Os traços culturais só têm significado quando considerados dentro de uma cultura específica

Cultura: nossa herança social

De um modo geral, fala-se de cultura como um saber a ser adquirido, ou como conhecimento acumulado. Assim, diz-se que uma pessoa é "culta" quando ela é muito bem informada, leu muitos livros, cursou uma universidade, fez pós-graduação. Um indivíduo nessas condições, segundo o senso comum, é uma pessoa que "tem" cultura.

Outra acepção da palavra está relacionada com a produ­ ção literária, com a música, o cinema, etc. Nesse caso, quando se faz referência à "cultura" francesa, por exemplo, o que se tem em mente são as manifestações dessa produção ligada à "cultura erudita" na França.

Para as Ciências Sociais, o conceito de cultura tem um significado diferente: é o conjunto de crenças, regras, manifes­ tações artísticas, técnicas, tradições, ensinamentos e costumes produzidos e transmitidos no interior de uma sociedade. Para alguns pensadores, é tudo o que o ser humano produz, tudo o que não é natureza.

À procura de uma definição

o antropólogo Clyde Kluckhohn (1905-1960) observa em Antropologia: um espelho para o ho­ mem que cultura é "a vida total de um povo, a herança social que o indivíduo recebe de seu grupo, ou pode ser considerada a parte do am­ biente que o próprio homem criou". Por sua vez, Bronislaw Malinovski (1884-1942), outro antro­ pólogo, ensina que a cultura compreende "arte­ fatos, bens, processos técnicos, idéias. hábitos e valores herdados".

Em outro texto, escrito em parceria com A.Kroeber, Clyde Kluckhohn dá outra definição:

"A cultura consiste em padrões de comportamento adquiridos por meio de símbolos, e que constituem as realizações características de grupos humanos, inclusive suas materializações em artefatos" (Di­ cionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Edito­ ra da FGV, 1987, p. 290).

Seja qual for a definição adotada, todos os es­ tudiosos concordam que a aquisição e a perpetuação da cultura é um processo social, resultante da aprendizagem. Cada sociedade transmite às novas gerações o patrimônio cultural que recebeu de seus antepassados. Por isso, a cultura é também chama­ da de herança social.

Nas sociedades em que não há escolas, a trans­ missão da cultura se dá por intermédio da família ou da convivência com o grupo adulto. Nesse caso, diz-se que a educação é informal ou assistemática (para aprofundar seu conhecimento sobre educa­ ção, leia o último capítulo deste volume).

Quando há escolas, estas se encarregam de aprofundar a transmissão da cultura iniciada na família e em outros grupos sociais. Nesse caso, a educação é formal ou sistemática, isto é, obedece a urna organização previamente planejada.

O texto da página seguinte mostra até que ponto essas duas formas de educação podem es­ tar em conflito, quando correspondem a culturas diferentes.

No começo do século XIX, o governo do estado de Virgínia,

nos Estados Unidos, sugeriu aos

líderes de diversos povos indí-

genas que enviassem alguns de seus jovens para estudar nas es­ colas dos brancos. Em sua car­ ta-resposta, os chefes indígenas recusaram delicadamente a pro­ posta. Eis algumas das razões alegadas por eles:

Nós estamos convencidos de que os senhores desejam o nosso bem e agradecemos de todo cora­ ção. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções dife­ rentes de ver as coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa. [ ... J

Muitos dos nossos bravos guerreiros fo­ ram formados nas escolas do Norte e apren­ deram toda a vossa ciência. Mas quando eles voltaram para nós eram maus corredores, ig­ norantes da vida da floresta e incapazes de suportar o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo ou construir uma cabana, e falavam muito mal nossa língua. Eles eram, portanto, totalmente inú­ teis. Não serviam como guerreiros, como ca­ çadores ou como conselheiros.

Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá­ Ia, para mostrar a nossa gratidão concordamos que os nobres senhores de Virgínia nos enviem alguns de seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles homens.

In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. o que é educação.

São Paulo: Brasíliense, 1984. p. 8-9.

Coleção Primeiros Passos.

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Indigenas norte-americanos em foto de Edward Curtis (1868-1952).

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Pesquise e responda

Se você quiser mais informações sobre a cultura e a educação entre os índios brasileiros, pode consultar os seguintes sites:

www.historiadobrasil.netjindiosdobrasil www.suapesquisa.comjindiosj www.seednet.mec.gov.brjnoticias www.socioambiental.orgjnsaj detalhe

Neste último site, você pode acessar o livro O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, de Gersen dos Santos Luciano.

Não há, portanto, um modelo único, uma forma exclusiva de educação. A carta dos indígenas nor­ te-americanos ao governo de Virgínia revela que a cultura de uma sociedade é transmitida das gerações

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

adultas às gerações mais jovens por meio da educa­ ção. Educar, pois, é transmitir aos indivíduos os valo­ res, conhecimentos, técnicas, padrões de comporta­ mento, hábitos de vida, enfim, a cultura do grupo.

IDENTIDADE CULTURAL

ada sociedade elabora sua própria cultu­ ra ao longo da História e, a não ser que se trate de um grupo em condições de iso­ lamento social, recebe a influência de outras culturas. Todas as sociedades, desde as mais simples até as mais complexas, têm sua pró­ pria cultura. Não há sociedade sem cultura.

A cultura pode ser definida como um estilo de vida próprio, um modo de vida par­ ticular que todas as sociedades desenvolvem e que caracteriza cada uma delas. Assim, os in­ divíduos que compartilham a mesma cultura apresentam o que se chama de identidade cultu­ ral. É essa identidade cultural que faz com que a pessoa se sinta pertencendo ao grupo, é por

2 I As duas faces da cultura

A cultura material consiste em todo tipo de utensílios produzidos em uma sociedade - ferra­ mentas, instrumentos, máquinas, hábitos alimen­ tares, habitação, etc. - e tem uma relação direta com o estilo de vida dessa sociedade.

