureza. Quanto a pensar o homem sem a graça, a situação é mais complexa, porque de fato Adão a recebeu imediatamente de Deus na criação:
Quanto à ausência simultânea de graça e pecado, não há nem pode haver suporte de fato para a hipótese da pura natureza. Como sustentá-la de direito? Para garantir a possibilidade da pura natureza, Suarez precisa, antes de mais nada, desfazer o equívoco em torno do termo "natural":
Além disso, como a própria noção de estado é vista pelo autor como uma certa proporção da natureza humana em ordem a um fim último, é preciso demonstrar que o fim último do homem, sua beatitude, não implica necessariamente a noção de graça. Sem isso, o conteúdo do estado de pura natureza se reduz ao de natureza íntegra e Baius será irrefutável. Como explica Lubac, Suarez parte da idéia de que o homem, como substância natural, deve tender a um fim nos limites da natureza, ou seja, um fim último conatural:
Como Belarmino, Suarez sente a força da argumentação de Baius, por isso aceita partir do mesmo ponto que ambos: "toda potência inclina-se naturalmente ao ato a si conatural, sobretudo ao perfeitíssimo, pois todo perfectível apetece sua perfeição. Ora, a beatitude, como se diz freqüentemente, é a máxima perfeição, e se é natural, é também proporcionada". O que marca a diferença de Suarez é o destaque dado à idéia de proporcionalidade entre o ser natural e seu fim e, sobretudo, o fato de não temer o uso do termo "beatitude" para caracterizar esse fim natural, o que não ocorria em Belarmino. Evidentemente, o homem pode, e no caso dos eleitos vai, ser chamado a um fim superior, mas, desproporcionado aos meios naturais. Tal fim é acrescentado sem alterar a natureza do ser em questão, permanecendo a mesma a beatitude natural, por si mesma suficiente para realizar o homem enquanto tal. E o que ela é? "Deve-se dizer que ela consiste na perfeitíssima conjunção natural com Deus pelo intelecto e pela vontade, tanto quanto pode ser conhecido pela luz natural do intelecto da criatura." Mas tal beatitude natural não é a visão beatífica prometida aos eleitos. Esta última não é a felicidade própria do homem, não é constitutiva de sua natureza e por isso não pode sequer ser naturalmente desejada. Desse modo, a idéia de que a visão beatífica é o fim natural quanto ao apetite, ainda que sobrenatural quanto à consecução (chave da solução tradicional), não podia ser aceita, pois abriria uma brecha para descaracterizar a beatitude natural como verdadeira beatitude. Daí dizer Suarez:
Suarez sabe que sua teoria rompe com Agostinho (Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.) e Tomás, ou pelo menos com uma certa tradição interpretativa deste último. Por isso deve destacar em Tomás alguma ambigüidade que ao menos permita a leitura favorável à pura natureza: "S. Tomás não parece ter falado assaz claramente sobre esta matéria, mas favorece muito a esta opinião, pois quando distingue a beatitude do homem, distingue duas, uma natural, outra sobrenatural." Por outro lado, Suarez e seus seguidores também não podem negar qualquer desejo de ver a Deus. Como diz Lubac, fazê-lo
Desse modo, Suarez aparenta fazer uma reconciliação com a tradição quando, na verdade, rompe com ela, e assim pavimenta um caminho novo para o tomismo. Segundo Lubac, "doravante existe uma corrente tomista, uma escola tomista, para professar, contrariamente a S. Tomás, que a natureza racional é um todo fechado no qual tendências e capacidades ativas se correspondem rigorosamente". O famoso Jansenius, cuja influência posterior dispensa apresentações, pode ser visto, sob alguns aspectos, como seguidor de Baius, mas as diferenças são importantes. Ambos partem de uma visão bastante otimista do estado adâmico, que acaba resultando em uma visão assaz pessimista da condição atual do homem. No entanto, Jansenius está melhor resguardado que Baius de aproximações com Pelágio a respeito da natureza íntegra. Para o autor, a justiça original não era natural ao primeiro homem como a saúde é para o animal. Trata-se não de um elemento constitutivo da natureza humana, mas de