O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão PDF

O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão PDF

Carlos Rodrigues Brandão O Que é Educação ÍNDICE Educação? Educações: aprender com o índio Quando a escola é a aldeia Então, surge a escola Pedagogos, mestres-escola e sofistas A educação que Roma fez, e o que ela ensina Educação: isto e aquilo, e o contrário de tudo Pessoas versus sociedade: um dilema que oculta outros Sociedade contra Estado: classe e educação A esperança na educação Indicações para leitura EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água — carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. João Guimarães Rosa/Grande Senão: Veredas Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram? Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa: "...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa. ...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens." De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante. Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas. Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos. A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensiname-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar — às vezes a ocultar, às vezes a inculcar — de geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem. Por isso mesmo — e os índios sabiam — a educação do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura. Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força. No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação — nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa — interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta é a sua fraqueza. Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz. para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: "...e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "...eles eram, portanto, totalmente inúteis". QUANDO A ESCOLA É A ALDEIA A educação existe onde não há a escola e por toda parte

O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão PDF
O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão PDF
O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão PDF

No Text Content!

cOlecão • • primeiros20 ••• • passos Carlos Rodrigues BrandãoEDOUQCUAEÇAE-'\" Oeditora brasiliense Cupyright © hy Carlos Rodrigues Brandão, 1981 Nenhuma parte desta publicação pode _~er gravada, annazenada cm sistemas eletrônicos, fotocopiada,reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem aUlorização prévia da editora. Primeira edição, 198 t 493 reimpressão, 2007 Revisão: José E. Andrade e Lúcia S. Nicolai Caricatura...: Emílio Damilli Capa: /23 (antigo 27) Artistas GráficosDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ÍNDICE (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Educação? Educações: aprender com o Brandão, Carlo\" Rodrigue.~ O que é educação / Carlos Rodrigues Brandão. índio .............. . 7 São Paulo: Brasiliense, 2007. - - (Coleção primeiros passos; 20) Quando a escola é a aldeia ...... . 13 49\" reimpr. da 1. ed. de 1981. Então, surge a escola .......... . 27 ISBN 85-11-01020-3 Pedagogos, mestres-escola e sofistas. 36 I. Educação I. Título. H. Série. A educação que Roma fez, e o que ela rnn_ '711 ensina ................ _........... . 48Índices para catálogo sistemático Educação: isto e aquilo, e o contrário I. Educação 370' de tudo ..... _..................... . 54 Pessoas versus sociedade: um dilema que oculta outros ....................... '. 61 editora brasiliense S.3. Sociedade contra Estado: classe e educação 73 Rua Airi, 22 - TalUapé - CEP 033 HI-OlO - São Paulo - SP A esperança na educação. _.. 98 Fone/Fax: (Oxxl [) 6198-t48f' www.editorabrasiliense.com.c - Indicações para leitura. , ......... , .... . 111 livraria brasiliense 5.3. ..••..'Av. Azevedo, 484 - Tiltuapé - CEP 03308-000 - São Paulo - SP Fone/Fax: (Oxx 11) 6197-0054 li [email protected] EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul. e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. João Guimarães Rosa/Grande Sertão: Veredas Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua,na igreja ou na escola, de um modo ou de muitostodos nós envolvemos pedaços da vida com ela:para aprender, para ensinar, para aprender-e--ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou paraconviver, todos os dias misturamos a vida coma educação. Com uma ou com várias: educação?Educações. E já que pelo menos por isso sempreachamos que temos alguma coisa a dizer sobrea educação que nos invade a vida, por que não 8 Carlos Rodrigues Brandiío o que é Educação 9 começar a pensar sobre ela com o qúe uns índios nossa I/ngua muito mal. Eles eram, portanto, uma vez escreveram? totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia Ficamos extremamente agradecidos pela vossa e Maryland assinaram um tratado de paz com oferta e, embora não possamos aceitá-Ia, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres os rndios das Seis Nações. Ora, como as promes- senhores de Virg/nia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sas e os símbolos da educação sempre foram sabemos e faremos, deles, homens.\" muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram De tudo o que se discute hoje sobre a educação, cartas aos índios para que enviassem alguns de algumas das questões entre as mais importantes seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma responderam agradecendo e recusando. A carta forma única nem um único modelo de educação; acabou conhecida porque alguns anos mais tarde a escola não é o único lugar onde ela acontece Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-Ia e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa: é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante. \".. .Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agrade- Em mundos diversos a educação existe dife- cemos de todo o coração. rente: em pequenas sociedades tribais de povos Mas aqueles que são sábios reconhecem que dife- caçadores, agricultores ou pastores nômades; rentes nações têm concepções diferentes das coisas em sociedades camponesas, em países desenvol- e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos vidos e industrializados; em mundos sociais sem ao saber que a vossa idéia de educação não é classes, de classes, com este ou aquele tipo de a mesma que a nossa_ conflito entre as suas classes; em tipos de socie- .. .Muitos dos nossos bravos guerreiros foram dades e culturas sem Estado, com um Estado formados nas escolas do Norte e aprenderam toda em formação ou com ele consolidado entre e a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para sobre as pessoas. nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio Existe a educação de cada categoria de sujeitos e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar de um povo; ela ex iste em cada povo, ou entre o inimigo e construir uma cabana, e falavam a 10 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 11 povos que se encontram. Existe entre povos de cada um de seus sujeitos, através de trocas que submetem e dominam outros povos, usando sem fim com a natureza e entre os homens, trocas a educação como um recurso a mais de sua domi· que existem dentro do mundo social onde a nância. Da família à comunidade, a educação própria educação habita, e desde onde ajuda a existe difusa em todos os mundos sociais, entre explicar - às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; de geração em geração, a necessidade da exis- primeiro, sem classes de alunos, sem livros e tência de sua ordem. sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos. Por isso mesmo - e os índios sabiam - a edu- cação do colonizador, que contém o saber de A educação pode existir livre e, entre todos, seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente pode ser uma das maneiras que as pessoas criam legalidade de seus atos de domínio, na verdade para tornar comum, como saber, como idéia, não serve para ser a educação do colonizado. como crença, aquilo que é comunitário como Não serve e existe contra uma educação que ele, bem, como trabalho ou como vida. Ela pode não obstante dominado, também possui como existir imposta por um sistema centralizado de um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber sua cultura. como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, Assim, quando são necessários guerreiros ou dos direitos e dos símbolos. burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros A educação é, como outras, uma fração do ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. modo de vida dos grupos soc.iais que a criam . Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através e recriam, entre tantas outras invenções de sua de passar de uns para os outros o saber que os cultura, em sua sociedade. Formas de educação constitui e legitima. Mais ainda, a educação parti- que produzem e praticam, para que elas reprodu· cipa do processo de produção de crenças e idéias, zam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, de qualificações e especialidades que envolvem o saber que atravessa as palavras da tribo, os as trocas de símbolos, bens e poderes que, em códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta os segredos da arte ou da religião, do artesanato é a sua força. ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educàdor 12 Carlos Rodrigues Brandão QUANDO A ESCOLA É A ALDEIA imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, A educação existe onde não há a escola e por na verdade, ele pode estar servindo a quem o toda parte podem haver redes e estruturas sociais constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu de transferência de saber de uma geração a outra, trabalho, para os usos escusos que ocultam também onde ainda não foi sequer criada a sombra de na educação - nas suas agências, suas práticas algum modelo de ensino formal e centralizado_ e nas idéias que ela professa - interesses polí- Porque a educação aprende com o homem a ticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, continuar o trabalho da vida. A vida que trans- à sociedade que habita_ E esta é a sua fraqueza. porta de uma espécie para a outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, viventes, dentro da história da espécie, os princí- e elas podem ser como que um roteiro daqui pios através dos quais a própria vida aprende para a frente. A educação existe no imaginário e ensina a sobreviver e a evoluir em cada tipo das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, de ser_ ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua missão é transformar Os bichos do mundo aprendem de dentro para sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de fora com as armas naturais do instinto. Mas a acordo com as imagens que se tem de uns e outros: isto eles acrescentam maneiras de aprender de \" .. _e deles faremos homens\". Mas na prática fora para dentro, convivendo com a espécie, a mesma educação que ensina pode deseducar: e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: \"_ ..eles eram, portanto, totalmente inúteis\"_ •••••• 14 Carlos Rodrigues Braruiiio o que é Educação IS observando a conduta de outros igua is de seu Na aldeia africana o \"velho\" ensina às crumças o saber mundo e experimentando repetir muitas vezes da tribo. essas condutas da espécie, por conta própria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de longe, particular e ,exige organizações físicas e espirituais, não são raros os bichos cujos pais da prole criam ao conjunto das quais damos o nome de educação. e recriam situações, para que o treino dos filhotes Na educação, como o homem a pratica, atua faça e repita os atos da aprendizagem que garante a mesma força vital, criadora e plástica, que espon- a vida, como a mãe que um dia expulsa com taneamente impele todas as espécies vivas à conser· amor o filho do ninho, para que ele aprenda vação e à propagação de seu tipo. E nela, porém, a arte e a coragem do primeiro vôo. que essa força atinge o seu mais alto grau de inten- sidade, através do esforço consciente do conheci- O homem que transforma, com o trabalho mento e da vontade, dirigida para a consecução e a consciência, partes da natureza em invenções de um fim.