O que é o método histórico comparativo filologia

O intuito dessa subseção é apresentar sinopticamente algumas aplicações do método histórico-comparativo à lexicogênese, sobretudo românica. Para tanto, procedemos a uma varredura não-exaustiva, mas sim, representativa, pelos fundos bibliográficos disponíveis em formato digital na rede. Ao lado da exposição dos estudos encontrados, lançamo-nos a uma avaliação geral sobre o locus da morfologia léxica nos estudos comparativistas históricos.

É consabido que uma das principais críticas ao método histórico-comparativo (mormente aos neogramáticos) foi a incontestável primazia da fonética/fonologia em suas reflexões (MAURER JR., 1967; VIDOS, 1996 [1956]; TRASK, 1996), sendo aplicações muito mais voltadas a esse âmbito do que a qualquer outro da língua (RANKIN, 2005). A causa dessa predileção é associada por Vidos (1996 [1956]) à grande regularidade desse nível linguístico e, segundo Kilbury & Bontcheva (2004), foi através dela (mais precisamente, das correspondências sonoras) que a linguística comparativa alcançou uma base metodológica firme para as reconstruções propostas.

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A avaliação do status da filologia românica comparativa em escala global na contemporaneidade não é simples e tampouco goza de consenso entre os linguistas, embora se observe, na maior parte dos casos, pareceres negativos. Vejamos uma amostra representativa da divergência de opiniões quanto à vitalidade da disciplina, extraída de um artigo de Company Company (2005, p. 144): “Por um lado, os colegas que mostram um forte ou moderado pessimismo a respeito da vitalidade da linguística histórica românica como área disciplinar de estudo (Craddock, Dworkin, Loporcaro, Lüdtke, Pellen, Rini), e, por outro, aqueles colegas, essencialmente otimistas, que consideram que a linguística românica goza de cabal (Kabatek, Koch, Penny) e inclusive de excelente saúde (Echenique, Wanner, Wright). Outros colegas (Smith, Wireback) inclinam-se em direção a uma opinião intermediária: a linguística histórica românica é uma disciplina moribunda, mas o estudo diacrônico das línguas românicas particulares mantém plena vitalidade.” [Trad. nossa]

Outros autores, não deixando de indicar a preferência concedida ao nível fonológico pelo método, estendem-na um pouco mais, com a inclusão do nível lexical e, sobretudo, do morfológico (BARÐDAL, 2013; GARR, 2005; RANKIN, 2005). Cabe buscar refletir sobre dois aspectos a partir desse cenário: a situação do componente sintático e, principalmente, o tratamento comparativo da lexicogênese (em outros termos, se a comparação morfológica também contemplava a formação de palavras).

Rankin (2005) parece justificar a carência de aplicações da técnica histórico- comparativa ao componente sintático ou impasses nessa prática pela dificuldade em se determinar as unidades de colação para esse nível (na fonológica seriam os fonemas; na morfológica, os morfemas; na léxica, os lexemas; mas qual seria para a sintaxe? Como definir sentenças ou sintagmas cognatos? Algo nada simples de se resolver...) e, mais ainda, à dificuldade de se medir com algum grau satisfatório de precisão (tal como é feito para os outros níveis linguísticos) as correspondências semânticas ou formais entre as estruturas sintáticas acareadas. Iordan (1973 [1962]) e Bassetto (2005) fazem eco a esse ponto de vista, afirmando que para a sintaxe é mais difícil comprovar a regularidade das correspondências, que é o fundamento da técnica comparativo-histórica, e daí não se ter revelado profícua nesse ponto, apesar de brotarem algumas tentativas de estudo, como as pautadas na visão pancrônica de Walther von Waltburg (BASSETO, 2005).

Que os estudos sintáticos de natureza histórico-comparativa tenham sido mais escassos do que os voltados a outros níveis linguísticos é fato comprovável. O que não se pode dizer categoricamente aqui é que as causas apontadas para tal sejam verossímeis. Para Barðdal (2013), parece que não, pois assinala que as objeções evocadas para a marginalização da sintaxe na práxis comparativa — a ausência de cognatos sintáticos, a falta de emparelhamentos arbitrários entre forma e função sintáticas e a falta de regularidade na mudança desse tipo — são frágeis quando observadas aprofundadamente. Atualmente, já se verifica a existência de diversos estudos comparativos no campo sintático, alguns deles disponíveis em formato digital. Company Company (2005), destoando do que comumente se costuma afirmar, desenha um panorama bem positivo para a sintaxe românica histórica (e, em certa medida, também para a comparada) nos últimos anos, considerando que “[…] ha pasado de ser el patito feo de la lingüística histórica, romance y general, con una escasez notoria de

estudios y estudiosos hace cincuenta años [...] a ser el cisne de las subdisciplinas diacrónicas hoy en día.” (COMPANY COMPANY, 2005, p. 145)130