um dom acrescido a ela sem ser-lhe devido. "O magnífico 'equilíbrio' da condição primeira não era obtido sem uma graça suficiente. Enquanto Baius, mesmo falando de graça, confessava que era em um sentido impróprio, Jansenius precisa que se deve entendê-la de uma 'verdadeira graça', de uma 'graça sobrenatural'." Apesar de sobrenatural e necessária a Adão para que este fizesse o bem, a graça suficiente era apenas um instrumento a ser usado pelo livre-arbítrio, de modo que este último mantinha-se como a causa principal da boa ação; relação que se inverterá após o pecado, quando a vontade cativa não terá méritos. É de notar que, embora Jansenius garanta que a vontade adâmica era indiferente ao bem e ao mal, e por isso teria guardado os méritos de manter-se no estado de natureza íntegra, diz também que, sem a graça, o livre-arbítrio bastaria somente para o mal. É nessa ambigüidade que Lubac se baseia para afirmar que, como em Baius, Jansenius traria um "naturalismo" latente a sua apresentação do estado de natureza íntegra:
Como em Agostinho e Tomás, a beatitude do homem janseniano se encontra em Deus. Nesse sentido, ele tende naturalmente a Deus. O amor a Deus, entretanto, é sobrenatural no sentido de depender de um socorro sobrenatural. A idéia de dívida não surge em função da necessidade de completar uma noção que, sem o auxílio, sequer seria uma natureza. Ao contrário, se há dívida, não é para com a criatura, que não tem direitos, mas para com a bondade e justiça do criador, que sem dar a graça não poderia condenar os homens inocentes que se afastassem dele. Estes, na verdade, estariam cumprindo uma tendência natural de toda criatura:
Mesmo Adão e os anjos tendiam ao nada de onde haviam saído mais do que a Deus, onde se encontra sua beatitude. Por isso caíram:
O nada é a pátria natural da criatura, enquanto Deus é o país estrangeiro. Como criatura, o homem tendia ao nada, mas foi posto, de maneira sobrenatural, ou mesmo antinatural, em uma posição de felicidade extrema, sem carências, junto de sua finalidade última, Deus. Ora, foi essa beatitude, a qual é o fim último do homem em toda a tradição já examinada, que precipitou o movimento de desagregação:
A felicidade adâmica não se sustentou porque o homem não estava pronto para perder-se na felicidade divina, renunciando à sua própria natureza. Buscando fazer de si uma natureza autônoma, cuja realização maior seria uma felicidade causada por si mesmo, o homem perdeu a felicidade sobrenatural que a graça suficiente lhe propiciava, caindo no único movimento próprio da natureza criada, o movimento para o nada. Por isso, por ser esse o seu movimento natural, após o pecado o homem só pode ser salvo por uma graça eficaz, que, ao libertar a vontade, determina-a. Sem essa violência antinatural, a desagregação prevalece:
Nesse quadro fica difícil ver como o pensamento de Jansenius possa esconder, ainda que latente (como crê Lubac), um naturalismo similar ao de Baius. O que ocorre, aparentemente, é uma ruptura com o conceito tradicional de natureza, na medida em que a plena realização da criatura depende de uma intervenção sobrenatural que não satisfaz as carências puramente naturais, mas sobrepõe-se à natureza. A natureza humana em Pascal É no contexto jansenista que se desenvolve o pensamento de Pascal, o qual, em meados do século XVII, escreve à sombra da ainda poderosa idéia de pura natureza. Os defensores dela partem daqueles elementos (substância, dinamismo interno e finalidade) já presentes na concepção aristotélica de natureza para então constituir uma idéia de natureza que, deixando à parte a beatitude sobrenatural cristã, se vincula indissoluvelmente às noções de completude e suficiência, ou seja, à condição de um ser que tem em si seu princípio e o poder de alcançar seu fim. Após vermos as críticas de Jansenius, seria de crer que Pascal renunciaria ao uso do termo natureza (pelo menos fora do estado adâmico), mas não é isso que ocorre. Como explicá-lo? A partir do que foi visto até agora, não é difícil imaginar por que a aplicação do termo natureza ao homem pascaliano sofre