Em que consiste a possibilidade de iniciativa popular para a oferta de projetos de leis ordinárias

A competência de iniciativa

1. Introdução

Atividade legislativa se desenvolve dentro de um processo formal, estruturado conforme o ordenamento legislativo, a que se dá o nome de processo legislativo. A cada espécie legislativa (lei ordinária, lei complementar, resolução, decreto legislativo, etc.) corresponde um determinado procedimento. O procedimento padrão é aquele de que resulta a lei ordinária, assim denominada por tratar-se daquela que, ao menos a priori, é a norma legislativa mais comum.

O processo legislativo, tanto quanto o processo civil ou criminal, é uma série de atos preordenados a um mesmo fim, no caso, a regular promulgação de uma norma legislativa. Sua fase inicial é a da apresentação, pela qual a proposição legislativa é entregue ao órgão do Poder Legislativo competente para recebê-la. Recebida a proposição, o procedimento legislativo terá sido iniciado, incumbindo agora ao Parlamento processá-la e deliberar sobre ela.

Desse modo, da mesma forma como a petição inicial é no âmbito do processo civil o “veículo de manifestação formal da demanda” (Humberto Theodoro Junior), o ato pelo qual o autor invoca a prestação jurisdicional do Estado, o exercício do poder de iniciativa, mediante a apresentação da proposição legislativa, requer ao Poder Legislativo que dê início ao procedimento legislativo pertinente. Por esta razão, a competência ou o poder-dever de apresentar uma proposição qualquer, dando assim início ao processo legislativo, é comumente referida como poder de iniciativa.

2. Iniciativa geral ou concorrente

Manoel Gonçalves Ferreira Filho diz com muita propriedade que, no quadro institucional vigente, não se pode falar em verdadeira iniciativa geral. Afinal, a nenhum dos órgãos do Estado é conferido o poder de desencadear o processo legislativo sobre matérias de qualquer natureza. Todos os órgãos superiores do Estado exercem um poder de iniciativa limitado.

Desse modo, embora o art. 61, caput, da Constituição da República seja referido como a norma que veicula a iniciativa geral ou concorrente, nenhum dos órgãos ali mencionados é competente para iniciar a formação de norma versando sobre todas as matérias de natureza legislativa.

Com efeito, se aos Tribunais só é reconhecido direito de iniciar o processo legislativo para tratar de matérias afeitas ao seu próprio funcionamento, mesmo o Presidente da República não pode iniciar o processo legislativo para tratar de matérias da competência exclusiva do Parlamento ou dos Tribunais. Desse modo, não detém o Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de propor resoluções, já que tais normas se restringem à organização do Poder Legislativo, dispondo, por exemplo, sobre o seu regimento ou a organização de sua secretaria.

Desse modo, o que se costuma denominar de iniciativa concorrente é aquela partilhada pelo Parlamento e o Chefe do Poder Executivo, já que os demais órgãos superiores do Estado só exercem a competência de iniciativa privativa.

No Estado de São Paulo, a competência concorrente é objeto do caput do art. 24 da Constituição Estadual, que diz o seguinte:

“A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição”.

3. Iniciativa privativa

O poder de iniciativa é privativo ou reservado quando a apresentação de determinada espécie legislativa ou de proposição versando sobre determinada matéria incumbe a um único órgão do Estado.

Na Constituição Estadual, a iniciativa privativa está expressa nos parágrafos do art. 24, começando pela iniciativa reservada ao próprio Poder Legislativo (§ 1º), prosseguindo com a reserva de iniciativa do Poder Executivo (§ 2º) e do Tribunal de Justiça (§ 4º). A iniciativa popular é objeto do § 3º, que – contrariando a boa técnica – versa ainda sobre o plebiscito e o referendo.

Como a delimitação de cada uma das funções estatais só pode ser objeto de norma constitucional, a reserva de iniciativa, como restrição à função legislativa, só poderá ser estatuída por disposição constitucional expressa. É o que entende o Supremo Tribunal Federal, como se depreende do seguinte trecho:

“A Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve, necessariamente, derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara – especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo – ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado”.

Ademais, por constituir-se a reserva de iniciativa em exceção à norma geral, que é a iniciativa geral ou concorrente, ela exige, em obediência às normas da Hermenêutica Jurídica, uma interpretação restritiva. O que significa dizer que nem a analogia ou o recurso aos princípios gerais do direito poderão ser invocados para apoiar a extensão do campo reservado à iniciativa privativa.

Desse modo, não havendo previsão constitucional expressa, não existe reserva de iniciativa.

