Por que os egípcios tem medo da noite

Terra de tesouros e mistérios. E de maldições para quem ouse profanar os túmulos de reis que viveram há milênios. É essa a imagem do Egito popularizada em filmes de Hollywood como A Múmia e O Retorno da Múmia. Eles são exemplo do fascínio que aquela antiga civilização egípcia ainda desperta no imaginário popular. Com certeza, filmes desse tipo levam muitos jovens a sonhar com a carreira de arqueólogo.

No entanto, o Egito foi bem mais que tumbas. Sua civilização era uma das mais sofisticadas da Antiguidade. Diferentemente do que filmes e documentários podem sugerir, os egípcios não eram um povo fúnebre nem sinistro. Pelo contrário: gostavam de fazer festas (regadas a muita comida e vinho), de cuidar da aparência. E, assim como muitos de nós, acreditavam na vida após a morte.

A história do Egito antigo é enorme: começa por volta de 4500 a.C., quando surgem as primeiras comunidades agrícolas (e olhe que pode ter sido até antes: alguns livros falam em 5000 a.C.), e termina em 641 d.C., quando os árabes conquistaram a região e converteram seus habitantes à religião muçulmana. São mais de cinco milênios, e seria pretensão demais querer contar "tudo sobre o Egito antigo". Por isso, vamos destacar apenas certos aspectos dessa civilização, dando respostas para algumas das perguntas mais comuns.

Quem construiu as pirâmides?

As pirâmides do Egito foram construídas por trabalhadores recrutados entre a própria população, que recebiam alguma forma de pagamento, na forma de alimentos e de peças de cerâmica. Portanto não foram escravos, embora as condições de vida dos homens livres pobres não fossem lá muito melhores que as dos cativos. E, ao contrário do que afirmam livros e documentários sensacionalistas, as pirâmides certamente não foram erguidas por extraterrestres - nenhum arqueólogo que se preze vai dizer que visitantes de outro planeta as construíram.

A propósito: elas serviam para os faraós aproveitarem a vida após a morte. Por isso, achamos ali objetos que pertenciam a uma minoria. No Egito, encontramos muito menos vestígios arqueológicos que mostrem como viviam os pobres, a maioria da população. Isso acontece porque pobre morava em construções mais precárias, que não duravam tanto.

Como foram construídas as pirâmides?

Para erguer uma delas, era necessário o trabalho de milhares de homens ao longo de mais ou menos 25 anos. As estimativas variam, mas as pesquisas mais recentes falam de 10 mil a 40 mil trabalhadores (bem menos que as mais antigas, que mencionavam até 100 mil). Ao construí-las, era necessário investir praticamente todos os recursos do Estado. Blocos de calcário eram extraídos com martelos e outras ferramentas e transportados de barco pelo rio Nilo. Depois, eram arrastados até uma rampa em torno da primeira camada de pedras da pirâmide. Para isso, usavam-se trenós e rolos de feitos de troncos.

Hoje, investir em obras que tivessem comparativamente a mesma magnitude levaria qualquer país à falência. Donde a expressão "obras faraônicas" para indicar coisas construídas com dinheiro público por políticos que gostam de se promover gastando muito mais do que podem.

Como e por que se fazia a mumificação?

Os egípcios acreditavam que preservar o corpo era necessário para o espírito sobreviver após a morte. No início, a mumificação era muito cara, sendo reservada apenas aos faraós e outros nobres. A partir da 18ª dinastia (1570-1304 a.C.), o costume estendeu-se ao resto da população.

Os embalsamadores tinham conhecimentos de anatomia e medicina. O processo era complicado e levava 70 dias:

  • 1) Primeiro, extraíam-se o cérebro, as vísceras e todos os órgãos internos, para colocá-los em quatro vasos.
  • 2) Depois, desidratava-se o corpo com várias resinas (entre elas o natrão, um composto de sódio).
  • 3) Por fim, depois de 40 dias, ele era enfaixado com bandagens embebidas em óleos aromáticos.

O que representa a Esfinge? 

Esfinges são criaturas mitológicas com corpo de leão, cabeça de gente e (às vezes) asas de pássaro. São comuns tanto na cultura egípcia quanto na grega. A Esfinge de Gizé, a mais conhecida, é um dos símbolos da realeza egípcia e foi construída por Quéfren, o quarto faraó da 4ª dinastia (2575-2465 a.C.). Hoje sabemos que a Esfinge tem o rosto desse faraó. Ela teria sido construída para ser uma espécie de guardiã.