de sérias dificuldades. Um elemento fundamental do campo semântico desse termo é, como vimos longamente, a substancialidade. Em alguns textos, é nesse sentido que Pascal usa o termo para o homem, sob nítida inspiração da união substancial cartesiana: Fr. 72/199: "(...) nós somos compostos por duas naturezas antagônicas e de gêneros diversos, alma e corpo". Será, então, que Pascal encontra no eu, como Descartes, uma substância pensante? Vejamos o que nosso filósofo diz a respeito: no Fr. 455/597, Pascal mostra a inutilidade do esforço daqueles que, como Miton, tentam afastar o aspecto odioso do eu humano. Isso ocorre porque este não é um aspecto, mas o aspecto característico do eu. A aparência agradável não pode ter outro efeito além de ser uma cortina de fumaça, Fr. 455/597: "Vós Miton, vós o cobris, não o tirais por isso, continuais portanto sendo odioso". O eu não é odioso apenas relativamente, enquanto causa de desprazer para os outros sujeitos. Nesse nível mais superficial, a amabilidade seria um remédio eficiente. Contudo, o eu é odioso na sua realidade própria, ele é injusto em si. No segundo parágrafo desse fragmento, Pascal explicita os dois níveis do sujeito: "Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se centro de tudo; é incômodo aos outros, querendo sujeitá-los, pois cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros." A máscara de gentileza que esconde o desprazer relativo nada pode contra o desprazer em si do eu, sua causa. Ou melhor, o incômodo do eu, disfarçável, é menos grave que aquilo que o provoca: o fato de o eu se fazer centro de tudo. O egocentrismo e o amor próprio constituem tão intrinsecamente o eu que não podem mais ser excluídos. Partindo do pressuposto pascaliano de que todo homem busca a felicidade, talvez possamos esclarecer as razões desse ódio. Se o homem faz uma coisa é porque lhe parece que isso o fará feliz. O mundo material não basta, porém, para saciar sua sede de bens. É preciso que ele domine seus iguais e, ainda assim, não se satisfará, sendo obrigado a tiranizar cada vez mais os outros. Essa insatisfação, dado fundamental do homem pascaliano, é razão da incomodidade que o eu produz. Mas por que é insaciável?
A expressão "eu odioso" representa o homem que não enxerga quão insuperável é sua pequenez. Ele pensa que pode, reunindo o mundo finito em torno de si, sanar sua carência inconsciente de infinitude. A descontinuidade entre o finito e o infinito não permite, porém, que a carne preencha um espaço que só Deus pode ocupar. Assim, a concupiscência se ilude com sua capacidade e tenta tiranizar os outros, sem contudo remediar a angústia humana. O amor-próprio desmedido (devido ao deslocamento do centro para a concupiscência, o transitório) fez que o homem mentisse, se mascarasse e se revestisse de qualidades ilusórias para obter poder e estima. Sua essência verdadeira, o que há de infinito no ser humano, lhe foi tirada através de Adão. Agora só existe enquanto ausência incompreensível. As qualidades maléficas dominam, portanto, a natureza atual do homem e é por isso que a amabilidade não pode destruir o eu odioso. Se lhe tirarmos o que tem de odioso, nada restará. Ele é injusto em si, tirano por natureza e inimigo de todos. Contudo, Pascal não chega a formular o eu como uma substância cuja natureza é ser injusta. O caráter insuperável da injustiça do eu não faz dela um atributo essencial, pois continua sendo uma qualidade negativa. Portanto, o que há de mais palpável no eu é negatividade extrema, sem consistência ontológica. Tendo-se afastado de Deus, ou seja, de si mesma, de sua essência, a substância do homem se pulverizou em inúmeras qualidades passageiras, incapazes por si mesmas de se reconstituírem como acidentes de uma substância. Fr. 323/688:
A natureza humana se reduz então a uma sucessão de estados desligados entre si: Fr. 109/638:
Da mesma forma, a idéia de corpo também perde o valor de ordenação e unidade e reduz-se a uma denominação convencional. Substância corpórea? Pascal responde com ironia: Fr. 115/65:
