Como e a linguagem do texto e complicada e difícil de entender

De repente, dei por mim novamente. Olhei as horas no relógio. 23:51. Eu devia ter perdido a atenção pelo quê, dez minutos? Estava tarde, eu precisava ler logo aquele texto. Tentei novamente digerir aquele difícil parágrafo:

Tradicionalmente, invoca-se Immanuel Kant (1997:85) como o precursor da expressão autonomia da vontade, a partir de sua Fundamentação da metafísica dos costumes: “Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. Que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética; teria que passar-se além do conhecimento dos objectos e entrar numa crítica do sujeito, isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética, que ordena apodicticamente, tem que poder reconhecer-se inteiramente a priori”.

Foquei. Tentei por vários minutos absorver alguma informação dessa passagem. Quem sabe uma frase de cada vez? Não funcionou. Para entender uma frase, parecia importante saber também o que dizia a próxima, como se eu devesse ter algum conhecimento prévio do que estava escrito ali. Era como se eu já devesse saber o que é a autonomia da vontade para entender aquele parágrafo sobre o que é a autonomia da vontade. “Objectos do querer”, “proposição sintética”, “razão prática pura”– o que diabos significam cada uma dessas coisas? É isto: ao ler meus textos obrigatórios para próxima aula de Direito Civil, descobri que já deveria ter conhecimento sobre a obra de Kant, embora ninguém tivesse me avisado.

Tentei lembrar o que o professor disse na aula sobre o assunto. Não lembrei da aula, mas lembrei de outras coisas mais… Distraí-me novamente. Desisti. Segui minha leitura. Dois parágrafos depois, deparei-me com isto:

O caráter filosófico também é extremado por Marcel Waline (1945:92), colocando-o sob a manta do jusnaturalismo de matiz contratualista: “l’résultat de cette doctrine qu’il y aurait des droits antérieurs à la societé, les droits naturels de l’homme, c’est-à-dire la liberté, la proprieté, la sûreté et la résistance à l’oppresion (toujours d’après la Déclaration des droits de l’homme) antérieurs à la societé, ces droits n’auront naturellement pas une origine sociale, et toutes le règles juridiques établies pour leur défense et leur conservation n’auront une source sociale que dans leur forme et dans leurs dispositions constructives, mais non dans leur principe”.

Ingênuo, percebi que, além de ter feito um curso sobre a obra da Kant, eu também deveria ser fluente em francês. Subitamente, senti-me pequeno. Insuficiente.

Tomou-me uma sensação de estar preso do lado de fora. Como alguém que vê uma festa do lado de fora, da rua. Eu estava do lado de fora daquela rodinha de intelectuais a que pertencia o autor do texto e os leitores cultos a que ele se dirigia. Ele não se dirigia a mim – não, dirigia-se a pessoas cultas que sabem Kant e francês e que se regozijam com suas longas frases indiretas com objetos diretos preposicionados, adjetivos eruditos, mesóclises, e aquela série de formas que não se veem sair da boca de qualquer brasileiro que não frequente os claustros acadêmicos.

Estudante universitário, eu já estava acostumado a ter de lidar com textos maçantes, difíceis e pouco didáticos como esses. Todos estamos. Banalizamos coisas como gastar vários minutos presos em um mesmo parágrafo, perder a concentração o tempo inteiro; cansar-se após algumas poucas páginas. Deparamo-nos com textos assim tão logo entramos na faculdade, e acreditamos que essas dificuldades são intrínsecas à vida acadêmica. Entendemos equivocadamente que essa dificuldade é algo natural, própria das salas de aula.

Não obstante, a fim de penetrarmos na cultura acadêmica e sermos aceitos, aprendemos a imitar essas formas “rebuscadas” em nossos próprios escritos e falas, reproduzindo essa cultura e passando-a adiante. É verdade: acontece todo ano, sempre que uma nova turma de calouros ingressa na faculdade. Primeiramente, sai na frente um “seleto” grupo de calouros imberbes que, inexplicavelmente, começa a manifestar-se nas aulas, grupos de estudos, extensões, com discursos formais e rebuscados, como se no dia de sua matrícula tivesse acordado metamorfoseado em Doutor. Em sequência, há aqueles que formam a grande maioria: estudantes que têm de se esforçar em maior ou menor grau para se adaptar à formalidade e erudição do ambiente acadêmico e muitas vezes sentem-se ofuscados e/ou inferiorizados por aqueles que “falam bonito” com entusiasmo e vaidade. Esses também começarão a falar e escrever “rebuscado”, querendo ou não; seja pela premência de não se sentir inferior em meio aos outros, seja pelas avaliações, que observarão isso.