A Esfinge foi restaurada por um príncipe da 18ª dinastia, o qual teria sonhado que a Esfinge lhe disse que ele se tornaria faraó quando fizesse isso. A areia que a cobria foi retirada, e uma estela (coluna ou placa de pedra com inscrições) foi colocada entre suas patas, para comemorar o sonho e a restauração. Hoje, por causa da erosão, a Esfinge de Gizé está sendo restaurada de novo.

Curiosamente, os árabes conhecem a Esfinge de Gizé pelo nome Abu al-Hawl, que significa "Pai do Terror". O príncipe? Esse virou faraó Tutmés (ou Tutmósis) IV, que reinou em 1401-1391 a.C.

Os antigos egípcios eram negros?

O Egito fica na África, e isso contribuiu para membros da comunidade negra dos EUA afirmarem que os egípcios eram negros. A ideia até foi difundida num clipe de Michael Jackson, para a música "Remember the Time". Mas é tudo confusão com os núbios.

A Núbia se localizava em parte do território dos atuais Egito e Sudão. Os núbios construíram um império, que incluía o famoso Reino de Kush, e tiveram intenso intercâmbio cultural com os egípcios. Também construíram pirâmides, embora não tão grandes quanto as egípcias.

No século 8º a.C., eles invadiram e conquistaram o Egito, iniciando quase um século de domínio. Os reis núbios que então governaram o país são conhecidos como "faraós negros". Já os egípcios, pelo menos em sua maioria, não eram negros, mas brancos. No entanto, vale lembrar que houve miscigenação entre egípcios e núbios.

Os faraós eram considerados deuses?

Sim. Os faraós eram tidos como descendentes de Rá ou Aton, o deus-sol. Os egípcios acreditavam que ele tinha sido o primeiro governante do Egito. A própria terra era considerada "filha" de Rá, tendo sido entregue aos cuidados do "irmão", o faraó. Para manterem a "pureza" do sangue real, os faraós casavam com as próprias irmãs.

A suposta origem divina legitimava o poder do monarca. Assim, quem se opusesse ao faraó estaria cometendo sacrilégio, porque agiria contra os próprios deuses. Hoje, vivemos numa sociedade em que governo e religião são coisas separadas. No Egito Antigo, essa distinção causaria estranheza, pois as duas coisas estavam intimamente ligadas: o faraó era autoridade tanto política quanto espiritual, e os templos e sacerdotes se mantinham com o dinheiro dos impostos.

Qual era a religião dos egípcios?

Eles eram politeístas, isto é, acreditavam em vários deuses. Alguns destes eram representados com forma humana, e outros, com corpo de gente e cabeça de bicho. Era comum que um mesmo deus tivesse mais de um nome ou fosse representado com diferentes aparências. Entre as muitas divindades egípcias, podemos destacar:

  • 1) Osíris, herói de muitas lendas, considerado o juiz dos mortos. Foi assassinado por Seth, o deus do mal, mas conseguiu ressuscitar graças à irmã e esposa, Ísis, que tinha pedido ajuda a Anúbis, deus da mumificação e protetor das tumbas. Para alguns estudiosos, a história da morte e ressurreição de Osíris representa o "renascimento" da natureza: no Egito, havia os períodos de seca e de cheia do Nilo (quando as águas invadiam as casas, destruindo quase tudo), mas depois vinham as colheitas.
  • 2) Hórus, filho de Osíris e Ísis. Enquanto Osíris reina sobre os mortos, Hórus reina sobre os vivos. Era representado com corpo de homem e cabeça de falcão.
  • 3) Anúbis, já citado. Tinha corpo de homem e cabeça de chacal, o que é bastante curioso: os chacais são carniceiros, e isso não parece adequado a uma divindade protetora das tumbas.
  • 4) Rá ou Aton: o deus-sol. Em sua homenagem, Amenófis IV (que viveu no século XIV a.C.) adotou o nome Akhenaton ("aquele que serve Aton"). Esse faraó também decretou que Aton fosse o único deus cultuado. Assim, durante seu reinado, a religião passou do politeísmo ao monoteísmo (culto a um único deus). A intenção de Amenófis IV deve ter sido aumentar seu poder pessoal e diminuir o dos sacerdotes, que eram funcionários do Estado. Após a morte desse faraó, o politeísmo foi restabelecido.