A corrupção decorrente do pecado original implodiu a substância humana. Em Pascal, ontologia e ética se encontram para fazer a desgraça (ou a salvação) do homem. No paraíso, Adão vivia em comunhão com Deus, uma união perfeita onde a participação na essência divina garantia a congregação dos acidentes humanos. O pecado destruiu essa ordenação. Embora faça parte do universo ético, a ação pecaminosa teve conseqüências metafísicas. A punição do homem foi o afastamento de Deus, da sua verdadeira essência, aquilo que há de mais profundo no homem ("mais eu do que eu mesmo"): Fr 555/929:
Assim sendo, dado o pecado, em que sentido se pode ainda falar de natureza humana? A palavra natureza, ou a variação luz natural, também aparece na epistemologia pascaliana. O método de conhecimento absolutamente racional exigiria que todas as proposições e todos os termos fossem definidos. Entretanto, isso não passa de um ideal impossível, já que implicaria uma regressão ao infinito. Descartado esse método, devido a nossa finitude, Pascal propõe um sucedâneo:
Pascal acredita na validade desse método, mas ao mesmo tempo conhece sua fragilidade. O sentimento do coração que garante os primeiros princípios é facilmente confundido com a imaginação, potência enganadora, e nada impede que o hábito consolide princípios falsos. Diz o autor: Fr. 92/125: "Que são nossos princípios naturais senão princípios de hábito?" Sem o auxílio da graça divina, é apenas o hábito que garante a força das verdades básicas da ciência, e esta "natureza" que as sustenta pode muito bem ser apenas hábito. Fr. 233/418: "Nossa alma é lançada no corpo, onde encontra número, tempo, dimensões. Raciocina sobre isso e a isso chama natureza, necessidade, e não pode crer em outra coisa." Pascal aponta que a força dos céticos está na impossibilidade de provar esses princípios e no desconhecimento de nossa origem. Como não sabemos se fomos criados por um Deus enganador, nada garante nosso sentimento natural. A força dos dogmáticos está em que essa dúvida é artificial, ou mesmo metódica (no sentido cartesiano), mas não sincera. Em nossa vida real, não nos é possível questionar os princípios, pois o coração, instrumento da natureza, nos impede: Fr. 282/110:
Todavia, essa vitória dos dogmáticos só mostra que a razão reluta em destruir a si mesma. É verdade que Pascal destaca a humilhação da razão ao ver-se submetida a algo externo a ela, o coração, mas, no fim das contas, é a uma exigência racional que o coração atende ao sentir os princípios. A incapacidade da razão, limitada a raciocinar, leva a natureza a buscar algo outro que garanta o funcionamento pleno da própria razão, humilhada sim, morta não. A natureza que atua agora é a totalidade do universo racional. Este só se sustenta tendo princípios como ponto de partida. Se se abrisse para o infinito através das definições infindáveis do método ideal, a razão implodiria a si mesma e se decretaria inútil. Se isso ocorresse, a existência do ser humano caminharia para o insuportável e, ainda mais, sem possibilidades de compreender sua situação. Por isso, o hábito, vilão do conhecimento, torna-se necessário. "Renversement du pour au contre." A natureza é aqui aquilo que impõe as condições de possibilidade do trabalho racional, as quais em si mesmas não devem ser questionadas. O sábio, porém, nunca é alheio a esse processo. Fr. 93/126: "(...) O hábito é uma segunda natureza que destrói a primeira. Mas que é a natureza? Por que não é o hábito natural? Receio muito que essa natureza não seja ela própria senão um primeiro hábito, assim como o hábito uma segunda natureza." Assim como as definições da geometria, nada impede que os hábitos se sucedam ao infinito e que não haja uma natureza original. Mais uma vez, portanto, o ser humano se acha perdido e o conceito de natureza, a rigor, se mostra dificilmente aplicável ao homem. Sempre, porém, que o ceticismo parece prestes a triunfar, a natureza reage e o dogmatismo sobrevive, mesmo acima da capacidade racional de argumentar. Os argumentos dos erros dos sentidos, a impossibilidade de distinção racional entre o sono e a vigília, e mesmo a