Por este motivo, a referência ao direito tributário. Contrariando preconceito há muito estabelecido, os tribunais têm entendido que as normas tributárias são de iniciativa concorrente, pois, excetuando-se no caso dos tributos dos Territórios, não há preceito constitucional expresso a reservar o poder de iniciativa nesta matéria ao Executivo.

A norma contida no item 1 do § 2º do art. 24, da Constituição Paulista, que reserva ao Governador do Estado a iniciativa das leis que versarem sobre “criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração”, merece uma referência especial.

Aplicada, por jurisprudência unânime de nossas Cortes de Justiça, mesmo aos Estados e Municípios que se omitiram em reproduzir norma similar, expressa pela Constituição Federal, tal reserva tem sido interpretada como corolário necessário da tripartição de poderes, já que o Texto Magno consagrou, por meio da iniciativa privativa, a independência de cada Poder para dispor sobre assuntos afetos diretamente a seu interesse. E a tripartição dos poderes é um dos princípios fundamentais do Estado Brasileiro (art 2º, da CF).

Por outro lado, o item 4 do § 2º do art. 24, do mesmo Estatuto Político, também reserva ao Chefe do Poder Executivo o direito de iniciativa das leis que tratem dos “servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria”. O ponto mais polêmico deste dispositivo refere-se à expressão regime jurídico, já que todas as normas de direito que incidem sobre determinada matéria podem ser consideradas como parte de seu regime jurídico. Desse modo, tal norma constitucional, também reflexo da Constituição Federal, poderia roubar aos Deputados o poder de iniciar a formação de qualquer lei que tenha por objeto a relação jurídica entre a Administração e seus funcionários. Este, aliás, tem sido o entendimento da jurisprudência.

O poder de emenda e reserva de iniciativa

Durante a vigência da Constituição de 1969 (Emenda nº 1 à Constituição de 1967) prevaleceu durante muito tempo o entendimento de que o poder de emenda, corolário do poder de iniciativa, não existia quando se tratava de projetos de iniciativa reservada.

Tal interpretação não era gratuita, mas fundada no espírito do direito constitucional vigente, já que era proibida expressamente a emenda a algumas das proposições de iniciativa privativa do Poder Executivo, inclusive o orçamento anual.

Ora, além de tais restrições não constarem do atual Texto Fundamental, o art. 63 só restringe o poder de emenda nas seguintes hipóteses:

1. “nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, § 3º e § 4º”;

2. “nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público”.

Entretanto, existe farta jurisprudência decidindo pela invalidade de emenda versando sobre matéria diversa àquela de que trata a proposição remetida ao exame do Parlamento pelo Presidente da República ou pelas Cortes de Justiça.

4. Reserva de iniciativa e matéria essencialmente administrativa

É comum que o vício de iniciativa seja alegado pela Poder Executivo com recurso ao conceito da “matéria essencialmente administrativa”.

Trata-se de conceito pantanoso e equívoco, ao qual se atribui os mais diversos conteúdos, sem que o mesmo tenha merecido consideração mais profunda por parte da doutrina e jurisprudência brasileiras.

Ao meu juízo, o único conceito possível do que seria matéria essencialmente administrativa, à luz do nosso direito positivo, é aquela que define a mesma como o assunto que só pode ser objeto de decreto autônomo. E o decreto autônomo é aquele que o Chefe do Poder Executivo edita, não no exercício do poder regulamentar, mas de competência que lhe é deferida pela Constituição para o exercício de suas prerrogativas exclusivas.

Exemplo de matéria essencialmente administrativa, segundo o nosso direito positivo, é aquele introduzido pela Emenda Constitucional nº 32, que conferiu ao Presidente da República o poder de “dispor mediante decreto” sobre a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos” (art. 84, VI, CF).

Assim, o decreto que criar um órgão pluripessoal, mediante a lotação de cargos anteriormente criados, não será expedido para “fiel execução das leis”, como os decretos editados no exercício do poder regulamentar, mas a competência do Poder Executivo para tratar de matéria essencialmente administrativa.

Todavia, como a priori toda atividade administrativa está vinculada à lei (princípio da legalidade), a matéria essencialmente administrativa será sempre uma exceção, sujeita, portanto, a interpretação restritiva.

O importante, porém, é que a matéria essencialmente administrativa não pode ser invocada como fundamento do vício de iniciativa, já que ela pertence à operação anterior, pela qual o aplicador da lei deve verificar a competência legislativa, ou seja, a capacidade atribuída ao Poder Legislativo para deliberar sobre determinada matéria, veiculando a respeito da mesma uma norma de natureza legislativa.

Decidindo-se o aplicador da lei pela natureza legislativa da norma editada pelo Parlamento, não pode ele mais tarde, ao fundamentar o vício de iniciativa então constatado, cogitar do seu caráter essencialmente administrativo.