No interior do Nordeste, por exemplo, o estilo de vida está relacionado com a produção de man­ dioca e de macaxeira, de inhame e de outros frutos da terra. Da primeira se faz a farinha de mandioca. Já a segunda é muito consumida, cozida, no café da manhã, da mesma forma que o cará e o inhame.

No litoral, a produção de coco deu origem a diversos pratos, como a moqueca de peixe e o fei­ jão de coco. Entre os temperos, destaca-se o coen­ tro, visualmente parecido com a salsinha, mais

meio dela que se desenvolve o sentimento de pertencimento a uma comunidade, a uma so­ ciedade, a uma nação, a uma cultura.

Por exemplo, as comunidades indígenas são realidades culturais muito diferentes da so­ ciedade capitalista. Contam com suas próprias regras, valores e estilos de organização, ou seja, têm sua própria cultura. Os indivíduos que pertencem a elas desenvolvem um forte senti­ mento de identidade cultural, como vimos na carta dos chefes indígenas ao governo de Vir­ gínia. Esse sentimento se revela na rejeição ao sistema educacional da sociedade capitalista, considerado "superior" pelas pessoas brancas, e na exaltação da cultura indígena.

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

A expressão folclore é de origem anglo­ -saxônica (folk = povo e lore = saber). Foi criada no século XIX pelo antiquário inglês Ambrose Merton para designar o que chamou de "antiguidades populares". Hoje, ela é uti­ lizada pelos cientistas sociais com o sentido de narrativas tradicionais, encantamentos, provérbios, rezas, canções anônimas muito antigas, folguedos como o bumba meu boi, lendas como a do Negrinho do Pastoreio, mitos, crenças tradicionais, etc.

Realizado em 1951, o I Congresso Bra­ sileiro de Folclore estabeleceu o que deve ser considerado como folclore.

"1. O Primeiro Congresso Brasileiro de Fol­ clore reconhece o estudo do folclore como integrante das ciências antropológicas e culturais; condena o preconceito de só se considerar folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda sua plenitude, quer no aspecto ma­ terial, quer no aspecto espiritual.

2. Constituem o fato folclórico as manei­ ras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à reno­ vação e conservação do patrimônio cientí­ fico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica. [ ... ]" Para entender o fenômeno do folclore,

vamos imaginar que em cima de sua mesa estão três livros, três discos e três pratos de comida. Um prato contém uma refinada la­ gosta ao termidor. o outro, feijão com arroz e bife acebolado e o terceiro, uma porção de "pato no tucupi" [prato típico da região amazônica]. Um disco é das Bachianas bra­ sileiras, de Heitor Villa-Lobos, o outro, de

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sambas de Martinho da Vila e o terceiro, um disco de tradicionais e anônimas moâinhas infantis do norte de Minas. O primeiro livro é Dom Casmurro, de Machado de Assis; o se­ gundo, Cante lá que eu canto cá, de Patativa do Assaré, e o terceiro, uma coletânea de len­ das e mitos do Rio Grande do Sul.

Se a mesa e as coisas existirem de fato diante de você, leitor, ali tudo o que há são produtos da cultura [ ... ]. São construções de objetos, sons, símbolos e significados. No en­ tanto, algumas pessoas poderiam dizer que o prato com a lagosta ao termidor. o livro de Machado de Assis e o disco de Villa-Lobos são parte da cultura erudita; feijão com ar­ roz e bife acebolado, os poemas de Patativa do Assaré e os sambas de Martinho da Vila são expressões de cultura popular; pato no tucupi, lendas e mitos do Rio Grande do Sul e o disco de cantigas das crianças do norte de Minas são folclore, cultura de folk.

Adaptado de: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 31-3. Coleção Primeiros Passos.

Vamos pesquisar?

Faça urna pesquisa sobre o folclore em

sua cidade ou na sua região. Para isso,

tente entrevistar grupos que preservam manifestações culturais antigas, corno cantadores, repentistas, praticantes de capoeira, de danças corno maracatu, bumba meu boi, reisados, samba de roda, jongo, carimbó, afoxé e outras. Feita a pesquisa, escreva um texto sobre o assunto e distribua entre seus alunos.

consumida nas regiões Sudeste e Sul, mas de sa­ bor muito diferente. No Nordeste, o coentro serve para temperar urna grande variedade de pratos, entre os quais a moqueca de peixe e de siri mole, a sopa de feijão e o "arrumadinho",

Tudo isso faz parte da cultura material dos nordestinos e de seu estilo de vida.

A cultura não material

A cultura não material, em contrapartida, abrange todos os aspectos morais e intelectuais da sociedade, tais corno: normas sociais, religião, costumes, ideologia, ciências, artes, literatura, folclore, etc. A música, por exemplo, tanto a eru­ dita quanto a popular, faz parte da cultura não material. Vejamos outros exemplos.

A maior parte da população brasileira segue a religião católica, não há pena de morte em nossa legislação e a miscigenação racial é muito forte, embora persistam manifestações de preconceito e atitudes discriminatórias, principalmente contra os negros. Esses aspectos não materiais de nossa cultura contrastam com os que encontramos nos Estados Unidos - urna sociedade de maioria pro­ testante, na qual muitos estados empregam a pena de morte e onde a discriminação racial era oficial-

3 I Componentes da cultura

A cultura é um todo orgânico, um sistema, um conjunto cujas partes se relacionam estrei­ tamente. Para melhor compreender o que é urna cultura, vamos estudar alguns de seus compo­ nentes.

Os principais aspectos de urna cultura são: os traços culturais, o complexo cultural, a área cultu­ ral, o padrão cultural e a subcultura.

Traços culturais

Você já viu alguém dançando frevo? Trata­ -se de um gênero musical típico de Pernambuco e do carnaval do Recife e de Olinda. Pois bem, cada passo do frevo é um traço cultural dessa manifestação de cultura popular que é o carnaval

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

mente permitida até a década de 1960, quando, após muita luta, criaram-se leis que impedem as práticas racistas.

Urna das manifestações da cultura de grande interesse para o antropólogo é o folclore.