hipótese de que nossos princípios sejam meramente habituais, nada disso elimina a força dos dogmáticos. De fato, sinceramente, continuamos sem poder duvidar de tudo, sem poder duvidar que estamos despertos, sem poder duvidar que duvidamos, logo nunca houve um pirronismo perfeito. Tal adversário, o pirrônico perfeito, certamente venceria os dogmáticos apontando nossa incapacidade de provar a boa origem de nossa natureza. Mas apenas hipoteticamente "venceria", porque tal adversário não existe de fato. A razão confunde os dogmáticos e a natureza confunde os pirrônicos. Como seria bom e coerente suspender o juízo e não optar entre esses dois caminhos! Infelizmente, porém, não há essa possibilidade: Fr. 434/131: "(...) Eis aberta entre os homens a guerra em que todos devem tomar partido, enfileirando-se, necessariamente, ou no dogmatismo ou no pirronismo; pois quem pensar em permanecer neutro será pirrônico por excelência. Essa neutralidade é a essência da cabala pirrônica: quem não é contra eles é excelentemente por eles..." Pascal nos põe aqui numa situação similar à da Aposta. Lá também, diante da impossibilidade de assentir ou recusar fundamentadamente à proposição "Deus existe", a suspensão do juízo se apresentava tentadora. No entanto, suspender o juízo seria viver como se Deus não existisse, de modo que a escolha estaria já consumada. Em nosso caso ocorre o mesmo: o homem deve escolher entre ceticismo e dogmatismo. A razão, que também é parte da natureza, nos obriga a ceder aos argumentos céticos. A natureza, a mesma que garante os princípios dos quais a razão depende, nos impede. A suspensão do juízo, por sua vez, representa já assumir uma posição cética. Não podemos evitar um dos dois caminhos, nem subsistir em nenhum deles. Mergulhado no paradoxo, o que resta ao homem? Perdido entre essas duas seitas, ele é obrigado a submeter-se a uma hipótese externa à racionalidade, mas que a razão, mesmo em choque, percebe ser a única capaz de explicar sua situação miserável. Não se trata, é bom destacar, de uma saída do paradoxo (o dilema persiste) mas da busca de tornar a situação do homem compreensível: Fr. 434/131:
É neste ponto que vemos como, para Pascal, o reencontro do conceito de natureza se faz enquanto exigência de totalidade. Como diz Magnard,
Se Pascal, junto com Jansenius, combate os defensores da pura natureza, não pode, por outro lado, ser insensível ao modelo de completude natural delimitado por esses teóricos. A diferença é que Pascal, como bom agostiniano, não admite ver a beatitude como um acréscimo desnecessário à natureza: a união com Deus é a única fonte de satisfação. Logo, deve haver, como apontam aqueles teóricos, uma natureza proporcionada a tal fim. Se não há tal proporção, nem por isso teríamos de concluir ou bem por uma dívida do criador (como Baius), ou bem pela existência de um fim puramente humano (como os defensores da pura natureza). Ao contrário, a desproporção aponta para a idéia de decadência. Mas aqui protestará o leitor: não há novidade pois toda a tradição teológica lida com o conceito de queda. É verdade, mas, de um lado, escapou a boa parte da tradição o alcance e o peso metafísico da queda, os quais Pascal experimenta de maneira radical; de outro, é preciso lembrar que Pascal não busca, como a tradição, suprimir o paradoxo. Por isso, nosso filósofo vê na decadência do homem um poder explicativo diverso do que viam seus antecessores. O homem é rei destronado, por isso sua situação é tão insuportável, diferentemente, por exemplo, de todos os animais: Fr. 409/117: "A grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua miséria. Porque ao que é natureza nos animais nós chamamos miséria no homem; por onde reconhecemos que, como a natureza é hoje semelhante à dos animais, ele caiu de uma natureza melhor, que lhe era própria." O homem está perdido em agitações e divertimentos fúteis e não pode evitar fazê-lo devido à corrupção de sua natureza, mas tem um instinto secreto, resto da primeira natureza, que o faz conhecer que a felicidade está no repouso. Esse repouso pode ser lido como o