\" de sua cultura, aprendeu com o tempo a trans· formar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situações sociais de aprender·ensinar· -e-aprender: em educação. Na espécie humana a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domínio propria· mente humano de trocas: de símbolos, de inten· ções, de padrões de cultura e de relações de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o traba- lho da natureza de fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. ~ esta a idéia que Werner Jaeger tem na cabeça quando, num estudo sobre a edu· cação do homem grego, procura explicar o que ela é, afinal: \"A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e tranimissão da sua forma 16 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 17 Quando um povo alcança um estágio complexo descrevam relações cotidianas ou cerimônias de organização da sua sociedade e de sl,la cultura; rituais em que crianças aprendem e jovens são quando ele enfrenta, por exemplo, a questão solenemente admitidos no mundo dos adultos. da divisão social do trabalho e, portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como De vez em quando, aparece, perdido num problema as formas e os processos de transmissão mar de outros conceitos, o de educação, como do saber. É a partir de então que a questão da quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês educação emerge à consciência e o trabalho de que participa da criação da moderna Antropologia educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os Social - lembra que, entre os andamaneses, um espaços, sistemas, tempos, regras de prática, grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, tipos de profissionais e categorias de educandos para se ajustar a criança à sua comunidade Hé envolvidos nos exercicios de maneiras cada vez preciso que ela seja educada\". Parte deste pro- menos corriqueiras e menos comunitárias do cesso consiste em a criança e o adolescente apren- ato, afinal tão simples, de ensinar-e-aprender. derem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve No entanto, muito antes que isso aconteça, a aqu isição de \"sentimentos e disposições emocio- em qualquer lugar e a qualquer tempo - entre '. nais\" que regulam a conduta dos membros da dez indios remanescentes de alguma tribo do tribo e constituem o corpo de suas regras sociais Brasil Central, no centro da cidade de São Paulo - de moralidade. a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferentes, que algumas vezes Quando os antropólogos pouco falam em parece ser invisivel, a não ser nos lugares onde educação, eles pouco querem falar de processos pendura alguma placa na poria com o seu nome. formalizados de ensino. Porque, onde os andama- neses, os maori, os apaches ou os xavantes pra- Quando os antropólogos do começo do século ticam, e os antropólogos identificam processos sairam pelo mundo pesquisando \"culturas primi- sociais de aprendizagem, não existe ainda nenhuma tivas\" de sociedades tribais das Américas, da Asia, situação propriamente escolar de transferência da África e da Oceania, eles aprenderam a descre- do saber tribal que vai do fabrico do arco e flecha ver com rigor praticamente todos os recantos à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. da vida destas sociedades e culturas. No entanto, Ali, a sabedoria acumulada do grupo social não quase nenhum deles usa a palavra educação, \"dá aulas\" e os alunos, que são todos os que embora quase todos, de uma forma ou de outra, aprendem, \"não aprendem na escola\".' Tudo 18 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 19 o que se sabe aos poucos se adquire por viver do clã. Não há mestres determinados, nem inspe- muitas e diferentes situações de trocas entre tores especiais para a formação da juventude: pessoas, com o corpo, com a consciência, com esses papéis são desempenhados por todos os o corpo-e-a-consclencia. As pessoas convivem anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores.\" umas com as outras e o saber flui, pelos' atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. As meninas aprendem com as companheiras Mesmo quando os adultos encorajam e guiam de idade, com as mães, as avós, as irmãs mais os momentos e situações de aprender de crianças velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou e adolescentes, são raros os tempos especialmente aquela especialista em algum tipo de magia ou reservados apenas para o ato de ensinar. artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guer- todas as relações entre a criança e a natureza, guia- reiros, com algum xamã (mago, feiticeiro), com das de mais longe ou mais perto pela presença de os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes adultos conhecedores, são situações de apren- desta educação de aldeia criam de parte a parte dizagem. A criança vê, entende, imita e aprende as situações que, direta ou indiretamente, forçam com a sabedoria que existe no próprio gesto iniciativas de aprendizagem e treinamento. Elas de fazer a coisa. São também situações de aprendi· existem misturadas com a vida em momentos zagem aquelas em que as pessoas do grupo trocam de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de bens materiais entre si ou trocam serviços e signi- amor. Quase sempre não são impostas e não é ficados: na turma de caçada, no barco de pesca, raro que sejam os aprendizes os que tomam a seu no canto da cozinha da palhoca, na lavoura fami- cargo procurar pessoas e situações de troca que liar ou comunitária de mandi~ca, nos grupos de lhes possam trazer algum aprendizado. Assim, brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com religiosas. o depoimento de um antropólogo: Emile Durkheim, um dos. principais sociólogos \"Onde é necessário aprender habilidades especiais da educação, explica isto da seguinte maneira: as crianças estão, em regra geral, ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho \"Sob regime tribal, a caracterlstica essencial da do trabalhador e o prestigio do bom artesão educaçaõ reside no fato de ser difusa e adminis- trada indistintamente por todos os elementos 20 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 21 dominam sua vida e elas necessitam de muito reconhecidos e legitimados para a convlvencia pouco est/mulo para procurá-los por si mesmas_\" social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios do amor. o saber da comunidade, aquilo que todos conhe- \"Os meninos observam os homens quando fazem cem de algum modo; o saber próprio dos homens arcos e flechas; o homem os chama para perto e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, de si e eles se vêem obrigados a observá-lo. As adultos e velhos; o saber de guerreiros e esposas; mulheres, por outro lado, levam as meninas para o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas o navegador e outros tantos especialistas, envolve boas para confeccionar cestos e a argila que serve portanto situações pedagógicas interpessoais, fami- para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem liares e comunitárias, onde ainda não surgiram os cestos, costuram os mocassins e curtem a técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, de seus profissionais de aplicação exclusiva. Os enquanto estão trabalhando, que observem cuida- que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, dosamente, para que, quando forem grandes, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que ninguém as possa chamar de preguiçosas e igno- não sabem espiam, na vida que há no cotidiano, rantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham- o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são -nas sobre a busca de bagas e outros frutos, assim instruídos com o exemplo, incentivados, treinados, como sobre a colheita de alímentos. \" corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e e(lsinar, Em todos os grupos humanos mais simples, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparra- os diversos tipos de treinamento através das trocas madas pelos cantos do cotidiano, todas as situações sociais, que socializam crianças e adolescentes, entre pessoas, e entre pessoas e a natureza - incluem, entre outras, estas situações pedagógicas: situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo - têm, em menor • o treinamento direto de habilidades corporais, ou maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, por meio da prática direta dos atos que condu- todos os que convivem aprendem, aprendem, zem o corpo ao hábito; da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos • a estimulação dirigida, para que o aprendiz e cada um pessoalmente aptos e socialmente faça e repita, até o acerto, os atos de saber r o que é Educação'22 Carlos Rodrigues Brandão 23 ee habilidade que ignora; vizinhas de pastores do deserto, é possível que se dê franca importância a um artifício pedagógico, • a observação livre dirigida, do educando, em uma delas, como o castigo corporal, por exem- dos procedimentos daqueles que sabem; plo, ou a atemorização de crianças, e ele seja • a correção interpessoal, familiar ou comuni- simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e tária, das práticas ou das condutas erradas, na outra, como em todas do mundo, nunca as por meio do castigo, do rid(culo ou da admoes- pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso. tação' O que vimos acontecer até aqui, formas vivas • a assistência convocada para cerimônias rituais e comunitárias de ensinar-e-aprender, tem sido e, aos poucos (ou depois de uma iniciação), chamado com vários nomes. Ao processo global o direito à participação nestas cerimônias que tudo envolve, é comum que se dê o nome (solenidades religiosas, danças, rituais de pas· de socialização. Através dela, ao longo da vida, sagem); cada um de nós passa por etapas sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais • a inculcação dirigida em situações de quase-ensi- ou especializadas de saber-e-habilidade. Elas fazem, no, com o uso da palavra e turmas de ouvintes, em conjunto, o contorno da identidade, da ideo- dos valores morais, dos mitos histórico-religiosos logia e do modo de vida de um grupo social. da tribo, das regras dos códigos de conduta. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo que aos poucos somos, sabemos, Assim, tudo o que é importante para a comuni- fazemos e amamos. A socialização realiza em sua dade, e existe como algum tipo de saber, existe esfera as necessidades e projetos da sociedade, também como algum modo de ensinar. Mesmo e realiza, em cada um de seus membros, grande onde ainda não criaram a escola, ou nos intervalos parte daquilo que eles precisam para serem reco- dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo nhecidos como \"seus\" e para existirem dentro dela. humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o processo aos adolescentes, e também aos jovens e mesmo de aqU1s1çao pessoal de saber-crença-e-hábito aos adu Itos, o saber, a crença e os gestos que os de uma cultura, que funciona sobre educandos tornarão um dia o modelo de homem ou de mulher como uma situação pedagógica total, pode ser que o imaginário de cada sociedade - ou mesmo chamado (com algum susto) de endoculturação. de cada grupo mais específico, dentro dela - idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos 24 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 2S Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender mãos do oleiro, mas que se deixa conduzir por de maneira mais ou menos intencional (alguns elas a se transformar na obra feita: o adulto edu- dirão: \"mais ou menos consciente\"), através do cado. Quando o educador pensa a educação, envolvimento direto do corpo, da mente e da ele acredita que, entre homens, ela é o que dá afetividade, entre as incontáveis situações de a forma e o polimento. Mas ao fazer isso na prática, relação com a natureza e de trocas entre os ho- tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda mens, é parte do processo pessoal de endocul- o barro a que se transforme, quanto a forma que turação, e é também parte da aventura humana iguala e deforma. do \"tornar-se pessoa\". i: bom separar agora algumas palavras usadas Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa. Ela apa- até aqui e que serão ainda trabalhadas mais adiante. rece sempre que há relações entre pessoas e Tudo o que existe transformado da natureza pelo intenções de ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos \"modelar\" a criança, trabalho do homem e significado pela sua cons- para conduzi-Ia a ser o \"modelo\" social de adoles- ciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, cente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante as palavras da tribo, a tecnologia da agricultura, um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos da caça ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo sempre traduzem de alguma maneira esta lenta nos atos do amor, o sistema de crenças religiosas, transformação que a aquisição do saber deve as estórias da história que explica quem aquela operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, gente é e de onde veio, as técnicas e situações transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, de transmissão do saber. Tudo o que existe dispo- domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, nível e criado em uma cultura como conhecimento de que o homem natural é a matéria-prima. que se adquire através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro; tudo o que se Não é nada raro que tanto na cabeça de um aprende de um modo ou de outro faz parte do índio quanto na de um de nossos educadores processo de endoculturação, através do qual ocidentais, a melhor imagem de como a educação um grupo social aos poucos socializa, em sua se idealiza seja a do oleiro que toma o barro cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria sobre a argila sociais. viva que é o educando. A argila que resiste às Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe corrige o ,filho para que ele fale direito a Iíngua do grupo, 26 Carlos Rodrigues Brandiío ENTÃO, SURGE A ESCOLA ou quando fala à filha sobre as normas sociais Mesmo em algumas sociedades primitivas, do modo de \"ser mulher\" a li. Existe também quando o trabalho que porduz os bens e quando o quando o pai ensina ao filho a polir a ponta da poder que reproduz a ordem são divididos e flecha, ou quando os guerreiros saem com os começam a gerar hierarquias sociais, também jovens para ensiná-los a caçar. A educação aparece o saber comum da tribo se divide, começa a se sempre que surgem formas sociais de condução distribuir desigualmente e pode passar a servir e controle da aventura de ensinar-e-aprender. ao uso político de reforçar a diferença, no lugar O ensino formal é o momento em que a educação de um saber anterior, que afirmava a comunidade. se sujeita à pedagogia (a teoria da educação). cria situações próprias para o seu exercício, produz Então é o começo de quando' a sociedade os seus métodos, estabelece suas regras e tempos, separa e aos poucos opõe: o que faz, o que se e constitui executores especializados. ~ quando sabe com o que se faz e o que se faz com o que aparecem a escola, o aluno e o professor de quem se sabe. Então é quando, entre outras categorias começo a falar daqui para frente. de especialidades sociais, aparecem as de saber e de ensinar a saber. Este é o começo do momento •••••• em 'que a educação vira o ensino, que inventa a pedagogia, reduz a aldeia à escola e transforma \"todos\" no educador. 28 Carlos Rodrigues Brandão o que ti Educação 29 o que é que isto significa? Significa que, para I meninas são isolados do resto da tribo. Em alguns casos convivem entre iguais e com adultos poralém das fronteiras do saber comum de todas as períodos de reclusão e aprendizagem que envolvempessoas do grupo e transmitido entre todos livre situações de ensino forçado e duras provas dee pessoalmente, para além do saber dividido iniciação. Todo o trabalho pedagógico da forma-dentro do grupo entre categorias naturais de ção destes jovens é conduzido por categorias depessoas (homens e mulheres, crianças, jovens, educadores escolhidos entre todos para este tipoadultos e velhos) e transferido de uns aos outros de ofício, de que os meninos saem jovens-adultossegundo suas linhas de sexo ou de idade, por e guerreiros, por exemplo, e as meninas, moçasexemplo, emergem tipos e graus de saber que prontas para a posse de um homem, uma casacorrespondem desigualmente a diferentes cate- e alguns filhos.gorias de sujeitos (o rei, o sacerdote, o guerreiro,o professor, o lavrador). de acordo com a sua Nas suas formas mais simples, estas situaçõesposição social no sistema político de relações pedagógicas de ensino especializado que apressado grupo_ Onde todos aprendem para serem o adulto que há no jovem podem ser muito breves.\"gente\" I lIadulto\", \"um dos nossos\" e, meio a Podem envolver pouco mais do que momentosmeio, alguns aprendem para serem \"homem\" provocados de convivência intensificada entree outros para serem \"mulher\", outros ainda come- grupos de adolescentes e grupos de adultos.çam a aprender para serem \"chefe\", \"feiticeiro\", Depressa eles são devolvidos ao grupo social\"artista\", \"professor\", \"escravo\". A diferença e, quase sempre, depois de cerimônias públicas de iniciação (os ritos de passagem), são reconhe-que o grupo reconhece neles por vocação ou por cidos, pela posição que o grupo lhes atribui eorigem, a diferença do que espera de cada um deles pelo saber que lhes reconhece, como homenscomo trabalho social qualificado por um saber, e mulheres aptos e legítimos para a vida do adultogera o começo da desigualdade da educação de da tribo.\"homem comum\" ou de \"iniciado\", que cada Outras vezes este período de aprendizagem-sepa-um deles diferentemente começa a receber. rada é muito ~ais longo, muito mais diversificado e, por certo, muito mais próximo dos modelos Uma divisão social do saber e dos agentes e de agências e procedimentos de ensino que temosusuários do saber como essa existe mesmo em na cabeça quando pensamos em educação. Emsociedades muito simples. Em seu primeiro plano sociedades tribais da Libéria e de Serra Leoa,de separação - o mais universal - numa idadesempre próxima à da adolescência, meninos e - 30 Car/cs Rodrigues Brandão o que é Educação 31 na África, há tipos de escolas para os meninos de ensino divide a \"Mand(bula Superior\", onde (as escolas \"Poro\") e para as meninas (as escolas os jovens aprendem com os sacerdotes os segredos \"Sande\"). De tribo para tribo os meninos estudam do sagrado, da \"Mandíbula Inferior\", relacionada, por períodos que vão de ano e meio a oito anos. com os assu ntos terrenos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam. Divididos de acordo com seus grupos Em um 'segundo plano, mais restrito e mais de idade (como em nossas \"séries\"), eles aprendem marcadamente político, diferentes categorias de as crenças, as tradições e os costumes culturais meninos e meninas recebem o saber especializado da tribo, além do saber dos ofícios de guerra e que há em uma \"educação de minorias privile- paz. A escola Poro leva em conta diferenças indivi- giadas\", destinadas por herança aos cargos de duais e, com o trabalho docente de diferentes chefia. Assim acontece, por exemplo, entre quase professores-especialistas, forma novos especialistas. todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres Se um menino ·demonstra talentos para o trabalho e outros jovens selecionados de antemão para do fabrico de tecidos, de couro, para o exercício postos futuros de poder sobre os outros passavam da dança, ou para os ofícios da medicina tribal, por verdadeiros cursos superiores de estudos ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo que lhes tomavam quase todo o tempo da adoles- comum do programa por que passa com todos cência e da juventude. A tribo que mais adiante os outros companheiros de idade. submeterá a eles a chefia comunitária - o trabalho social de dirigir - atribuirá a eles como um direito, Entre grupos de pescadores da Nova Zelândia e exigirá deles como um dever, o saber especia- e do Arquipélago da Sociedade, existem \"casas lizado do chefe. E o próprio tempo prolongado de ensino\", verdadeiras unil(ersidades em escala de estudo, treino e teste, muito mais do que o indígena, onde toda a sabedoria da cultura é de todos os outros meninos, vale como um ates- ensinada aos jovens de ambos os sexos por profes- tado social de diferenças entre o chefe e os outros, sores-sacerdotes. Durante a metade do ano estas dado pela educação. \" \"casas\" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma teoria e muita prá- Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem tica sobre pelo menos os seguintes assuntos: e hierarquizam tipos de saber, de alunos e de usos genealogia, tradições e história, princípios de do saber, não podem abandonar por inteiro as crença e cultos r.eligiosos, magia, artes da nave- formas livres, familiares e/ou comunitárias de gação, agricultura, dança, literatura. O programa educação. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educação existe como um inventário amplo 32 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 33 de relações interpessoa is diretas no âmbito fami- externo a ele, atribuído de fora para dentro a uma liar: mãe-filha, pai-filho, sobrinho-irmão-da-mãe, hierarquia de especialistas do ensino, e destinado irmão-mais-velho-irmão-caçula e assim por diante. a reproduzir a desigualdade através da oferta Esta é a rede de trocas de saber mais universal desigual do saber, é uma conquista tardia na e mais persistente na sociedade humana. Depois, história da cultura. a educação pode existir entre educadores-edu- candos não parentes - mas habitantes de uma Em nome de quem os constitui educadores, mesma aldeia, de uma mesma cidade, gente de estes especialistas do ensino aos poucos tomam uma mesma linguagem - semi-especializados a seu cargo a tarefa de assumir, controlar e recodi- ou especialistas do saber de algum ofício mais ficar domínios, sistemas, modos e usos do saber amplo ou ·mais restrito: artesão-aprendiz, sacer- e das situações coletivas de distribuição do saber. dote-iniciado, cavaleiro·escudeiro, e tantos outros. Onde quer que apareça e em nome de quem venha, todo o corpo profissional de especialistas do Até aqui o espaço educacional não é escolar. ensino tende a dividir e a legitimar divisões do Ele é o lugar Ja vida e do trabalho: a casa, o conhecimento comunitário, reservando para o seu templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. próprio domínio tanto alguns tipos e graus do Espaço que apenas reúne pessoas e tipos de ativi- saber da cultura, quanto algumas formas e recursos dade e onde viver o fazer faz o saber. próprios de sua difusão. Em todo o tipo de comunidade humana onde Assim, aos poucos acontece com a educação ainda não há uma rigorosa divisão social do tra- o que acontece com todas as outras práticas balho entre classes desiguais, e onde o exercício sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o social do poder ainda não foi centralizado por lazer) sobre as quais lÍTTl dia surge um interesse uma classe como um Estado,· existe a educação político de controle.' Também no seu interior, sem haver a escola e existe a aprendizagem sem sistemas antes comunitários de trocas de bens, haver o ensino especializado e formal, como um de serviços e de significados são em parte contro- tipo de prática social separada das outras. E lados por confrarias de especialistas, mediadores da vida. entre o poder e o saber. Mesmo nas grandes sociedades .-çivilizadas do Os estudos mais recentes da História têm indi- passado - como na Grécia e em Roma, com que cado que a palavra escrita parece ter surgido em vamos nos encontrar um pouco mais adiante - sociedades-estado enriquecidas e com um poder um sistema pedagógico controlado por um poder muito centralizado, como entre os egípcios ou 34 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 3S entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro a separar o nobre do plebeu parece ser um ponto sendo usada pelos escribas, para fazer a contabi· terminal na escala de invencão dos recursos huma· lidade dos bens dos reis e faraós. Só mais tarde nos de transferência do s~ber de uma geração a é que foi usada também pelos poetas para cantarem outra. Também nas sociedades ocidentais como a as coisas da aldeia e de sua gente. Assim também nossa - sociedades complexas, sociedades de clas· a educação. Por toda a parte onde ela deixa de ses, sociedades capitalistas - a educação escolar é ser totalmente livre e comunitária (não escrita) uma invenção recente na história de cada uma. Da e é presa na escola, entre as mãos de educadores maneira como existe entre nós, a educação surge a serviço de senhores, ela tende a inverter as na Grécia e vai para Roma, ao longo de muitos utilizações dos seus frutos: o saber e a repartição séculos da história de espartanos, atenienses do saber. A educação da comunidade de iguais e romanos. Deles deriva todo o nosso sistema que reproduzia em um momento anterior a igual· de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, dade, ou a complementariedade social, por sobre até mesmo as sociedades capitalistas mais tecnolo· diferenças naturais, começa a reproduzir desigual· gicamente avançadas têm feito poucas inovações. dades sociais por sobre igualdades naturais, começa Talvez estejam, portanto, entre os seús inven- desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas tos e escolas, algumas das respostas às nossas pedagógicos e as \"leis do ensino\" para servir ao perguntas. poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. Onde um tipo de educação pode tomar •••••• homens e mulheres, crianças e velhos, para torná· ·Ios todos sujeitos livres que por igual repartem uma mesma vida comunitária; um outro tipo de educação pode tomar os mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos, ensinando·os a pensa· rem, dentro das mesmas idéias e com as mesmas palavras, uns como senhores e outros, como escravos. Nas sociedades primitivas que nos acompa- nharam até aqui, a educação escolar que ajuda o que é Educação 37 PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA a vida do cidadão livre e educado. Esta educação E SOFISTAS grega é, portanto, dupla, e carrega dentro dela a oposição que até hoje a nossa educação não Todas as grandes sociedades ocidentais que, resolveu. Ali estão normas de trabalho que, quandocomo Atenas e Roma, emergiram de seus bandos reproduzidas como um saber que se ensina paraerrantes, de suas primeiras tribos de clãs de pasto- que se faça, os gregos acabaram chamando deres ou camponeses, aprenderam a lidar com a tecne e que, nas suas formas mais rústicas e menoseducação do mesmo modo como qualquer outro enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhadoresgrupo humano, em qualquer outro tempo. Tal manuais, livres ou escravos. Ali estão normijScomo entre os índios das Seis Nações, os primei- de vida que, quando reproduzidas como umros assuntos e problemas da educação grega foram saber que se ensina para que se viva e seja umos dos oHcios simples dos tem'pos de paz e de tipo de homem livre e, se possível, nobre, osguerra. O que se ensina e aprende entre os primei- gregos acabaram chamando de teoria. Este saberros pastores, mesmo quando eles começaram que busca no homem livre o seu mais pleno desen-rusticamente a enobrecer, envolve o saber da volvimento e uma plena participação na vida daagricultura e do pastoreio, do artesanato de subsis- polis é o próprio ideal da cultura grega e é otência cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, que ali se tinha em mente quando se pensavasem muitos mistérios, com os princípios de honra, na educação.de solidariedade e, mais do que tudo, de fideli-dade à polis, a cidade grega onde começa e acaba De tudo o que pode ser feito e transformado, nada é para O grego uma obra de arte tão perfeita quanto o homem educado. A primeira educação que houve em Atenas e Esparta foi praticada entre todos, nos exercícios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis grega criou na sociedade estruturas de oposição entre livres e escravos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira e, mais tarde, da elite togada é que a educação foi dirigida. Por alguns séculos, mesmo para eles, ainda não 38 Car/os Rodrigues Brandiio o que é Educação 39 havia a escola. militar, destinada apenas à formação do cidadão Das relações familiares diretas até a convivência nobre. Até então, mesmo no apogeu da demo- cracia grega, a propriedade é restritamente entre jovens, segundo os seus grupos de idade, comunal; pertence aos cidadãos ativos do Estado. ou entre grupos de meninos educandos e um O poder pertence aos estratos mais nobres destes velho educador, entre os gregos sempre se conser- cidadãos ativos, e a vida e o trabalho colocam vou a idéia de que todo o saber que se transfere de um lado os homens livres, senhores e, de outro, pela educação circula através de trocas interpes- os escravos ou outros tipos de trabalhadores soais, de relações física e simbolicamente afetivas manuais expulsos do direito do saber que existe entre as pessoas. Assim, a pederastia acaba sendo napaideia. considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de educação entre homens livres Durante muitos séculos os \"pobres\" da Grécia e iguais. Em toda a Grécia a formação do nobre aprenderam desde criança fora das escolas: nas guerreiro apenas desenrola ao longo dos anos oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. uma seqüência de trocas entre um mestre e seus Os meninos \"ricos\" inicialmente aprenderam discípulos. também fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Além das agências Aquilo que a cultura grega chama com pleno estatais de educação, como a Efebia de Esparta, efeito de educação - paideia - dando à palavra que educava o jovem nobre-guerreiro, toda a o sentido de formação harmônica .do homem educação fora do lar e da oficina é uma empresa para a vida da polis, através do desenvolvimento particular, mesmo quando não é paga. Particular de todo o corpo e toda a consciência, começa e restrita a muito pouca gente. de fato fora de casa, depois dos sete anos. Até lá a criança convive com a sua criação, convi- Apenas quando a democratização da cultura vendo com a mãe e escravos domésticos. e da participação na vida pública colocam a neces- sidade da democratização do saber, é que surge Para além ainda do que entre os sete e os catorze a escola aberta a qualquer menino livre da cidade- anos aprende com o mestre-escola, a verdadeira -estado. A escola primária surge em Atenas por educação do jovem aristocrata é o fruto do lento volta do ano 600 A.C_ Antes dela havia locais trabalho de um ou de poucos mestres que acom- de ensino de metecos e rapsodistas que aos inte- panham o educando por muitos anos. ressados ensinavam \"a fixar em símbolos os negó- cios e os cantos\". Só depois da invenção da escola Em Atenas, por volta do VI século A.C., a edu- cação deixa de ser uma prática coletiva, de estilo 40 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educaçã, 41 de primeiras letras é que o seu estudo é pouco Pequenas imagens gregas de te\"acota retratam o escravo a pouco incorporado à educação dos meninos pedagogo conduzindo para a escola a criança. nobres. Assim, surgem em Atenas escolas de bairro, não raro \"lojas de ensinar\", abertas entre as outras no mercado. Ali um humilde mestre- -escola, \"reduzido pela miséria a ensinar\", leciona as primeiras letras e contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, não chega sequer a esta escola. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre passa por ela depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educação grega forma de fato o seu modelo de \"adulto educado\". Citação de Sólon, legislador grego: \"As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exer- citar-se na agricultura ou em uma indústria qual- quer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filo- sofia, à caça e à freqüência aos ginásios.\" Esta concepção Xenofonte, historiador, poeta, filósofo e militar grego, criticaria quase dois séculos depois: \"Só os que podem criar os seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola; os que não podem, não enviam.\" 42 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 43 A educação do jovem livre vai em direção à dores, muito mais do que os mestres-escola. Eles teoria, que é o saber do nobre para compreender conviviam com a criança e o adolescente e, mais e comandar, não para fazer, curar ou construir. do que os pais, faziam a educação dos preceitos Durante toda a antigüidade a única disciplina e das crenças da cultura da polis. O pedagogo técnica (entendida como a de uma formação era o educador por cujas mãos a criança grega que aponta para um ofício determinado) é a atravessava os anos a caminho da escola, por medicina. Não há outras escolas coletivas de caminhos da vida. ensino técnico para o preparo de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal Nos primeiros tempos, mais do que filósofos como ferreiros ou tecelões, eles aprendem de ou matemáticos, os gregos foram guerreiros, maneira simples e direta, na oficina e no tra- músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica balho, através do convívio com algum velho ou científica, a educação do cidadão livre era artífice. ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras possuíam na paideia grega), dentro de Diferenças de saber de classe dos educandos uma cultura pouco acostumada a separar a verdade produziram diferenças curiosas entre os tipos da beleza. Mais tarde, sob a influência de Sócrates de educadores da Grécia antiga. De um lado, e Epicuro (um sujeito feio e outro doentio) é que desprezíveis mestres-escola e artesãos-professores; a educação começa a ser pensada como formadora de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, do espírito. Por muitos e muitos séculos ela aponta ou de nobres. De um lado, a prática de instruir para a harmonia que existe na beleza do corpo para o trabalho; de outro, a de educar para a (e a destreza para a luta) ao lado da clareza da vida e o poder que determina a vida social. mente (e a fidelidade à polis dos cidadãos livres). Mesmo no nível da cultura letrada dos nobres, De todos estes adultos trans'missores de saber a civilização clássica não conservou sempre um vale a pena falar do pedagogo. Pequenas estatuetas único modelo ou estilo de saber, logo, de educação. de terracota guardam a memória dele. Artistas gregos representaram esses velhos escravos - Ela oscilou entre duas formas de algum modo quase sempre cativos estrangeiros - conduzi ndo antagônicas: a filosófica, cujo tipo dominante crianças a caminho da escola de primeiras letras.• pode ser Platão, e a oratória (retórica), cujo tipo E por que eles e não os mestres que nas escolas dominante pode ser Isócrates. ensi navam? Porque os escravos pedagogos - condutores de crianças - eram afinal seus educa- Depois de constitu ídas as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos sobre 44 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 4S a divisão do trabalho e a instituição do regime ·mestre como Sócrates, Platão e Aristóteles, escravagista, para os seus adolescentes a educação reúnem à sua volta os seus alunos, em suas escolas coletiva não é uma atividade voluntária ou um superiores. A escola filosófico·iniciática de direito de berço. E um dever imposto pela polis Pitágoras, que interna educandos, cria regras ao livre. Porque o seu exercício modela não um próprias de conduta e lhes absorve boa parte homem abstrato, sonho de poetas, mas o cidadão do tempo da juventude, antecede a Academia maduro para o serviço à comunidade, projeto de Platão, o Liceu de Aristóteles e a Escola de do político. A \"obra de arte\" da paideia é a pessoa Epicuro. Mas são os filósofos sofistas os que plenamente madura - como cidadão, como militar, democratizam o ensino superior, tornando:O como político - posta a serviço dos interesses remunerado e, portanto, aberto a todos os que da cidade·comunidade. Assim, o ideal da educação podem pagar. Após a longa crise de tirania por é reproduzir uma ordem social idealmente conce- volta do VI século A.C., a vida social de Atenas bida como perfeita e necessária, através da trans- possibilita a participação de todos os cidadãos missão, de geração a geração, das crenças, valores livres, e isto recoloca a questão do preparo do e habilidades que tornavam um homem tão mais homem para o exercício da cidadania, a questão perfeito quanto mais preparado para viver a cidade de aprender para legislar e para estar de algum a que servia. E nada poderia haver de mais precio· modo presente nas assembléias de representação so, a um homem livre e educado, do que o próprio pol ítica. Os sofistas transformam a educação saber e a identidade de sábio que ele atribui ao superior em um tempo de formação do orador, homem. onde a qualidade da retórica tem mais valor do que a busca desinteressada da verdade, exercício Depois de haver conquistado a cidade onde dos nobres dos períodos anteriores. vivia o filósofo Estilpão, Demétrio Poliorceto pretendeu indenizá·lo pelos preju ízos materiais Aos poucos até Aristóteles e Alexandre Magno, que sofrera por causa da pilhagem. Quando pediu muito depressa durante a Civilização Helenística, que fizesse o inventário do que lhe pertencera e fora destru ído, Estilpão respondeu que nada a educação clássica passa por algumas mudanças: havia perdido do que era seu, porque não lhe 1) ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à formação do nobre guer· haviam roubado a sua cultura - \",,,6 \"\" - dado reiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum, para a carreira pol ítica; 2) ela vai de um que ainda conservava a eloqüência e o saber. domínio do \"saber desinteressado\", de fundo O formador de jovens, o educador, o filósofo· 46 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 47 artístico-musical, para o literário, daí para o dia. De algum modo, é uma educação contra a retórico, o livresco e o escolar (de aprender a criança, que não leva em conta o que ela é, mas sabedoria para aprender a informação); 3) ela olha para o modelo do que pode ser, e que anseia vai das agências de reprodução restrita do saber torná-Ia depressa o jovem perfeito (o guerreiro, de nobres, entre nobres, para o saber disponível, o atleta, o artista de seu próprio corpo-e-mente) à venda em escolas pagas que educam da criança e o adulto educado (o cidadão político a serviço ao adulto. da polis). Com o tempo a educação clássica deixa de ser Esta educação humanista de uma sociedade um assunto privado, posse e questão da comuni- que deixa ao escravo e ao artesão livre o trabalho dade dos nobres dirigentes, e passa a ser questão de fazer, desdenha a técnica e olha para \"o homem de Estado, pública. Aristóteles exige do Imperador todo\", formado de aprender a teoria e praticar leis que regulem direitos e controlem o exercício o gesto que constroem o saber e o hábito do da educação. Atrás das tropas de conquista de homem livre. Em seu pleno sentido, é uma edu- Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas cação ética cujo saber conduz o sábio a viver, por todo o mundo. Elas são, mais do que tudo, com a sua própria vida, o modelo de um modo o meio de impedir que a distância da Pátria de de ser idealizado, tradicional, que é missão da origem ameace perder-se a cultura do vencedor paideia conservar e transmitir. entre os costumes e o saber dos vencidos. , Finalmente, os gregos ensinam o que hoje esque- Como seria possível fazer uma síntese dos cemos. A educação do homem ex iste por toda princípios que orientaram toda a educação clássica parte e, muito mais do que a escola, é o resultado criada pelos gregos? Ela foi sempre entendida da ação de todo o meio sociocultural sobre os como um longo processo pêlo qual a cultura seus participantes. E o exercício de viver e convi- da cidade é incorporada à pessoa do cidadão. ver o que educa. E a escola de qualquer tipo Uma trajetória de· amadurecimento e formação é apenas um lugar e um momento provisórios (como a obra de arte que aos poucos se modela), onde isto pode acontecer. Portanto, é a comu- cujo produto final é o adulto educado, um sujeito nidade quem responde pelo trabalho de fazer perfeito segundo um modelo idealizado de homem com que tudo o que pode ser vivido-e-aprendido livre e sábio, mas ainda sempre aperfeiçoável. da cultura seja ensinado com a vida - e também Assim, a educação grega não é dirigida à criança com a aula - ao educando. no sentido cada vez mais dado a ela hoje em •••••• o que é Educação 49 A EDUCAÇÃO QUE ROMA FEZ, a educação da criança é uma tarefa doméstica. E O QUE ELA ENSINA Na aurora da história do poder de Roma, ela foi uma lenta iniciação da criança e do adolescente Os primeiros latinos foram camponeses aos nas tradições consagradas da cultura, e servia àpoucos enriquecidos e, alguns, tornados nobres consagração da tradicional idade quase veneradana Península Itálica. Ali aconteceu como em de um modo camponês de vida, simples e austero.tantas outras partes do mundo. Classes sociais A criança começava a aprender em casa, comque com o tempo chegaram a ser \"privilegiadas\"e separaram a direção do trabalho do próprio os mais velhos, e quase tudo o que aprendia eraexercício do trabalho, separando com isso as para saber e preservar os valores do mundo dosforças produtivas mentais d.as físicas, desem- \"mais velhos\", dos seus antepassados.penharam antes funções úteis. Primeiro, entreos romanos, o trabalho é entre todos e o saber Essa educação doméstica busca a formaçãoé de todos. Os primeiros reis de Roma punham da consciência moral. O adulto educado que elacom os súditos as mãos no arado e lavravam quer criar é o homem capaz de renúncia de sia terra. próprio, de devotamento de sua pessoa à comu- Como entre os índios, como nos tempos de nidade. São as virtudes do campesinato de todosorigem dos povos gregos, a educação dos campo- os tempos e lugares, o que dirige a primitivaneses latinos é comunitária e existe difusa em educação de Roma, que exalta em verso e prosatodo o meio social. Muito mais do que na Grécia, a austeridade, a vida simples, o amor ao trabalho como supremo bem do homem, e o horror ao luxo e à ociosidade. Ao contrário do que aconteceu cedo em Atenas, em Roma não há de início qualquer tipo de cuidado com a pura formação física e intelectual do cidadão ocioso, ocupado com pensar, governar e guerrear. A educação de uma comunidade dedicada ao trabalho com a terra foi durante séculos uma formação do homem para o trabalho e a vida, para a cidadania da comunidade igualada pelo trabalho. Quando o mundo romano de camponeses enri- quece com os excedentes da terra e das pilhagens 50 Carlos Rodrigues Brandão I o que é Educação 51 de outros povos, quando opõe classes sociais um modelo de educação para cada um, e limites e inventa o Estado, ele ainda defende a criança de ser entregue cedo a alguma forma de educação entre um modelo e outro. estatal, militarizada, fora do lar. Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres são Aos poucos a educação deixa de ser o ensino o pai e a mãe. Mesmo os mais ricos, senhores de escravos, não entregam a um servo·pedagogo que forma o pastor, o artífice ou o lavrador e, ou a uma governanta o cuidado dos filhos. Quando o menino completa, aos 7 anos, o aprendizado nas suas formas mais elaboradas, prepara o futuro cheio de afeição que recebe da mãe, ele passa para o pai, que não divide sequer com o mestre- guerreiro, o funcionário imperial e os dirigentes -escola o direito de educá-lo, ou seja, de formar a sua consciência segundo os preceitos das crenças do Império. O sistema comunitário de base peda- e valores da classe e da sociedade. gógica familiar compete com outros. Aos poucos Em Roma, portanto, ao contrário do que vimos acontecer em Atenas e principalmente em Esparta, aparece a oposição entre o ensino de educar, a família prolonga o poder de socializar o cidadão e, através dela, a sociedade civil estende o alcance dos pais, dos mestres-pedagogos. que convivem do seu modelo em toda uma primeira educação da criança. A partir de Homero, no alvorecer com os educandos e os acompanham, prolon- da história grega, o ideal da paideia é o herói da polis. Na educação romana o modelo ideal gando com eles o saber que forma a consciência é o ancestral da família, depois o da comunidade. e que é a sabedoria; e o ensino de instruir, do Quando uma nobreza romana enriquecida com a agricultura e o saque abandona o trabalho mestre-escola que monta no mercado a loja de da terra pelo da política, e cria as regras do Império de que se serve, aquele primitivo saber comu- ensino e vende o saber de ler-e-contar como uma nitário divide-se e força a separação de tipos, níveis e agências de educação. Quando há livres mercadoria. e escravos, senhores e servos, começa a haver O ensino elementar das primeiras letras apareceu em Roma antes do IV século A.C. Um tipo de ensino que podemos identificar com o secundário surgiu na metade do século III A.C. e o ensino que hoje em dia chamaríamos de superior, univer- sitário, apareceu pelo século I A.C. Mas, durante quase toda a sua história, o Estado Romano não toma a seu cargo a tarefa de educar, que ficou deixada à iniciativa particular, mas já não mais comunitária, como ao tempo em que os reis aravam a terra. Só depois do advento do Cristia- nismo, por volta do século IV D.C., é que surge e se espalha por todo o Império a schola publica, mantida pelos cofres dos municipios. 52 Carlos Rodrigues Brandiio o que é Educação 53Nos tempos do domínio de Augusto e de Tibé- visão de mundo do dominador. Plutarco descreveu como Roma usou a educaçãorio, a criança, educada em casa pelos pais, aprendia para \"domar\" os espanhóis dominados:depois dos 7 anos as primeiras letras na escola \"As armas não tinham conseguido stlbmetê-Ios(loja de ensino) do ludimagister. Aos 12 anos ela a não ser parcialmente; foi a educação que os domou.\"estava pronta para freqüentar a escola do gramma-ticus e, a partir dos 16, a do lector. Na sua formamais simples esta é a estrutura de educação queherdamos e conservamos até hoje.Do lado de fora das portas do lar, a educaçãolatina enfim separa em duas vertentes o que sepode aprender. Uma é a da eosficcrianvaosd, edotrsabsearlhvoo~para onde vão os filhos dose dos trabalhadores' artesãos. Outra é a escolalivresca, para onde vão o futuro senhor (o diri-gente livre do trabalho e do Estado) e o seu media-dor, o funcionário burocrata do Estado ou denegócios particulares.Esta educação de escola, que os romanos criamem Roma copiando a forma e alguma coisa doespírito dos gregos, espalham primeiro pela Penín-sula Itálica e depois por todo O mundo que con-quistam na Europa, na Asia e no Norte da Africa.Do mesmo modo como o sacerdote, o educadorcaminha atrás dos passos do general. A educaçãodo conquistador invade, com armas mais pode-rosas do que a espada, a vida e a cultura dosconquistados. A educação que serve, longe daPátria, aos filhos dos soldados e funcionáriosromanos sediados entre os povos vencidos, servetambém para impor sobre eles a vontade e a • •. a• • T o que é Educação ss I qual nos ajustamos à vida, de acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes' ato ou efeito de educar; aperfeiçoamento integraí de todas as faculdades humanas, polidez, cortesia. \" (Pequeno Dicionário Brasileiro de Ungua Portu- guesa, Aurélio Buarque de Hol/anda) EDUCAÇÃO: ISTO E AQUILO, Um pouco mais adiante vamos ver que o miolo E O CONTRÁRIO DE TUDO de cada uma d_Bstas definições de dicionário pende para um dos lados em gue se recortam as maneiras Ora, uma outra maneira de se compreendero que a educação é, ou poderia ser, é procurar de explicar o que a educação é e a Que serve.ver o que dizem sobre ela pessoas como legisla- Na nlema da Lei\" a coisa não muda muito. Aodores, pedagogos, professores, estudantes e outrossujeitos um tanto mais tradicionalmente difíceis pretenderem estabelecer os-fins da educacão node entender, como filósofos e cientistas sociais. país, nossos legisladores, pelo menos em teoria, garantem para todos o melhor a seu respeito. Eles Nos dois dicionários brasileiros mais conhecidos falam sobre o que deve determinar e controlar oa educação aparece definida assim: trabalho pedagógico em todos os seus graus e modalidades. De certo modo falam a respeito de\"Ação e efeito de educar, de desenvolver as facul- uma educação idealizada, ou falam da educacãodades f(sicas, intelectuais e morais da criança e,em geral, do ser humano; disciplinamento, ins- através de uma ideologia (ver O que é ideologia,trução, ensino \". (Dicionário Contemporâneo daLíngua Portuquesa, Caldas Aulete) desta mesma coleção):\"j!\ção exercida pelas gerações adultas sobre as \"Art. 1 ~ O ensino de 1 ~ e 2 ~ graus tem por objeti-gerações jovens para adaptá-Ias à vida social; vo geral proporcionar ao educando a formação neces- sária ao desenvolvimento de suas potencialidades co-trabalho sistematizado, se!etivo, orientador, pelo mo elemento de auto-realização, preparação para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania\". (Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971) 56 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 57 Mas, do outro lado do palco, intelectuais, educa- ções entre os homens é inerente e inseparável dores e estudantes fazem e refazem todos os dias de qualquer trabalho de produção, veiculação a crítica da prática da educação no Brasil. Eles ou discussão cultural. levantam questões e afirmam que, do Ministério \"E buscar todos os meios para que todo esse à escolinha, a educação nega no cotidiano o que trabalho floresça, para que toda essa força con· tida venha à tona, é função nossa, das entidades afirma na lei. Não M liberdade no país e a edu- estudantis. \"Criar condições para que, através da manifes· cação não tem tido papel algum nos últimos tação de todos, possamos perceber os anseios, anos para a sua conquista; não há igualdade entre as contradições de cada um, do homem e de toda os brasileiros e a educação consolida a estrutura a sociedade. classista que pesa sobre nós; não há nela nem \"Ampliar as idéias sobre o trabalho cultural. a consciência nem o fortalecimento dos nossos Abranger o homem, as suas relações, as discri· verdadeiros valores culturais. minações raciais, sexuais, etárias, a moral, o poder, a dominação. Um grupo de estudantes candidatos à direção \"Romper os limites, soltar a cabeça, as mãos, da UNE resume parte desta crítica e reclama os pés, o corpo para a realidade inquieta, questio- para a luta estudantil itens que, com alguma nadora. variação de linguagem, quase poderiam caber \"Destruir as regras do jogo. \"Subir no palco e invadir os camarins do mundo. nas \"leis do ensino\", Assumir o papel de agentes da História. Repre- sentar a vida.\" (Voz Ativa - Cultural) \"Os homens discriminados como negros, velhos, crianças, homossexuais, mulheres... descobrem Sem rodeios as \"leis do ensino\" no país garan- que, nestes anos todos de dominação, a força imensa que mexeu e transformou a face do planeta tem que: nasce de cada oprimido, de cada explorado, de cada homem, de cada mulher. Descobrem a origem \"Art. 41. A educação constitui dever da União, dos e o fim de toda a atividade humana: o próprio Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Mu- homem. nicípios, das empresas, da família e da comunidade \"Corações e mentes se abrem para uma nova em geral, que entrosarão reCursos e esforços para vida. Irrompe uma nova consciência. promovê-Ia e incentivá-Ia. \"A percepção -ampla e profunda das ações e rela- 58 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 59 Parágrafo único. Respondem, na forma da I~i, soli- \"O regime politico e o modelo socioeconômico dariamente com o Poder Público, pelo cumprimento impostos nos últimos anos à Nação Brasileira do preceito constitucional da obrigatoriedade escolar, produziram danos marcantes na qualidade do os pais ou responsáveis e os empregadores de toda ensino de nossas escolas, seja pela repressãq poli- natureza de que os mesmos sejam dependentes. tico-ideológica que se abateu sobre toda a comu- nidade, seja pelo caráter flagrantemente antidemo- Art. 42. O ensino nos diferentes graus será minis- crático de suas leis e decretos, que se refléte trado pelos poderes públicos e, respeitadas as leis que na elaboração e modificação ilegítimas de regi- o regulam, é livre à iniciativa particular. mentos e estatutos das Universidades. nA palitica educacional implantada levou à Art. 43. Os recursos públicos destinados à educa- progressiva desobrigação do Estado com o custeio ção serão aplicados preferencialmente na manuten- da Educação, e à expansão do ensino privado. ção e desenvolvimento do enSino oficiai, de modo que Assim, a educação está aberta à ação dos empre- se assegurem: sários do ensino, sujeita às leis da iniciativa privada, sendo negociada comO mercadoria entre as partes a) maior número possível de oportunidades edu- interessadas em vender e comprar, o que revela cacionais: o caráter elitista do atual processo educacional no Brasil.