Os suportes da cuLtura não material

Existe urna interdependência estreita e cons­ tante entre cultura material e cultura não mate­ rial. Quando, por exemplo, assistimos à apresen­ tação de urna orquestra, sabemos que as músicas executadas são produto da criatividade de um ou mais compositores. Entretanto, para comunicar sua criação aos outros, os artistas se valem de ins­ trumentos musicais, ou seja, de objetos que ser­ vem para produzir sons.

Da mesma forma que urna melodia requer ins­ trumentos musicais para sua exteriorização, tam­ bém as religiões, de modo geral, necessitam de templos, altares e outros componentes materiais para que possam ser praticadas.

Na verdade, a interdependência entre esses dois aspectos é intrínseca a qualquer cultura, pois um grupo só pode realizar sua cultura não mate­ rial apoiado em meios concretos de expressão que fazem parte de sua cultura material.

pernambucano (o mesmo se pode dizer do samba no Rio de Janeiro).

Traço cultural é o menor componente repre­ sentativo de urna cultura. Ele pode ser um objeto material - por exemplo, o cocar de penas usado por nossos índios. Neste caso, ele próprio é cons­ tituído de partes menores, corno as penas usadas em sua confecção. Entretanto, as penas de pássaro só passam a ser um traço cultural quando reuni­ das, em nosso exemplo, na forma de cocar.

Um carro, um lápis, urna capa, urna pulseira, um computador, um filme são outros exemplos de traços culturais. Os traços culturais são os compo­ nentes mais simples da cultura. Eles são as unida­ des de urna cultura.

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

É necessário ressaltar que os traços culturais só têm significado quando considerados no con­ texto de uma cultura específica. Um colar pode ser um simples adorno para determinado grupo e para outro ter um significado mágico ou religioso.

Para os fiéis de religiões afro-brasileiras como o candomblé, por exemplo, as cores do colar usado dependem da divindade cultuada pela pessoa. De acordo com a crença, eles dão proteção a quem os utiliza. Portanto, só quando consideramos o con­ junto da cultura é que podemos entender um de­ terminado traço cultural. No exemplo do frevo de Pernambuco, determinado passo só pode ser en­ tendido como traço cultural quando integrado ao todo orgânico daquela cultura (o frevo pernambu­ cano conta com mais de cem passos catalogados).

CompLexo cuLturaL

A combinação dos traços culturais em torno de uma atividade básica forma um complexo cultural.

Por exemplo, o carnaval no Brasil é um com­ plexo cultural que reúne um grupo de traços cul­ turais relacionados uns com os outros: carros alegó­ ricos, música, dança, instrumentos musicais, trios

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elétricos, desfiles, orquestras de frevo (no caso de Pernambuco), baterias de escolas de samba (Rio de Janeiro), fantasias, etc. Da mesma forma, o futebol é um complexo cultural que pode ser desmembrado em vários traços culturais: o campo, a bola, o juiz, os jogadores, a torcida, as regras do jogo, etc.

Área cuLturaL

A região em que predominam determinados complexos culturais forma uma área cultural. Esta consiste, portanto, em um espaço geográfico no qual se manifesta certa cultura. Salvador, na Bahia, por exemplo, constitui uma área cultural dotada de grande riqueza em termos de comple­ xos culturais, como o carnaval, certos gêneros de samba, o candomblé, a capoeira, etc.

Grupos humanos localizados em determina­ da área cultural apresentam grandes semelhanças quanto aos traços e complexos culturais. Quando diversas culturas, de diferentes origens, se encon­ tram em uma mesma área cultural, e entre elas se desenvolve uma relação de simbiose e respeito mútuo, temos uma situação multicultural (veja o boxe a seguir).

o que é?

À primeira vista, o conceito de multi­ culturalismo alarga o espaço da democracia e instaura a tolerância multirracial onde an­ tes havia intolerância, preconceito e discri­ minação. A autora do texto a seguir, porém, chama a atenção para certas contradições inerentes ao conceito.

Características do multiculturalismo: re­ conhecimento da filiação de cada pessoa a um grupo cultural; destaque à herança cultu­ ral de cada grupo, para que os demais possam apreciâ-la e respeitá-ta: afirmação da equiva­ lência dos vários grupos étnico-culturais de uma dada sociedade; postulação do direito dos grupos sociais manterem sua singulari­ dade cultural; enaltecimento da diversidade.

Nos Estados Unidos, o multiculturalismo tomou vulto nos últimos dez anos, em respos­ ta às atitudes racistas e xenófobas contra os imigrantes latinos pela população branca.

Na Europa, o problema da diversidade étnico-cultural é mais antigo e complexo. As migrações de países da África e da Ásia ocorridas nas décadas de 1970 e 1980, mo­ tivadas por conflitos étnicos, guerras, fenô­ menos sociais e físicos (fome, seca), criaram a categoria dos "refugiados': [ ... J

Tornou-se necessário então que a edu­ cação formal desse respostas aos problemas gerados pela convivência de culturas diver­ sas no mesmo espaço social. Nesse sentido, foram desenvolvidas várias iniciativas de to­ lerância cultural e enaltecimento da diversi­ dade. Mas o que significa tolerar alguém, ou tolerar outra cultura?

A educação antirracista, ideá rio que se declarou concomitanie ao multiculturalismo em escolas européias, foi a primeira a apon­ tar as contradições- do multiculturalismo. Ou seja, a exposição pura e simples da diversi-

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

dade cultural e a celebração da diferença não problematizam os conflitos e as contradições das relações étnico-raciais ossimétricos: não aprofundam a discussão do racismo, do se­ xismo e da xenofobia.

Consequentemente, não propõem alter­ nativas concretas de superação do preconcei­ to e da discriminação para que as diferenças não sejam transformadas em desigualdades, e, de fato, os diversos grupos étnico-raciais possam respeitar-se mutuamente e conviver em harmonia.