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No que concerne à situação da morfologia léxica no quadro comparativista, é de se pensar que também não seja das mais favoráveis, quiçá ainda mais grave (no passado e no presente) que a da sintaxe. Como já dito, houve uma incidência do método no componente morfológico, mas, pelo que parece, voltado quase que exclusivamente à morfologia de natureza gramatical, i.e, das flexões (RIDRUEJO, 1989), e não à morfologia lexical (afixos morfolexicais). Seria temerário afirmar que não houve estudos dessa lavra referentes à lexicogênese, mas, ao que tudo indica, não foram muitos.

Lindner (2015) registra que no século XIX ainda era muito incipiente a análise da derivação e da composição de natureza comparativa e até mesmo desde uma perspectiva geral. A morfologia podia ainda ser tratada como parte da etimologia, embora já emergisse em algumas obras uma separação, com um tratamento específico da formação genolexical de cunho morfológico. Ainda conforme essa autora, foi Grimm (1826) que inaugurou a aplicação do método histórico-comparativo à formação de palavras, incidindo sobre o germânico, cotejando-o com outras línguas, havendo também aproximações ao tema por parte de Bopp (1833) e Pott (1836).

Iordan (1973 [1962]) indica que em Diez, na sua Grammatik der romanischen Sprachen (1838), havia comparações morfológicas derivativas das línguas românicas, o que é reforçado por Lindner (2015), que considera tais contribuições como um importante tratado para a formação de palavras no círculo comparativista histórico. Cyranka (2014, p. 168) afirma que August Pott, levando adiante os trabalhos de Bopp e Grimm, achegou-se à derivação vocabular em suas aplicações do método histórico-comparativo. No entanto, para essa primeira etapa da corrente linguística em discussão, segundo Lindner (2015), o nome de destaque seria o de Karl Brugmann (em seu Grundriß der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen, de 1880 e 1906), com um volume monumental para a descrição e comparação da formação de palavras em línguas indo-europeias, discorrendo sobre os tipos de processos de formação, as suas motivações e sobre a composição morfológica. Para os séculos XX e XXI, Lindner (2015) elenca uma variedade de estudos sobre o tema, mas a maioria deles numa perspectiva monolíngue (para o latim, o antigo índico, o grego etc.),

130“[…] deixou de ser o patinho feio da linguística histórica, românica e geral, com uma escassez notória de estudos e estudiosos há cinquenta anos [...] para ser o cisne das subdisciplinas diacrônicas hoje em dia.” [Trad. nossa]

sendo poucos os efetivamente panlinguísticos, como os de Delbrück (1900), os de Brugmann (1904; 1906) e os mais recentes de todos, presentes nos dois tomos do quarto volume da Indogermanische Grammatik, respectivamente organizados por Thomas Linder (2015) e Velizar Sadovski (2016).

Especificamente para o âmbito da romanística, Holtus & Sánchez Miret (2008) afirmam que a perspectiva comparativa na formação de palavras foi abordada em uma das edições do Romanistentag des Deutschen Romanistenverbandes, mencionando Gauger (1988), cuja publicação não foi possível encontrar. O quadro para esse campo não parece ser animador, o que é confirmado por Sánchez Miret (2001) e por inúmeros outros teóricos da área — Stolova (2005), por exemplo —, quando assevera que tais estudos não costumam ser nem históricos nem comparativos, “desrespeitando-se”, de certa forma, a própria natureza caracterizante da disciplina, sendo comumente dominados pelas teorias gerativistas. Exceções nesse sentido são os trabalhos de Meyer-Lübke (1890-1906), Cooper (1895), Malkiel (1945), Bader (1962), Lloyd (1964), Bagola (1988) e Lüdtke (1993), dentre alguns outros mais (SÁNCHEZ MIRET, 2001).