É verdade que os gatos eram sagrados no Egito?

Sim. Os gatos estavam associados à deusa Bastet, representada com corpo de mulher e cabeça de gato. Era a protetora das grávidas. Também se acreditava que a deusa garantisse as pessoas contra doenças e demônios.

Pinturas com imagens de gatos são encontradas principalmente em tumbas do chamado Novo Império (o período de 1550 a.C. a 1070 a.C., quando o Egito foi governado pela 18a, 19ª e 20ª dinastia). Eles também são mencionados em vários papiros egípcios, tanto literários quanto místicos. Alguns desses textos alertam os leitores para que tomem cuidado com demônios que assumem a forma de gato.

Uma explicação possível para a adoração aos gatos está no fato de caçarem ratos. Os egípcios dependiam do cultivo do trigo, cujos grãos, armazenados, atraem os roedores. Ao caçarem os ratos, os gatos ajudavam a controlar uma praga que podia comprometer toda a produção agrícola.

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Egito Antigo

Na antiguidade, tudo era justificado com base nos deuses: desde os fenômenos da natureza até as emoções. Desenvolvemos a série "Deuses da Astronomia" justamente para entender de que maneira os astros eram justificados pelas antigas civilizações e, nesta terceira parte do especial, você descobre como os astros eram representados na mitologia egípcia.

De acordo com o filósofo e teólogo Valdecir Ferreira, professor de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), as divindades surgem da necessidade de encontrar significado e que estes fossem convincentes, diante daquilo que não havia respostas

"Podemos dizer que foi uma primeira forma de conhecimento mais sistemática, mesmo que não científica. Era interessante como as estações do ano eram determinadas pelos deuses. O mesmo se dizia sobre os trovões, as chuvas, as secas, a beleza na natureza e tantas outras situações referentes as obras existentes. No tocante ao ser humano ou àquilo que nele se esbarra, é importante recordar que a paixão, o medo, a coragem também eram atribuídos aos deuses", explica o professor. "Guerras, pragas (infestações), males (doenças) e até mesmo as classificações sociais eram igualmente direcionadas, como forma de pretextar", acrescenta.

O especialista conta, ainda, que os egípcios foram promissores nas pesquisas da astronomia. "Assim como os gregos tiveram a influência dos egípcios, estes tiveram influência dos mesopotâmicos. A astronomia egípcia estava muito ligada com a economia".

Valdecir ressalta que a economia estava condicionada às enchentes do Rio Nilo. Portanto, a astronomia inicial no Egito era ligada especialmente ao sol e as influências com os ventos e as chuvas. "Contudo, não podemos diminuir o valor desta astronomia, visto que sua maneira de desbravar tal conhecimento, influenciada pelos conhecimentos dos mesopotâmicos, fez com que algumas pirâmides fossem construídas em alinhamento com as estrelas. Novamente fazendo aquela referência ao ser humano, ao contemplar o céu, tem uma vontade de infinito (e não nos esqueçamos que as pirâmides eram túmulos para os Faraós)", declara.

Céu

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Na mitologia egípcia, Nut e Hórus são as divindades que personificam o céu (Imagem: Reprodução/Pexels/Pixabay)

A criação do mundo para os egípcios é variante dependendo da cidade e do deus cultuado nesta cidade. Na cidade de Heliópolis, a criação é protagonizada pela deusa do céu, Nut, uma primordial (que antecede outras gerações). De acordo com esse mito, Nut é filha de Shu, deus do ar seco, com Téfnis, deusa da umidade, e seria irmã e esposa de Geb, o deus da terra.

Alguns estudiosos sustentam a ideia de que a deusa Nut simbolizava a faixa da Via Láctea. Normalmente, Nut é representada sob forma humana, de perfil e nua, como se arqueasse seu corpo sobre o deus da terra, tocando o horizonte com os braços e pernas estendidos. Em outras ocasiões, a deusa é representada apoiada em seu pai, Shu. Ela também foi representada de frente no interior de sarcófagos, geralmente engolindo ou dando à luz o sol.

No mito, o riso de Nut representa o trovão e o choro representa a chuva, enquanto o corpo simboliza a abóbada celeste. A ideia, basicamente, é que Nut se estendia sobre a Terra para protegê-la; seus membros, que tocavam o solo, simbolizavam os quatro pontos cardeais. A divindade em questão também era tida como a mãe dos corpos celestes. Os egípcios acreditavam que ao entardecer, o Sol se punha em sua boca, para que, à noite, viajasse através de seu corpo e que, pela manhã, ele voltasse a brilhar em seu ventre, no Oriente.