A educação aniirracisia, ao contrário do multiculturalismo, compreende o racismo como elemento estrutural das sociedades modernas, como um conjunto de políticas, concepções institucionais e práticas da vida cotidiana que reiteram a primazia de um grupo pretensamente superior sobre outros. O racismo é tratado como uma ideologia que precisa ser explicitada e combatida. Uma ideologia que não pode ser amortecida ou camuflada por falsas crenças de convivência pacifica e harmoniosa. Por trás destas, des­ cortina-se o esconderijo de práticas insidio­ sas de subordinação, protagonizadas por um grupo racial dominante sobre outro(s).

Adaptado de: SILVA, Maria Aparecida da. Multiculturalismo e educação. Educa-Ação, n. 7, 26.8.98.

Vamos pensar?

1. Qual a diferença entre multiculturalismo e educação antirracista?

2. Como você aplicaria as noções de multiculturalismo e de educação antirracista no Brasil atual?

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

Padrão cultural

Padrão cultural é um conjunto de normas que regem o comportamento dos indivíduos de deter­ minada cultura ou sociedade. Alguns antropólo­ gos o definem como uma estrutura no interior da sociedade que estabelece um tipo generalizado de conduta a ser seguido pelas pessoas dessa socie­ dade. Desse modo, quando os membros de uma so­ ciedade agem de uma mesma forma estão expres­ sando os padrões culturais do grupo. Por exemplo, o casamento monogâmico é um dos padrões cultu­ rais da sociedade brasileira.

O padrão cultural tem, portanto, uma relação di­ reta com o processo de socialização dos indivíduos.

Subcultura

No interior de uma cultura podem aparecer di­ ferenças significativas, caracterizando a existência de uma subcultura. Assim, por exemplo, há comuni­ dades no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, nas quais certos costumes e valores se diferenciam claramente dos praticados em outras regiões do país. Em algumas dessas comunidades, as pessoas se comunicam não só em português, mas também em idiomas europeus, como o alemão.

Isso ocorre em razão da presença nessas áreas de imigrantes de origem europeia - principalmen­ te italianos e alemães - que ali se instalaram no final do século XIX e que, por seu isolamento, mantiveram traços culturais dos países de origem: hábitos alimentares, festas típicas e, em alguns casos, até o idioma materno. Temos, assim, uma subcultura regional no quadro mais amplo da cul­ tura brasileira.

A ocorrência de subculturas não se limita a diferenças regionais. Também pode se verifi­ car na relação entre gerações ou entre grupos de diferentes origens étnicas. Exemplo do pri­ meiro caso são as atitudes adotadas por grupos jovens ao criar costumes e modos de vida radi­ calmente distintos da norma adulta. Para certos autores, as chamadas "tribos urbanas" - como os punks, os góticos, os skinheads, etc. - seriam manifestações de uma subcultura juvenil. De fato, os integrantes dessas "tribos" procuram se diferenciar das gerações mais velhas e de outros grupos juvenis, identificando-se pelos símbolos comuns, como o vestuário e o linguajar peculia­ res que caracterizam o espírito do grupo (veja o boxe a seguir).

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

TRIBOS URBANAS

texto a seguir aborda a violência, em São Paulo, de algumas "tribos urbanas", como os punks e os skinheads. Os dois grupos se inspiram em ideologias opostas - os punks são contrários ao "sistema"; os skinheads são racistas e até nazistas - e se diferenciam vi­ sualmente pela indumentária. Os punks usam cabelo colorido com corte moicano. Já os skin­ heads (cabeças raspadas) são carecas. Os skin­ heads são vistos com suspensórios (no caso dos neonazistas White Powers, de cor branca). Os punks vestem camisetas com nome de banda e, muitas vezes, exibem tatuagens, correntes e braceletes.

Uns pregam o antissemitismo, outros, o patrio­ tismo, e há os que nutrem ódio por nordestinos, negros, qays ... A maioria deles, no entanto, mal conhece as teo­ rias que defende.

Na cabeça de uns, espalhafatosos cabelos moica­ nos azuis, verdes ou vermelhos espetados com gel [veja a foto]. Na de outros, só o brilho da careca. [. .. ] "Gosto de beber, conhecer novos punks, brigar e agitar muito. Sou um cara subversivo e tento de alguma forma des­ truir esse sistema", diz o estudante Johni Raoni Falcão Galanciak, 21 anos.

Na madrugada do dia 21.10.07, ele estava entre os 25 punks acusados de espancar e desfigurar o rosto do estudante G. C, de 17 anos, na avenida Tiradentes. Nove deles, inclusive Galanciak, já fichado na polícia, foram presos em seguida. Os delinquentes fazem parte

Punk no mercado de Canden Town. Londres, IngLaterra, 1997.

da Vício Punk, uma das doze qanque: que atuam na cidade. Suspeita-se que o rapaz que apanhou até sofrer traumatismo craniano e fraturas no maxilar seja ligado a um grupo rival de skinheads.

Esse foi o segundo ataque de punks em uma se­ mana. No dia 14, delinquentes mataram, a facadas, o balconista Jaílton de Souza Pacheco no Terminal Parque Dom Pedro ll, no centro. Os punks queriam pagar 60 centavos por um pedaço de pizza que custava 1 real, o que motivou a discussão. Dois homens e uma mulher foram presos.

De grande repercussão, a morte do turista fran­ cês Grégor Erwan Landouar, esfaqueado nos Jardins em 10 de junho, teve uma explicação homofóbica: a vítima havia particiPado da Parada Gay. "Ele disse em juízo que ficou revoltado quando viu duas pessoas do mesmo sexo se beijando e resolveu matar a primeira pessoa que encontrasse pela frente", conta o promotor Maurício Ribeiro Lopes, referindo-se a Genésio Ma­ riuzzi Filho, o "Antrax", preso sob a acusação de ter matado o francês. No mesmo mês, membros da gangue Devastação Punk mataram o garçom John Clayton Moreira Batista, também nos Jardins, por ele ter se re­ cusado a emprestar um isqueiro.