Dentro dessas honrosas exceções, mencionamos também três estudos de aplicação histórico-comparativa à formação de palavras que somente no período de finalização desta tese chegaram às nossas mãos, mas que, ainda assim, foram devidamente explorados, aparecendo alguns de seus contributos nesta e em outras seções da tese, quer como citações, quer como inspirações. Trata-se do capítulo A formação de palavras na România Ocidental, parte do livro A unidade da România Ocidental, de Maurer Jr. (1951a)131, que oferece uma sistemática descrição panromânica de usos e sentidos das principais unidades prefixais e sufixais, bem como dos padrões compositivos mais recorrentes; o artigo Gemeinromanische Tendenzen IV: Wortbildungslehre, da pena de Lüdtke (1996) — incrustado no primeiro tomo do segundo volume da monumental obra Lexikon der Romanistischen Linguistik, organizado por Holtus, Metzeltin & Schmitt (1996) —, e que traz, dentre outros pontos, algumas breves considerações sobre o comportamento de formativos sufixais e prefixais no latim e no âmbito românico; e, principalmente, o calhamaço intitulado La formación de palabras en las lenguas románicas: su semántica en diacronía y sincronía, do mesmo Lüdtke (2011), que, além de inúmeros outros aportes indiscutivelmente interessantes, proporciona-nos preciosas achegas à formação de palavras em sua evolução, desde o latim até o romance.

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Em comunicação particular, disse-nos a Profa. Dra. Célia Marques Telles — docente titular jubilada da cadeira de Filologia Românica do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia — que a dita obra é fruto da tese de doutoramento desse autor.

A menção aos três estudos supracitados, além de nos permitir esclarecer que também tomamos como lastro bibliográfico aplicações mais recentes da perspectiva histórico- comparativa e da romanística, não nos fincando exclusivamente nos redutos das contribuições historicamente recuadas dessas áreas — encapsuladas em práticas investigativas anteriores ao marco comumente adotado para a emergência científica da linguística, o estruturalismo saussuriano —, favorece a percepção constatativa de que, embora raros, há ainda na contemporaneidade projetos, estudos e publicações concernentes aos âmbitos teórico- metodológicos em discussão.

No espaço brasileiro, os estudos de lexicogênese românica comparada nem foram nem são numerosos, devido ao fato do tratamento tangencial da morfologia no panorama investigativo em geral, à marginalização da perspectiva de análise histórico-diacrônica para a língua (só há poucas décadas experimentando alguma reabilitação, com grande fulgor e vitalidade, mas de forma marcadamente localizada, concentrando-se em meia dúzia de universidades) e, dentro desse último fenômeno, o engessamento ou fenecimento das cadeiras, grupos de pesquisa, revistas especializadas e demais publicações específicas concernentes à filologia românica, especialidade cujo ensino só tardiamente foi inserido no país (NASCENTES, 1961), quando comparado à realidade de outros países, notadamente os europeus. Os raríssimos estudos sobre formação de palavras encontrados, versam, em geral, sobre a sufixação e são de autoria de investigadores da Universidade de São Paulo (USP), fato que se explica, possivelmente, pela sua cátedra de estudos românicos, pela tradição de linguística-histórica ali presente132 e, especialmente, pela constituição do Grupo de Morfologia Histórica do Português (GMHP)133, fundado pelo Prof. Mário Eduardo Viaro, no

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Com figuras marcantes, docentes de excelência atuantes na USP, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ou na então Universidade do Estado da Guanabara, como Antenor Nascentes, Maurer Jr., Mansur Guérios, Sílvio Elia, Mattoso Câmara Jr., Celso Cunha etc. (NASCENTES, 1961).

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O foco desse núcleo não é em si o estudo da formação de palavras sob um viés histórico-comparativo nem panromânico, mas histórico-diacrônico (monolíngue, em torno do português). Não obstante, uma de suas pautas secundárias é a análise comparativa da produtividade morfológica entre o português e as demais línguas neolatinas, sobretudo as ibéricas. Daí a marca comparativa presente em algumas das investigações pertencentes a esse grupo. Pelo que pudemos notar, sobretudo a partir de buscas na plataforma digital do Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (CNPq), não há no país nenhum grupo oficial de estudos românicos históricos de teor comparativista debruçado especificamente sobre a morfologia. Há, felizmente, para o léxico, o grupo Linguística

Românica, capitaneado pelo Prof. César Nardelli Cambraia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

que se volta a algumas prospecções a esse nível linguístico (nomeadamente sobre o quadro pronominal, com estudos sobre os demonstrativos e pessoais) sob uma pauta comparativa e histórica no domínio da România; e, para a sintaxe comparada peninsular, o grupo Variação e mudança no quadro de possessivos na história de

línguas ibero-românicas, coordenado pelo Prof. Leonardo Lennertz Marcotulio e sediado na UFRJ. Pelo número

de entidades de pesquisa oficiais para a área da romanística histórico-comparativa, concluimos que a sua representatividade no país é ínfima e desanimadora. A emergência, em 2014, da linha de pesquisa Estudos

comparados do espanhol com línguas românicas, vinculada ao Grupo de Estudos Lingüísticos Hispânicos,

ano de 2005. São principalmente os estudos de Freitas (2014; 2015a; 2015b), com uma colação dos derivados em -mento nas línguas românicas; os de Areán-García (2007; 2011), ao comparar historicamente os sufixos -ista e -ístico(a) no português e no galego; e os de Condé (2009; 2013), com o cotejo de derivados em -aría/-ería também nesses dois sistemas linguísticos.