Funciona assim: somos instruídos em provas, fichamentos, resenhas, apresentações etc. a sermos os mais corretos e acurados possível, pois esse é o critério de avaliação que mais importa, senão o único. Dessa maneira, buscamos refúgio em mimetizar a forma que os autores que lemos escrevem, com seus mesmos termos e construções frasais. Afinal, escrever textos igualmente eruditos e acurados é o que importa, e ninguém descontará nota se também reproduzirmos sua dificuldade e chatice. Em um exemplo: se escrevermos uma frase inteira em francês e a traduzirmos, incorremos no perigo de errar a tradução; mas, se a deixarmos intraduzida, não teremos prejuízos na avaliação – bem como faremos jus à aura de intelectual. Isso faz com que ocorram absurdos como conceitos e frases inteiras em francês, inglês, alemão, italiano, ou latim, nas quais ninguém se dá o trabalho de traduzi-los ou explicá-los.

Essa cultura é antiquada e maléfica, pois faz com que passemos a confundir a dificuldade de entendimento de um texto  com a sua qualidade. Diferenciamos os grandes autores pela dificuldade que temos em entender seus textos – quanto mais incompreensíveis, mais altos estariam em uma suposta pirâmide intelectual. Isso acaba por gerar efeitos perversos.

Um deles é que acabam surgindo aqueles que escrevem e falam prezando pela forma, em detrimento de seu conteúdo, de maneira a esconder-se o que realmente se quer ou não dizer. Esse é o comportamento do advogado que, ao não ter realmente como defender seu cliente, cospe sequências de frases difíceis para demonstrar um pretenso conhecimento e poder. Sobre essa situação, Michel de Montaigne já dizia:

“a dificuldade é uma moeda de troca que os sábios empregam, como os prestidigitadores, para não revelar a vanidade de sua arte, e com a qual a tolice humana se contenta facilmente”.

Outra consequência é a elitização da cultura universitária, em detrimento de uma maior transmissão de seu conhecimento. Escrever difícil se torna, assim, uma expressão de vaidade intelectual. Isso se trata de uma inversão de valores perversa, na qual se supõe que há aqueles que “detêm” o conhecimento, e aqueles “leigos” que devem perseguir o conhecimento apesar de todos os obstáculos. E, se esse leigo não entende o que está escrito, é por culpa de sua própria ignorância. Há um episódio pitoresco nesse sentido, na qual o professor titular e emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas nesta mesma universidade, José Arthur Giannotti, no Programa Roda Viva, comentou que quando as pessoas o questionavam do porquê de seus textos serem difíceis e complexos, ele respondia: “desculpe, vá ler Kant”. Perfeito exemplo do modelo de ensino adotado por grande parte dos catedráticos desta Universidade, em que se mede a qualidade do autor a partir da sua incompreensibilidade. Contra isso, o francês André Comte Sponville escreveu: “Será somente porque escreve mal que Kant é um grande filósofo?”

Como forma de defender a dificuldade de seus textos, há muitos autores que argumentam de que, em verdade, é necessária essa linguagem para a precisão na transmissão do conteúdo. De fato, toda ciência possui suas linguagens próprias, recheadas de termos técnicos, necessários para a exatidão na comunicação. É assim na Biologia, na Química, na Matemática. Contudo, nessa busca desmedida pela precisão, corre-se o risco de se abandonar qualquer preocupação com o didatismo e, no fim, não se entender o que está escrito. De nada adianta escrever textos difíceis, mas corretíssimos, se ninguém os entenderá. A má interpretação do que se escreve pode ser contraproducente; ou então, como escreveu Nietzsche, prevendo os males que tomariam a Alemanha de seu tempo:

Escrever melhor significa também pensar melhor; encontrar sempre coisas mais dignas de serem transmitidas e realmente poder transmiti-las; tornar-se traduzível para os indivíduos vizinhos; […] cuidar para que tudo de bom se torne bem comum e tudo esteja à livre disposição de quem é livre; […] – Quem prega o contrário, não se interessar por escrever bem e ler bem […], esse realmente indica aos povos o caminho de tornar-se cada vez mais nacionais: agrava a doença deste século e é inimigo dos bons europeus, inimigo dos espíritos livres.

É um absurdo o elitismo da linguagem acadêmica, em especial, no Direito. O Direito é de todos os brasileiros, os quais estão submissos ao mesmo ordenamento jurídico. Torná-lo inacessível ao cidadão comum, transformando-o em um palco restrito para discussões entre intelectuais de ego inflado é ilógico. Essa incompreensão do que falam e fazem os juízes, os advogados, os promotores etc., faz com que o brasileiro tenha aversão à Justiça, por não a compreender ou não se sentir digno de procurá-la.

Da mesma forma, isso afeta as universidades como um todo, que acabam produzindo conhecimento somente para si próprias, não chegando ao alcance do povo, que começa a entendê-las inúteis, e a duvidar das ciências como um todo. A opinião pública acaba sendo formada por apresentadores de televisão sensacionalistas, youtubers, políticos oportunistas, sem qualquer preparação teórica, mas que falam a língua do povo. Isso, pois as universidades estão muito ocupadas ensimesmadas em seus mundinhos e dialetos próprios.

Escrever com clareza é uma obrigação moral das universidades para com a sociedade.

  • Facebook
  • Twitter
  • LinkedIn
  • Copy Link
  • Mais