Pelo que se vê, há fartura de casos policiais re­ /atando o envo/vimento de punks, skinheads e sabe-se lá o que mais em depredações, brigas e assassinatos. Só neste ano, a ação dessas gangues resultou na morte de seis pessoas. [. .. ]

Assim, a polícia tenta patrulhar e acompanhar a ação de grupos como Ameaça Punk, Vício Punk, Devastação Punk, Phuneral Punk, Carecas do ABC, Carecas do Subúrbio, Front 88, Impacto Hooligan, Brigada Hooligan, entre outros. Uns pre­ gam o antissemitismo, outros, o patriotismo, e há os que nutrem ódio por nordestinos, negros e homossexuais. [. .. ]

Em geral, os membros dessas facções são jo­ vens de classe média baixa. Muitos trabalham como office- boys, seguranças, vendedores, auxiliares de escritório, ou se apresentam como estudantes.

Adaptado de: VEICA, Edison. BRISOLLA, Fábio, CENZINI, Leonardo, e SALVO, Maria Paola de.

Eles têm ódio de quê? Veja, 26.10.07.

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

---4 I Cultura e progresso

Cada geração passa por processos de aprendi­ zagem, nos quais assimila a cultura de seu tempo e se torna apta a enriquecer o patrimônio cul­ tural das gerações futuras. É na capacidade que os grupos têm de perpetuar e acrescentar novos valores à cultura que reside a possibilidade de progresso.

Todo progresso é resultante da síntese de valores novos com componentes culturais já adquiridos. Desse modo, apesar das mudanças, alguns valores culturais tendem a permanecer, assegurando a continuidade da cultura de uma sociedade entre uma e outra geração. Por mais viva e inventiva que seja uma nova cultura, as gerações quase nunca rompem inteiramente com seu passado.

Em geral, o enriquecimento do patrimônio cultural de uma sociedade se faz por meio de dois processos: a invenção e a difusão. Depois de es­ tudá-los, vamos ver como o desequilíbrio entre os diferentes aspectos da cultura geram o proces­ so conhecido como retardamento cultural.

Mudanças no patrimônio cuLturaL

Em meados do século XIX, o uso do motor a vapor para mover um veículo correndo sobre trilhos criou um meio de transporte que teria im­ portância decisiva no mundo moderno: o trem. Impacto maior ainda foi provocado no fim daque­ le século pela invenção do automóvel, que era pouco mais que uma carruagem impulsionada por um motor a explosão. Essas duas invenções con­ tribuíram para notáveis mudanças na sociedade do século XX.

Como veremos no capítulo 12, as invenções são geradas pela combinação entre o patrimônio cultural da sociedade e determinadas necessida­ des sociais, além, é claro, da criatividade dos in­ ventores. Entretanto, nenhum inventor parte da estaca zero. Em seu trabalho de criação, ele se apoia no conhecimento acumulado de sua cultura, combinando elementos preexistentes para produ­ zir algo novo.

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Difusão cultural

Alguns traços culturais, como uma nova moda ou um equipamento recentemente inventado, di­ fundem-se não só na sociedade em que tiveram origem, mas também entre outras culturas, geral­ mente por intermédio dos meios de comunicação (jornais, televisão, cinema, rádio, internet, etc.).

Quando isso ocorre, dizemos que está ha­ vendo um processo de difusão cultural. Pode-se afirmar que o enriquecimento cultural se verifica mais frequentemente por difusão do que por in­ venção (voltaremos a tratar das invenções e da difusão cultural no capítulo 12).

Geralmente, o patrimônio de uma cultura cresce de geração em geração. As culturas se de­ senvolvem incorporando traços culturais em maior número do que aqueles que caem em desuso. As­ sim, considerada em uma perspectiva histórica, a cultura pode ser definida como o somatório de todas as realizações das gerações passadas que se sucederam no tempo, mais as realizações da gera­ ção presente.

Retardamento cuLturaL

As mudanças dos diversos componentes da cultura não ocorrem no mesmo ritmo: alguns se transformam mais rapidamente do que outros. As invenções, por exemplo, acarretam mudanças mais aceleradas na cultura material do que na cultura não-material: os instrumentos, as máquinas e as técnicas mudam mais rapidamente do que a reli­ gião, os padrões familiares, a educação, etc.

Essa diferença de ritmo provoca descompas­ sos entre os diversos componentes da cultura. A introdução da pílula anticoncepcional na década de 1960, por exemplo, encontrou grande resis­ tência por parte de setores religiosos, enquanto milhões de mulheres em todo o mundo já se be­ neficiavam com a invenção.

Toda vez que há um desequilíbrio no ritmo de desenvolvimento dos diversos aspectos da cul­ tura, pode-se falar de retardamento ou demora cultural.

5 I o fenômeno da aculturação

Durante a colonização do Brasil, houve inten­ so contato entre a cultura do conquistador por­ tuguês e as culturas dos povos indígenas e dos africanos escravizados.

Em decorrência desse contato, ocorreram modi­ ficações, tanto na cultura dos europeus recém-che­ gados - que assimilaram muitos traços culturais dos outros povos - quanto na dos indígenas e africanos, que foram subjugados e perderam muitas de suas características culturais. Desse processo de contato e mudança cultural resultou a cultura brasileira.

Quando seres humanos de grupos diferentes entram em contato direto e contínuo, geralmen­ te ocorrem mudanças culturais, pois se verifica a transmissão de traços culturais de uma sociedade para outra. Alguns traços são rejeitados; outros são aceitos e incorporados, quase sempre com mu­ danças significativas, à cultura resultante.

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

Esse processo de mudança cultural provoca­ da pelo contato entre dois ou mais grupos cul­ turalmente distintos, e no qual um desses gru­ pos assimila aspectos da cultura de outro grupo, é tradicionalmente conhecido como aculturação. Entretanto, nos anos 1970, alguns cientistas so­ ciais, como o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997), questionaram essa conceituação.