\" (Boletim Nacional das Associações b) a melhoria progressiva do ensino, o aperfeiçoa- de Docentes; n? 31 mento e a assistência ao magistério e aos ser- viços de educação; A fala do poder que constitui .a educação no c) o desenvolvimento c·,entífico e tecnológico\". país propõe o exercício de uma prática idealizada. (Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971) A fala dos praticantes da educação, os educadores, Mas,·se entre o pensado e o vivido há diferenças, faz então a critica dadistânciá que há entre a as pessoas do país -protestam e cobram, de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida: que promessa ea realidade. Faz mais, denuncia a alte- haja liberdade na educação e, através dela, que a ração para pior das próprias leis que dizem o que escola exista para todos e seja distribuída por igual entre todos. Assim, os docentes universitár~os é e como deve ser a Educaçaã no Brasil. reunidos num Encontro Nacional de Assoclaçoes escreveram o seguinte no documento final: Não há apenas idéias opostas ou iqel8s diferentes a respeito da Educação, sua essência:e seus fins. Há interesses econômicos, políticos qUe se proje- tam também sobre a Educação. Não é raro que 60 Carlos Rodrigues Brandão PESSOAS \"VERSUS\" SOCIEDADE: UM DILEMA aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educação esconda, no silêncio do que não diz, QUE OCULTA OUTROS os interesses que pessoas e grupos têm para os seus usos. Pois, do ponto de vista de quem a Quando alguém tenta explicar o que são estes controla, muitas vezes definir a educação e legislar nomes e o que eles misturam: educação, escola, sobre ela implica justamente ocultar a parcialidade ensino, a fala que explica pode pender para um destes interesses, ou seja, a realidade de que eles lado ou para o outro de uma velha discussão. servem a grupos, a classes sociais determinadas, Uma discussão ontem quente, hoje em dia inútil, e não tanto lia todos\", \"à Nação\", \"aos brasi· a não ser quando serve para revelar o que se leiros\". Do ponto de vista de quem responde esconde por detrás de pensar a educação desta por fazer a educação funcionar, parte do trabalhp maneira ou daquela. de pensá-Ia implica justamente desvendar o que faz com que a educação, na realidade, negue e De acordo com as idéias de alguns filósofos renegue o que oficialmente se afirma dela na lei e educadores, a educação é um meio pelo qual e na teoria. o homem (a pessoa, o ser humano, o indivíduo, a criança, etc.) desenvolve potencialidades biopsí· Mas a razão de desavenças é anterior e, mesmo quicas inatas, mas que não atingiriam a sua perfei· entre educadores, ela tem alguns fundamentos ção (o seu amadurecimento, o seu desenvolvi· na diferenca entre modos de compreender o que mento, etc.) sem a aprendizagem realizada através o ato de ~nsinar afinal é, o que o determina e, da educação. Pode até ser que haja formas próprias finalmente, a que e a quem ele serve. ••.-•• 62 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 63 de auto-educação, mas é de suas práticas interativas superior do ser humano, fisica e mentalmente (interpessoais), coletivas, que se está falando desenvolvido, livre e consciente, a Deus, tal como quando se escreve um livro sobre \"Filosofia da se manifesta no meio intelectual, emocional e Educação\" por exemplo_ Assim como a própria volitivo do homem\". (Herman Horse); sociedade é um corpo coletivo formado da indi- \"O fim da Educação é desenvolver em cada indi- vidualidade das pessoas que a compõem, e assim viduo toda a perfeição de que ele seja capaz.\" como o seu fim é a felicidade de seus membros (Kant); a quem todas as suas instituições devem servir, ,,{ toda a espécie de formação que surge da influência espiritual.\" (Krieck). assim também a educação, como idéia (a defi- Quando a Enciclopédia Brasileira de Moral e nição, a \"filosofia\"). deve ser pensada em nome Civismo, editada pelo Ministério de Educação e Cultura, define educação. pensando talvez da pessoa e, como instituição (a escola, o sistema expressar uma idéia consensual, ela de fato repete pedagógico) ou como prática (o ato de educar), o ponto de vista das definições anteriores. Ve- jamos: deve ser realizada' como um serviço coletivo que se presta a cada indivíduo, para que ele obtenha \"Educação. Do latim 'educere', que significa dela tudo o que precisa para se desenvolver extrair, tirar, desenvolver. Consiste, essencial- individualmente. mente, na formação do homem de caráter_ A educação é um processo vital, para o qual con- Muitas vezes, entre os que pensam assim, a correm forças naturais e espirituais, conjugadas pela ação consciente do educador e pela vontade dimensão subjetiva da educação é ressaltada livre do educando. Não pode, pois, ser confundida com o simples desenvolvimento ou crescimento e, não raro, toma conta de todo o espaço em dos seres vivos, nem com a mera adaptação do que o seu processo está sendo pensado. Não individuo ao meio. { atividade criadora, que visa importa considerar sob que. condições sociais a levar o ser humano a realizar as suas potencia- e através de que recursos e procedimentos exter- lidades fisicas, morais, espirituais e intelectuais. nos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o Não se reduz à preparação para fins exclusiva- ato de aprender do ponto de vista do que acontece do educando para dentro. \"A Educação não é mais do que o desenvolvimento consciente e livre das faculdades inatas do ho- mem.\" (Sciacca); \"A Educação é o process(iJ externo de adaptação 64 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 6S mente utilitários, como uma profissão, nem para e organizado, variável em extensão e profundidade desenvolvimento de caracteristicas parciais da para cada individuo e processado pelas riquezas personalidade, como um dom artistico, mas culturais.\" (Kerschensteiner); abrange o homem integral, em todos os aspectos \"É a influência deliberada e consciente exercida de seu corpo e de sua alma, ou seja, em toda a sobre o ser maleável e inculto, com o propósito extensão de sua vida sensivel, espiritual, inte- de formá-lo. \" (Cohn). lectual, moral, individual, doméstica e sociál, para elevá-Ia, regulá-Ia e aperfeiçoá-Ia. É processo Um pouco ma is perto dos que nos esperam continuo, que começa nas origens do ser humano do outro lado desta aparente história de \"ovo-e- e se estende até à morte. \" -galinha\", estão alguns estudiosos da educação que consideram que não só a pessoa, individual- Se voltarmos às duas definições de dicionários mente, mas alguma coisa indicada como \"a civili- brasileiros de algumas páginas atrás, veremos que zação\", \"o meio social\" Ou lia sociedade\" deve a da Enciclopédia concorda mais com a primeira ser o destino do homem educado: do que com a segunda. Uma enfatiza o que acon- tece da pessoa para dentro; a outra o que acontece \"Podemos agora definir de modo mais precioso dela para fora, em direção à sociedade onde vive o objeto da educação.- é guiar o homem no desen- e de que aprende. volvimento dinâmico, no curso do qual se consti- tuirá como pessoa humana - dotada das armas A meio caminho entre um lado e outro, algumas do conhecimento, do poder de julgar e das virtudes propostas lembram que aquela formação do morais - transmitindo-lhe ao mesmo tempo ser humano, segundo as sua~ próprias potencia- o patrimônio espiritual da nação e da civilização Iidades e através de seu próprio esforço, é o resul- às quais pertence e conservando a herança secular tado de um trabalho intencional, deliberado - das gerações.\" (Maritain); '~ Educação é a organização dos recursos bioló- aquilo que faz da educação a parte mais motivada gicos individuais, e das capacidades de compor- da endoculturação, como eu disse várias páginas tamento que tornam o indiv(duo adaptável ao seu meio fisico ou social. \" (Wil/iam James). atrás. Esta ação dirigida ao educando procede de um educador, de uma agência de educação, ou Procuremos refletir um pouco sobre tudo do que existe de educativo no meio sociocultural. \"Educação é um sentido de valorização individual 66 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 67 isto. Ao discutir os ideais da educação entre os der alguma coisa que se passa entre relações sociais gregos, Werner Jaeger lembra uma coisa muito de categorias de homens, que educa transmitindo importante. Não é sempre e não são todos os de uns a outros crenças e valores sociais, que serve povos e homens que consideram a educação tanto a igualar quanto a diferenciar as pessoas apenas como o que vimos até aqui. Na verdade de acordo com projetos de usos do saber situados esta é uma maneira de \"imaginar\" característica fora dos sonhos do educador, sem pensá-Ia dentro da nobreza de todos os povos em que ela existiu, dos mundos reais onde acontecem as trocas tam- em todos os tempos. E próprio de elites separadas bém reais entre os homens, verdadeiros homens do trabalho produtivo - ou dos intelectuais de carne e osso, situados de um lado e do outro que pensam o mundo por elas, e para elas .~ da educação? propor como educação a formação da persona- Iidade humana através do conselho sistemático Na verdade, quem descobriu que na prática e da direção espiritual. o \"fim da educação\" são os interesses da socie- dade, ou de grupos sociais determinados, através Esta crítica, do mesmo modo como algumas do saber que forma a consciência que pensa o feitas nos primeiros capítulos, aqui, procura mundo e qualifica o trabalho do homem educado, separar o que a educação é, de fato, dQ que as não foram filósofos do passado ou cientistas pessoas dizem dela. Jaeger não entra no mérito sociais de hoje. Esta é a maneira natural dos da veracidade de algumas idéias sobre a educação. povos primitivos, com quem estivemos até há Afinal, quem poderia negar que a educação deve pouco, tratarem a educação de suas crianças, servir ao homem, deve servir para educá·lo, torná-lo mesmo quando eles não sabem explicar isto com melhor, desenvolver nele tudo. o que tem, e tudo teorias compl icadas. a que tem direito? Quero insistir em que muitas vezes o que se critica em quem apresenta a edu- Os índios e os camponeses 'realizam, no modo cação, tal como ela apareceu até aqui, não é o como ensinam o que é importante para alguém que foi dito, mas o que ficou oculto: a) ou porque aprender, a consciência de que o saber que se quem disse não sabe de onde vem a educação, transmite de um ao outro deve servir de algum o que ela é em cada mundo rea\1 e o que faz; b) ou modo a todos. Mas o que Werner Jaeger diz é que porque quem disse sabe, mas explica a educação justamente nas formações sociais mais desenvol- justamente para negar a sua origem, os seus meca- vidas, onde por sobre o trabalho de muitos aparece nismos e os seus usos. Como é poss ível compreen- a elite dominante de uns poucos, surge com o tempo a idéia de uma educação que deve servir 68 Carlos Rodrigues Brandão o que é EducUfão 69a alguns homens individualmente, desvinculada dades\" que houve no Brasil até há pouco tempo são o melhor exemplo. Foi necessário que, a partirda idéia de que eles existem dentro de grupos de Roma, o Estado cristianizado e as elites de sua sociedade tomassem posse da mensagemou mundos sociais, e a seu serviço. Esta maneira cristã de