reencontro da totalidade, da verdadeira natureza. Desse modo, a idéia de natureza não apenas faz a crítica da situação do homem como aponta para uma exigência radical da felicidade. O repouso só virá quando a capacidade do homem para o infinito for preenchida novamente, ou seja, quando o homem se reunir a Deus. O pecado foi uma tentativa de o homem constituir-se em totalidade própria, abandonando seu verdadeiro centro, que é Deus. Isso subverteu totalmente os valores do homem e o levou a vagar às cegas pelo mundo, perdendo-se em coisas materiais enquanto o soberano bem se afastava. Mas, apesar de tudo, o vazio deixado por Deus no homem é algo muito mais real e presente que todo o resto, e é por isso que a natureza, enquanto exigência de totalidade, continua apontando para o infinito. Fr. 415/127: "A natureza do homem considera-se de duas maneiras: uma segundo seu fim, e então é incomparável; outra segundo a multidão, como se julga a natureza do cavalo e do cão, ao ver sua corrida e seu animum arcendi; e então o homem é abjeto e vil..." Não é difícil ver nesse fragmento uma retomada da discussão teológica do fim último do homem. Diria Tomás que o fim é sobrenatural quanto à consecução (dada a desproporcionalidade dos meios humanos), mas natural quanto ao apetite, o que sinaliza a grandeza do homem. Suarez mostrou a fragilidade dessa solução e exilou a visão beatífica na pura sobrenaturalidade. Pascal, por sua vez, mergulha no paradoxo, vendo na elevação do fim e na precariedade dos meios manifestações da mesma natureza irrealizável do homem, simultaneamente signo de grandeza e miséria. Os animais são felizes, satisfeitos consigo mesmos, sua natureza não demanda mais do que a animalidade pode fornecer. Já para o homem, reduzir-se à animalidade é o desespero total. O desejo de ser feliz, próprio de toda criatura, fica sem princípios adequados e oscila de um bem para outro, incapaz de se satisfazer. A natureza pede muito mais do que a ordem das coisas pode dar. Tal irrealização é vivida como carência, uma carência absoluta, por ser a privação de Deus, e tanto mais opressiva por ser tudo que restou de uma natureza que um dia teve um substrato metafísico e o perdeu. Por outro lado, como imagem de Deus, a natureza humana exige por si mesma o sobrenatural para reconstituir-se como totalidade. A situação miserável conjugada à impossibilidade interna de recuperação aponta para a necessidade de o homem superar o próprio homem, apelando para a ordem da caridade, já que as ordens das matérias e dos espíritos se mostraram incapazes de reconfortá-lo. Por fim, o que há de mais paradoxal na idéia de natureza humana em Pascal é que ela atua como a exigência radical de uma realização que, de certo modo, a suprime. Como diz Magnard, "não há natureza própria ao homem; o pecado foi ter querido ter uma; esta pretensão verificou-se decepcionante; a salvação estará apenas na renúncia total a si". Assim como a razão se submete diante do incompreensível quando julga racionalmente necessário, também a natureza humana aceitará suprimir sua auto-suficiência (a qual já foi perdida pelo pecado), quando vir que não pode satisfazer suas próprias exigências. Não se tratará, então, como bem observou Magnard, de recuperar um estado de pura natureza, mas de colocar-se nos braços do infinito, aceitando ser membro de um todo que a supera. Embora pouco adequada à nossa condição atual (desagregação) e à dos bem-aventurados (adesão a Deus), a idéia de natureza humana permanece como um valor essencial para o pensamento pascaliano. Ela funciona como um referencial para julgar nossa condição, referencial que não teria a mesma força se Pascal não tivesse conhecido o combate aos defensores da pura natureza. Como idéia reguladora, ela denuncia a incompletude e aponta para a recuperação. Em outras palavras, a natureza é o conceito que, por meio da idéia de carência, faz a ponte entre a miséria humana e o anseio pela graça divina. Artigo recebido entre 1º e 30 de abril de 2006 e aprovado entre 1º e 31 de maio de 2006.
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