Na verdade, diziam eles, a adoção de traços culturais de um grupo por outro geralmente envol­ ve desigualdades ou assimetrias, como ocorre, por exemplo, com a relação entre os povos indígenas e a sociedade capitalista no Brasil. Não se trata de uma relação entre iguais, mas de uma relação de domina­ ção. Essa dominação pode ser de tal forma intensa que não deixa ao grupo subordinado nenhuma al­ ternativa senão aculturar-se (LINDOSO, Felipe. In:

Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., p. 19).

193

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

QUILOMBOS E QUILOMBOLAS

m novembro de 2006, realizou-se na co­ munidade quilombola São José da Serra, no Rio de Janeiro, o 11º Encontro de jonguei­ ros. Cerca de 700 pessoas estiveram presen­ tes, representando catorze grupos de jongo.

O jongo é um gênero musical que reúne música e dança de tradição africana. Nasceu no século XIX entre os negros bantos que traba­ lhavam como escravos nas fazendas de café do Vale do Paraíba. Os que fugiam e formavam qui­ lombos procuravam preservar suas tradições de origem africana ou afro-brasileira, entre as quais

MarginaLidade cuLturaL

Na cidade paulista de Tupã - na reserva dos índios Kaingang - vivem duzentos indígenas cul­ turalmente descaracterizados. Eles desconhecem seu passado, não conseguem se expressar em sua própria língua, não se lembram de seus cantos, de suas danças e de suas antigas práticas de caçado-

o jongo. Ainda hoje, esse ritmo é praticado em diversas comunidades remanescentes dos anti­ gos quilombos, as comunidades quilombolas.

Existem atualmente cerca de 1098 des­ sas comunidades no Brasil. Nelas, os descen­ dentes dos africanos escravizados preservam traços de sua cultura original. Esses traços cul­ turais reafirmam o sentimento de identidade étnica e cultural dessas pessoas, contribuindo para manter a coesão do grupo a que perten­ cem. Criam, assim, formas de subcultura no contexto da cultura brasileira.

res e pescadores. Também não estão incorporados à cultura da sociedade que os cerca. São mansos e tristes.

Quando duas culturas entram em contato e uma delas se impõe à outra pela força, geralmente ocorrem - além da aculturação - conflitos emo­ cionais nos indivíduos que pertencem à cultura

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dominada. Aqueles que não conseguem se integrar totalmente a nenhuma das culturas que os rodeia ficam à margem da sociedade. A esse fenômeno dá-se o nome de marginalidade cultural.

A marginalidade cultural também pode ocor­ rer quando a cultura de um grupo é degradada e

6 I Cultura e contracultura

Nas sociedades contemporâneas encontramos pessoas que contestam certos valores culturais vi­ gentes, opondo-se radicalmente a eles num movi­ mento chamado de contracultura.

Na década de 1950, os Estados Unidos conhe­ ceram a beat generatian (geração beat), que con­ testava o consumismo do pós-guerra norte-ameri­ cano, o American way af life (estilo norte-americano de vida) que os filmes de HoUywood apregoavam, o anticomunismo generalizado e a ausência de um pensamento crítico.

Na década de 1960, também nos Estados Uni­ dos, surgiu o movimento hippie. Como a beat generatian, foi um fenômeno de contracultura, por­ que contestava os valores fundamentais da socie­ dade industrial: a competição desenfreada, a acu­ mulação de riquezas, a luta pela ascensão social a

CAPÍTU LO 10 Cultura: nossa herança social

destruída por um grupo dominante. A situação de povos indígenas no Brasil, como os Kaingang e outros, é resultante dessa relação desigual, assi­ métrica, entre a cultura do dominador (que, nesse caso, incluía armas de fogo e bebidas alcoólicas) e a cultura do dominado.

qualquer preço, etc. Além disso, era radicalmente contrário à Guerra do Vietnã (1959-1975), à estru­ tura familiar convencional, à sociedade de consu­ mo e aos hábitos alimentares baseados em comida industrializada e fast food (refeição rápida) - traços culturais típicos da sociedade norte-americana.

Muitos jovens dessa época deixaram casa e universidade para viver em comunidades no cam­ po, onde plantavam e produziam a própria comida e educavam seus filhos com base em valores mais humanizados. Alguns abraçaram religiões orien­ tais, como o zen-budismo e o hinduísmo. Seu prin­ cipal lema era: "faça amor, não faça a guerra".

Em fins dos anos 1970, o movimento hippie, que havia ultrapassado as fronteiras dos Estados Unidos, foi perdendo o vigor, até desaparecer por completo, às vésperas da década de 1980.

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

., I Controle social

Segundo o sociólogo norte-americano G. Smith Russel, "nove décimos de tudo o que você faz, diz, pensa, sente, desde que se levanta de manhã cedo até que vai para a cama dormir, você diz, faz, pen­ sa, sente não como expressão própria, indepen­ dente, mas em conformidade inconsciente e sem crítica com regras, regulamentos, hábitos grupais, padrões, códigos, estilos e sensações que existiam muito antes que você nascesse".

Já vimos que a sociabilidade - tendência na­ tural da espécie humana para viver em sociedade - é desenvolvida por meio do processo de sociali­ zação, pelo qual o indivíduo se integra ao grupo em que nasceu, assimilando sua cultura (veja o capítulo 3).

A socialização, como vimos, é o ato de trans­ mitir ao indivíduo - ou seja, de levá-lo a assimilar e introjetar - os padrões culturais da sociedade. Trata-se de um processo social abrangente, pois afeta direta ou indiretamente todos os indivíduos que vivem em uma determinada comunidade ou sociedade.

O maior instrumento de socialização é o con­ trole social. Segundo Alain Birou, "controle social é o conjunto dos meios e processos pelos quais um grupo ou uma unidade social leva os seus mem­ bros a adotarem comportamentos, normas, regras de conduta, até mesmo costumes, conformes aos que o grupo considera socialmente bom".

O olhar de reprovação dos pais quando a criança toma sopa fazendo barulho, a punição para quem cometeu um delito, a recompensa para aquele que cumpre todas as regras, seja na escola, na vida profissional ou em qualquer outra esfera da vida social, a repressão policial a uma manifes­ tação não autorizada, o apelo a valores morais, são exemplos de controle social.