Do discutido nesta subseção, podemos concluir que a formação de palavras foi contemplada (e segue sendo) pela técnica histórico-comparativa, mas provavelmente em grau inferior a outros temas, como a fonologia e a morfologia flexional134. Além disso, para os estudos românicos, o quadro parece ser mais desanimador, ao que se soma a dificuldade (pelo menos para um pesquisador brasileiro) em rastrear e, sobretudo, ter acesso eficiente, às publicações de morfologia derivacional histórico-comparativa, por várias razões, sendo algumas delas os preços exorbitantes das obras disponíveis à venda na internet e o fato de muitas estarem redigidas em alemão, língua de domínio não muito corrente (e, particularmente, pouco ou nada acessível para uma leitura profícua pelo autor desta tese135).

possibilidade de desenvolvimento de novas pesquisas lexicais e morfológicas de matiz histórico-comparativo na esfera da romanística, o que per se já é positivo para a área, tão pouco expressiva no Brasil nas últimas décadas. 134

Um exemplo ilustrativo é o que ocorre no âmbito da linguística histórica hispânica, pois seguramente espelha o que ocorre em outras zonas de tradição investigativa na romanística (imaginemos, então, como não o será em áreas onde não existe tal tradição...): segundo Álvarez de Miranda (2005), dentre todas as disciplinas da linguística histórica (e, dentro dela, a histórico-comparada, podemos dizer) as mais deficitárias são aquelas concernentes ao componente lexical, como a história do léxico, a etimologia e a lexicografia histórica. Não seria exagero incluir nesse rol a lexicogênese de cariz morfológico.

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Quanto a essa questão, e sem qualquer sombra de afetação, podemos concordar, ao menos em alguns pontos, com o que sinaliza Dworkin (2005, p. 128-129): “No curso do levantamento da saúde curricular de nossa disciplina nas universidades do Reino Unido, John Green levanta uma questão em particular que não foi abordada por nenhum dos outros participantes do Cluster anterior ou neste Forum atual. Ele se pergunta se a ausência de estudos que lidam com dados românicos em recentes volumes colaborativos europeus sobre fonologia, morfologia e tipologia é devida, pelo menos em parte, à propensão de os romanistas continentais publicarem em uma das modernas línguas românicas. E nossos colegas alemães, austríacos e suíços muitas vezes preferem escrever em alemão, reconhecidamente a linguagem erudita da linguística românica do século XIX, que era histórica por definição. Quer se goste ou não, o inglês hoje se tornou a língua internacional da linguística geral. Mas os ensaios da língua inglesa não são aceitos em alguns dos periódicos mais qualificados e mais lidos que têm escopo pan-românico, como o Zeitschrift für Romanische Philologie ou o Revue de Linguistique

Romane. Suas páginas são efetivamente fechadas para muitos linguistas gerais que poderiam ter valiosas análises

de dados sobre romances que gostariam de compartilhar em um fórum aberto com seus colegas romanistas. Percebo que há questões políticas e sociais delicadas envolvidas, mas essa relutância em usar o inglês não tem posto obstáculos à capacidade dos acadêmicos românicos de transmitirem suas descobertas a muitos de seus colegas da linguística geral e abrir espaço ao trabalho desses generalistas nas páginas de seus próprios periódicos? Sua dependência contínua ao alemão não tem restringido a difusão e, portanto, o impacto potencial de grande parte de seu trabalho importante e valioso entre seus colegas, tanto na linguística românica quanto na linguística geral? É um fato lamentável que muitos romanistas fora da Europa germanofalante não leiam mais nessa língua, ou o façam apenas com considerável dificuldade e em raros intervalos. Eu não estou procurando aqui sugerir a imposição do inglês como a linguagem da linguística românica ou restringir o uso do alemão como um veículo acadêmico com uma longa e orgulhosa tradição nos estudos românicos, muito menos para questionar a circulação das línguas românicas como um meio de comunicação para o intercâmbio de pesquisa. Mas as realidades da comunicação internacional com os estudiosos em linguística geral não podem ser ignoradas.” [Trad. nossa]

Cabe ainda dizer que a maioria das informações coletadas sobre esses estudos parece atrelá- los à composição ou à sufixação, raramente sendo possível se deparar com publicações efetivamente relativas à derivação prefixal, seja no passado, seja no presente.

2.5 ESBOÇO DE UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO DO MÉTODO HISTÓRICO-