No entanto, o céu também é personificado pelo deus Hórus, que é representado com uma cabeça de falcão e uma coroa branca, considerando que os olhos representavam o Sol e a Lua. Durante uma batalha contra Set (deus da desordem), Hórus feriu o olho esquerdo, o da Lua. Este ferimento é uma explicação dos egípcios para as fases da lua. Após derrotar Set, tornou-se o rei dos vivos no Egito.

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Rá, o deus-Sol, é o mais poderoso do panteão egípcio (Imagem: Reprodução/Jonathan Petersson/Pexels)

Rá é conhecido como o deus do sol e uma das mais importantes divindades egípcias antigas. Ele também foi associado à construção de pirâmides e à ressurreição dos faraós. Esse deus simbolicamente nascia todas as manhãs com o nascer do sol, e morria com cada pôr do Sol, iniciando sua jornada para o submundo. Assim como no caso de Nut, o principal centro de seu culto era a cidade de Heliópolis, onde, na verdade, era identificado como Atum ou como Atum-Ra. Segundo o mito da cidade em questão, Atum seria o avô de Nut, pai de Shu e Téfnis.

Rá era frequentemente associado ao Hórus e, assim como ele, era geralmente retratado como um homem com cabeça de falcão. No entanto, em vez de uma coroa branca e vermelha, Rá possuía um disco solar em sua cabeça. Em vários mitos, Rá é o deus supremo do egito que mantém o Caos (a serpente Apófis, que é vista como a destruidora dos mundos) contido. A relação entre Rá e Apófis pode ser uma representação para o eclipse: a serpente persegue Rá e eles lutam enquanto o deus arrasta o Sol através do céu, iluminando o mundo. Então, quando, o monstro quase consegue vencer o a divindade solar, acaba gerando o que conhecemos como eclipse.

Outra divindade egípcia relacionada com o Sol é Bastet, filha de Rá. Basicamente, em contrapartida ao mito de Apófis, era ela que tinha o poder sobre os eclipses solares. Era representada como uma mulher com cabeça de gato, e seu centro de culto estava na cidade de Bubástis, na região oriental do Delta do Nilo. Bastet também era tida como uma deusa da fertilidade, além de protetora das mulheres grávidas. Já a guerreira Sekhmet, relacionada com a vingança, também é uma filha de Rá, e por isso é identificava como uma deusa solar.

Lua

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Na mitologia egípcia, a Lua é representada por dois deuses: Iá e Quespisquis, mas também é associada a um olho de Hórus (Imagem: Reprodução/Gerhard G/Pixabay)

Por sua vez, a Lua também tinha a sua representação na mitologia egípcia. No caso, uma delas era Iá, que era representado com um disco solar e uma Lua crescente sobre sua cabeça. Segundo o mito, ele poderia também se manifestar como um pássaro ou falcão.

No entanto, Iá não é a única divindade associada ao satélite natural da Terra. O deus Quespisiquis também cumpre esse papel, exceto que representa também a passagem no tempo, e está mais associado à movimentação da Lua. Alguns determinados mitos egípcios atribuem a Quespisquis um fundamental na criação de nova vida em todos os seres vivos.

Esse último deus também pode ser representado com uma cabeça de falcão, com um enfeite em sua cabeça trazendo um disco solar e uma Lua crescente. Vale ressaltar que, além de deus da Lua, também é tido como um curandeiro.

Constelações

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(Imagem: Reprodução/Karin Henseler/Pixabay)

Assim como a mitologia grega, que trazia justificativas para as constelações, a egípcia também faz. É o caso, por exemplo, de Sopdet, considerada por muitos estudiosos na área como Sirius. O significado de seu nome, em egípcio, é justamente uma referência ao brilho de Sirius. Sopdet costuma ser representada como uma mulher com uma estrela de cinco pontas sobre a cabeça. Sopdet também foi considerada como uma deusa do solo fértil, responsável por anunciar as inundações do Nilo, protetora da agricultura, do tempo. Vale apontar que Sopdet é a esposa de Sah, uma representação da constelação de Órion. Sah, eventualmente, é identificado como uma das formas de Hórus.