Para a antropóloga norte-americana Ruth Benedict (1887-1948), "a história da evolução de um indivíduo é, antes de mais nada, o relato de sua acomodação aos padrões e tradições vigentes em sua comunidade. Desde o momento em que ele nasce, os costumes do grupo a que pertence mol-

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dam suas experiências e seu comportamento. As primeiras palavras de uma criança são necessaria­ mente pronunciadas em uma língua determinada. Por isso mesmo, essa criança já é um produto da cultura em que vive. Ao tornar-se adulta, já está suficientemente treinada para tomar parte nas ati­ vidades da comunidade, com seus hábitos e suas crenças".

A primeira "agência" de controle social é a família. Desde que nasce, a criança é orientada, educada e moldada pelo grupo familiar. Depois da família, temos a Igreja, a escola e o Estado: são todos "agências" formais ou institucionalizadas de controle social.

Tipos de controle social

o controle social pode ser difuso (informal) ou institucionalizado (formal). Nas comunidades isoladas e pequenas, como os povoados do interior ou as aldeias indígenas, o controle social é difuso, vago, muitas vezes de caráter religioso. Nas socie­ dades complexas, o controle social é instituciona­ lizado ou formal, isto é, há órgãos e instituições sociais encarregados de sua aplicação, como a po­ lícia, a Justiça, etc.

Também as sanções podem ser difusas ou or­ ganizadas, dependendo do tipo de controle social. Mas, quando algumas sanções estabelecidas pela sociedade deixam de funcionar, surge a necessida­ de de elaborar novas leis e criar novas instituições para exercer com eficácia o controle social dese­ jado. Nas sociedades modernas, mais complexas, aumenta a presença da instituição jurídica, da instituição policial e do Estado, em substituição aos controles espontâneos, antes exercidos pela família e pelos membros da comunidade.

Funções do controle social

Assim, nas sociedades modernas os sistemas de controle social são quase totalmente insti­ tucionalizados, isto é, dependem mais de leis e regras estabelecidas do que de normas impostas pela tradição.

Ao mesmo tempo, à medida que as socieda­ des vão se tornando mais complexas, os sistemas de controle passam a assumir diferentes funções. Estas não se impõem meramente para punir ações ilícitas ou fazer valer determinadas normas e pa­ drões, mas também têm a finalidade de manter o equilíbrio da sociedade e de dar proteção so­ cial efetiva aos seus membros socialmente desam­ parados.

De modo geral, podemos falar de três funções

de controle social:

• a de ordem social;

• a de proteção social;

• a de eficiência social.

As funções de controle de ordem social ligam­ se à aplicação de normas e de leis. Por exemplo, fa­ zer cumprir a lei, prender e punir criminosos, man­ ter a ordem pública. Na sociedade moderna, essas funções são desempenhadas pelo Estado, com seus

CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

órgãos específicos de caráter repressivo ou jurídi­ co, como a polícia e os tribunais de justiça.

As funções de proteção social relacionam-se ao cumprimento de normas que beneficiam setores menos protegidos da sociedade. Entre elas estão as de previdência social e a proteção dos direitos hu­ manos. Dessas funções faz parte também a proteção das crianças e adolescentes, da mulher e dos idosos, assim como a garantia de que sejam asseguradas a igualdade de direitos na educação, a assistência mé­ dica universal e a defesa do meio ambiente.

As funções de eficiência social estão relacio­ nadas com regras e procedimentos que levem os indivíduos a contribuir de forma produtiva para o bem-estar e o desenvolvimento da sociedade. A proteção ao trabalho, as ações cooperativas, a formação profissional, os cuidados com a saúde pública e com a educação em geral estão entre essas funções.

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

-

• SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1983. Coleção Primeiros Passos.

• BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982. Coleção Primeiros Passos.

• CARVALHO, Edgard de Assis. Enigmas da cultura. São Paulo: Cortez, 2003.

• GUARNACCIA, Matteo. Provas: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001.

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• Hans Staden, de Luiz Alberto Pereira, 1999. História verídica do viajante Hans Staden, que em 1550 naufragou no litoral da atual Santa Catarina e viveu por algum tempo entre os Tupinambá.

• Kuarup, Instituto Nacional do Cinema Educativo, 1962. Documentário sobre ritual indígena que narra a origem mítica dos povos do Xingu.

• Imbé Gikegü - cheiro de pequi, de Nguné Elü, 2006. Documentário sobre a vida em uma aldeia dos índios Kuikuro, na região amazônica.

• Havaí, de George Roy Hill, 1966. Missionário ocidental tenta catequizar nativos de ilha do Pacífico mas tem de enfrentar as diferenças entre as duas culturas.

• Sem destino, de Dennis Hopper, 1969. Em 1968, dois jovens viajam de moto pelo interior dos EUA e sofrem a reação de habitantes conservadores da região.

• Encantadora de baleias, de Niki Caro, 2003. Menina luta para assumir a liderança dos maoris, na Nova Zelândia, e enfrenta as tradiçôes culturais de seu povo.

• Hair, de Milos Forman, 1969. Jovem do interior dos Estados Unidos vai para Nova York para se alistar no Exército mas se envolve com grupo de hippies.

• Geração roubada, de Phillip Noyce, 2002. Em 1931, três meninas fogem de um campo do governo britânico na Austrália, criado para treinar mulheres para os serviços domésticos, e sofrem perseguição da polícia.

• Um homem chamado cavalo, de Elliot Silverstein, 1970. Capturado por indígenas norte-americanos, homem branco abraça a cultura da tribo, mas tem de passar por duras provas para se tornar guerreiro ..

• Crepúsculo de uma raça, de John Ford, 1964. A luta pela sobrevivência de um povo indígena norte-americano diante do avanço da sociedade capitalista.

• Nome de família, de Mira Nair, 2006. Adolescente de origem indiana vive conflitos de adaptação em Nova York, nos EUA, onde passa a viver.

• Brava gente brasileira, de Lúcia Murat, 2000. Em 1776, algumas índias são estupradas por soldados portugueses no atual estado de Mato Grosso do Sul.

Para complementar o estudo do capítulo, assista a um ou mais dos filmes indicados e reflita sobre as seguintes questões:

• Que relações podem ser estabelecidas entre o enredo do filme e os conceitos estudados neste capítulo?

• Há referências, no filme, à noção de cultura? Quais são elas e onde aparecem no filme?

• Há referências a manifestações de contracultura? Sob que formas elas se manifestam no filme?

• Há referências à questão do controle social? Quais são elas e onde aparecem no filme?

• Há referências à questão da aculturação? De que forma o filme aborda essa questão?

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

Questões propostas

• Explique o que é cultura.

2. Qual a relação entre educação e cultura?

3. Cite quatro exemplos de elementos da cultura material que o rodeiam neste momento.

4. Cite quatro exemplos de elementos da cultura não material.

5. Quais são os dois processos básicos pelos quais se dá o crescimento do patrimônio cultural

de um grupo?

6. Cite um exemplo de difusão cultural que você tenha presenciado.

7. O que você entende por subcultura e contracultura?

8. Explique com suas palavras o objetivo do controle social.

A cultura do capitalismo

A cultura do capitalismo seculariza tudo o que encontra pela frente e pode transformar muita coisa em mercadoria, inclusive signos, símbolos, emblemas, fetiches [o verbo secularizar é usado aqui em sentido figurado, no sentido de que o capitalismo reduz tudo às leis de mercado]. Tudo se seculariza, instrumentaliza, desencanta. Essa é uma exigência da racionalização formal, pragmática, definida em termos de fins e meios objetivos, imediatos.

Uma racionalização cada vez mais vazia de valores gerais e particulares que não po­ dem traduzir-se nos termos do status quo [ou seja, valores que não podem ser reduzidos às leis de mercado]. Ao refletir sobre a pro­ gressiva universalização dessa racionalidade, Weber "demonstra a nítida resistência da mo­ derna racional idade formal da ordem social e econômica diante de valores de igualdade, fraternidade e caridade, e mostra como a ra­ cionalidade formal impulsiona os interesses de grupos economicamente privilegiados".

Seria difícil compreender os ciclos e as orientações da ocidentalização do mundo sem levar em conta a sua cultura, cultura essa na qual o processo de racionalização universal joga um papel essencial. Aos poucos, em todos

os lugares, regiões, países, continentes, a des­ peito das diferenças socioculturais que Ihes são próprias, os indivíduos e as coletividades são movidos pela mercadoria, mercado, dinheiro, capital, produtividade, lucratividade.

Sob vários aspectos, o novo ciclo de ocidentalização recoloca o problema da mun­ dialização da indústria cultural, com a expan­ são dos meios de comunicação de massa e a produção de uma cultura de tipo internacio­ nal-popular [sobre a indústria cultural, veja o Dicionário btÍsico de Sociologia no fim do livro]. Verifica-se a mobilização de todos os recur­ sos disponíveis dos meios de comunicação, da mídia em geral, impressa e eletrônica, de modo a "reeducar" povos, nações e continen­ tes. [ ... ]

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CAPÍTULO 10 Cultura: nossa herança social

Um sintoma muito característico da for­ ma pela qual ocorre o novo ciclo de ocidenta­ lização do mundo está no fato de que a língua inglesa se tornou uma língua universal. É usada não somente entre europeus e norte-america­ nos, por um lado, mas também por asiáticos, africanos e latino-americanos. É usada igual­ mente entre diferentes povos africanos, asiá­ ticos e latino-americanos, quando necessitam comunicar-se entre si. E há países, como a Ín­ dia, por exemplo, em que o inglês é a língua nacional de fato. [ ... ]

É óbvio que a ocidentalização não flui tranquilamente. Primeiro, porque as nações dominantes e as organizações multinacionais atuam de modo diverso, divergente ou mes­ mo contraditório, umas com relação às ou­ tras. No processo de ocídentalização, no que se refere à esfera cultural, em sentido amplo, há linhas, padrões, modas ou ondas parisien­ ses, londrinas, norte-americanas, alemãs, ita­ lianas e outras.

Segundo, porque os novos grupos, clas­ ses, nacionalidades ou sociedades não oci­ dentais, mais ou menos inseridos no processo global de ocidentalização, também possuem sua cultura, continuam a produzir cultural­ mente, devolvem elementos culturais ociden­ tais com ingredientes nativos, quando não

lançam na sociedade mundial suas produções originais. [ ... ]

Na cultura da sociedade global, as reli­ giões e seitas, as línguas e dialetos, os nacio­ nalismos e as nacionalidades, as ideologias e as utopias, ressurgem como se fossem erup­ ções vulcânicas. Mas ressurgem diferentes, com outros significados, em outros horizon­ tes. Primeiro, porque se debilitam ou mesmo se quebram estruturas nacionais, o que abre novas possibilidades a particularismos, regio­ nalismos, singularidades.

Segundo, porque as novas estruturas mundiais não foram ainda suficientemente codificadas, sedimentadas. Terceiro e último, rompem-se conceitos universais que expres­ savam e articulavam significativamente mo­ dos de ser, pensar, imaginar.

Em outras palavras, as ressurgências não são apenas de tradições, de configurações pas­ sadas, mas também a revelação de um novo todo, no qual as formações singulares adquirem outros significados. Com o declínio da socieda­ de nacional e a emergência da sociedade glo­ bal, modificam-se as articulações e mediações nas quais se inserem as partes e o todo, as sin­ gularidades, particularidades e universalidades.

IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1992. p. 71-6.

1. O que o autor quer dizer com "ocidentalização do mundo"?

2. Por que, segundo Octavio Ianni, a ocidentalização não flui tranquilamente? Quais são as razões dessa dificuldade?

3. Com base na análise do autor, é possível dizer que as manifestações culturais regionais desapareceram diante da globalização?

1-- ...• = Pense e responda

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