militáncia e salvação, fazendo dela parte de sua ideologia. Tornando-a o repertório de sím-de compreender para que serve a educação é' bolos e valores pelos quais representavam,o mundo,decorrência de um \"esquecimento\", ou de uni representavam-se nele e, assim, legitimavam, com as palavras originalmente dirigidas a pobresocultamento de que, afinal, por mais louvável e deserdados, a sua posição de domínio econômico e de hegemonia pol ítica sobre eles.que seja, a educação é uma prática social entreoutras. Foi então preciso o advento de uma nobreza plenamente separada do trabalho produtivo e,Entre os gregos, vimos que a educação dos cada vez mais, até mesmo do trabalho político - entregue nas mãos de intelectuais mediadoresjovens nobres, que viviam do trabalho de escravos de seus interesses - para que surgisse uma classe de gente capaz de representar o mundo quaseestrangeiros e que, quando adultos, participavam fora dele. Esta elite ociosa e seus intelectuais sacerdotes, filósofos e artistas puderam imaginarda direção da cidade, procurava desenvolver como \"puras\" a vida, a arte, a ciência e até mesmo a educação.o corpo e a inteligência para formar homensfortes e sábios destinados à defesa e à pol ítica Ela começa a representar realmente alguma coisa (pensa, faz pensar, constrói sistemas deda comunidade. O que à distáncia poderia parecer pensamento) sem representar coisa alguma de real;a formação do ocioso era, na verdade, uma apren· sem conseguir explicar mais, para si própria e para as outras classes, o que são de fato os homens,dizagem feita durante um longo período de ócio o mundo e as relações concretas entre o mundo e os homens. Ora, é a partir deste universo denobre (separação do trabalho braçal), para a idéias puras que a educação afinal é pensada como o exercício do educador sobre a alma do educando,formação do homem político. A educação gregae, depois, a de Roma preocupavam-se em formaro cidadão e eram, portanto, educações da e paraa comunidade. 'No mundo ocidental, é depois do adventoe da difusão do Cristianismo que aparecem idéiassobre a educação que isolam o saber da sociedadee o submetem ao destino individual do cristão.O homem que aprende busca na sabedoria aperfeição que ajuda à salvação da alma. Mas nãoé o Cristianismo Primitivo quem sugere a \"edu-cação humanista\", de que os cursos de \"humani- 70 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 71 com o propósito de purificá-Ia do mal que existe em toda parte e não existem como realidade (como na ignorância do saber que conduz à salvação. vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso, como relações sociais) em parte Da Antigüidade decadente à Idade Média, da alguma. Idade Média ao Renascimento (um tempo da História rico em redefinições da idéia de edu- O que existe de fato são exigências sociais de cação) e do Renascimento à Idade Moderna, formação de tipos concretos de pessoas na e para foi preciso esperar muitos séculos para que de a sociedade. São, portanto, modos próprios de novo os brancos civilizados aprendessem a repen- educar - por isso, diferentes de uma cultura sar a educação como os índios. E uma nova para outra - necessários à vida e à reprodução maneira de definir a educação como uma prática da ordem de cada tipo de sociedade, em cada social cuja origem e destino são a sociedade e a momento de sua história. Não se trata de dizer cultura, foi formulada com muita clareza pelo que a educação tem, também, de modo abstrato sociólogo francês Emile Durkheim. e muito amplo, um compromisso com a \"cultura\", com a \"civilização\", ou que ela tem um vago Ele sacode a poeira de um assunto que só \"fim social\". O que ocorre é que ela é inevita- aos poucos foi recolocado na Europa de seu tempo, . velmente uma prática soCial que, por meio da nos últimos anos do século passado. Se o fim inculcação de tipos de saber, reproduz tipos de da educação é desenvolver no homem toda a sujeitos sociais. perfeição de que ele é capaz, que \"perfeição\" é esta? De onde é que ela procede? Quem a define \"A educação é a ação exercida pelas gerações e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeição adultas sobre as gerações que não se encontram são tão diversos de uma cultura para outra? E ainda preparadas para a vida social; tem por objeto falso imaginar uma educação que não parte da suscitar e desenvolver na criança certo número vida real: da vida tal como existe e do homem de estados flsicos, intelectuais e morais recla- tal como ele é. E falso pretender que a educação mados pela sociedade polltica no seu conjunto trabalhe o corpo e a inteligência de sujeitos soltos, e pelo meio especial a que a criança, particular- desancorados de seu contexto social na cabeça mente, se destina.\" (Durkheim) do filósofo e do educador, e que os aperfeiçoe para \"si próprios\", desenvolvendo neles o saber Entre muitas outras, esta é uma maneira socio- de valores e qualidades humanas tão idealmente lógica de compreender a educação. Depois de universais que apenas exjstem como imaginação 72 Carlos Rodrigues Brandão SOCIEDADE CONTRA ESTADO: CLASSE E EDUCAÇÃO Durkheim (que, por- sua vez, aprendeu isso com outros cientistas anteriores e, quem sabe?, com A idéia de que não existe coisa alguma de social alguns índios) inúmeros sociólogos, antropólogos, na educação; de que, como a arte, ela é \"pura\" filósofos e educadores começaram a formular e não deve ser corrompida por interesses e contro- pontos de vista semelhantes. Não é que eles tives· les sociais, pode ocultar o interesse pol ítico de sem a proposta de uma \"nova educação\", menos usar a educação como uma arma de controle, e abstrata e desancorada do que a \"Educação Huma- dizer que ela não tem nada a ver com isso _ Mas nista\" que criticavam. O que eles buscaram fazer o desvendamento de que a educação é uma prática foi esclarecer mais e mais como a sociedade e a social pode ser também feito numa direção ou cultura são e funcionam, na realidade. Como, noutra e, tal como vimos antes, pode se dividir portanto, a educação existe dentro delas e funciona em idéias opostas, situadas de um lado ou do sob a determinação de exigências, princípios e outro da questão. contro les socia is. Vamos por partes, portanto. Até aqui chegamos: ..••.., a educação é uma prática social (como a saúde pública, a comunicação social, o serviço militar) cujo fim é o -desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma cultura, para a formação 74 Carlos Rodrigues Brandâo o que é Educaçâo 75 de tipos de sUJeitos, de acordo com as necessi· ou duma profissão, quer se trate dum agregado dades e exigências de sua sociedade, em um mais vasto, como um grupo étnico ou um Es- momento da história de seu próprio desenvol- tado.\" Como outras práticas sociais constitu- vimento. Não procurei inventar uma nova defi- nição, porque delas acho que já há demais. tivas, a educação atua sobre a vida e o crescimento Procurei reunir as idéias correntes entre 'os que da sociedade ·em dois sentidos: 1) no desenvol- concebem a educação como Durkheim. vimento de suas forças produtivas; 2) no desen- volvimento de seus valores culturais. Por outro Assim, dos dois historiadores da educação de lado, o surgimento de tipos de educação e a sua cujos livros aprendi quase tudo o que disse sobre evolução dependem da presença de fatores sociais Grécia e Roma, um deles dirá o seguinte: determinantes- e do desenvolvimento deles, de suas transformações. A maneira como os homens \"Primeiro que tudo, a educação não é uma proprie- se organizam para produzir os bens com que dade individual, mas pertence por essência à comu- reproduzem a vida, a forma de ordem social que constroem para conviver, o modo como nidade. O caráter da comunidade imprime-se tipos diferentes de sujeitos ocupam diferentes em cada um dos seus membros e é no homem. .. posições sociais, tudo isso determina o repertório de idéias e o conjunto de normas com que uma muito mais que nos animais, fonte de toda a sociedade rege a sua vida. Determina também ação e de todo o componamento. Em nenhuma como e para quê este ou aquele tipo de educação parte o influxo da comunidade nos seus membros é pensado, criado e posto a funcionar. tem maior força que no esforço constante de Quando são transformados a \"maneira\", a educar, em conformidade com o seu próprio Hforma\" e o limado\" de que falei acima, tanto as idéias quanto as normas, os sistemas e os méto- sentir, cada nova geração.\" (Werner Jaeger). dos de um tipo de educação são modificados. Toda a estrutura da sociedade está fundada Ao fazer a sua crítica, IOmile Durkheim pergun- sobre códigos sociais de inter-relação entre os tava a pensadores da educação que considerava seus membros e entre eles e os de outras socie- ilustres, mas ingênuos: que \"perfeição\" é essa? dades. São costumes, princípios, regras de modos \"Mas, que se deve entender pelo termo perfeição?\" de ser às vezes fixados em leis escritas ou não. \"A Ele quer perguntar o seguinte: quem afinal esta- educação é, assim, o resultado da consciência belece os ideais e os princípios da educação? viva duma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, duma classe 76 Carlos Rodrigues Brandão r o que é Educação 77Uns e outros são universais? Existiram para todos não nos podemos separar sem vivas resistências, e que restringem as velocidades dos dissidentes. \"omsanpeoi.rvao,s' em todos os tempos, de uma mesma pelo fato de que e, sempre a m~m.aa \"essência do homem\"? Pode ou deve eXistir No entanto, o que é \"cada sociedade consi-uma espécie de \"educação universal\"? Durkheim derada em um momento determinado de seuconclui que não. E conclui que o ponto fraco desenvolvimento\"? E preciso reforçar algumasdas idéias pedagógicas que avaliou está na crença perguntas e fazer outras. Afinal, \"eada socie-ilusória (ilusória sempre, ou algumas vezes mal- dade\" existe e funciona como um todo orgânico-intensionada?) de que há, ou deveria haver, e harmônico, fundado sobre a igualdade entreuma \"educação ideal, perfeita, apropriada a todos todos e o consenso de todos? Dentro dela, emos homens, indistintamente\". posições especiais de privilégio, de hegemonia Até aí tudo bem. Assino embaixo. Mas será e de controle sobre outros, não existirão classesque não poderíamos fazer a Durkheim, leitor, sociais capazes de impor uma educação que fazema pergunta que ele fez aos outros? Quando fala criar e existir? Para seu uso próprio e por sobrede sociedade e, mesmo, de sociedades concretas, outras classes e grupos socia is (mais do que \"emdo que está falando? Que tipo de soc!edades, nome deles\"), não há, em determinadas socie-regidas por que modos e mecanismos Internos dades concretas, classes e grupos, às vezes muitode produção de bens, de serviços, de poder e minoritários, que resolvem por sua conta comode idéias entre os seus integrantes? Ele respon- será e para quê servirá a \"educação oficial\"?deria com segurança: \"cada uma\"; cada tipo de Ou, perguntando de outra maneira, já que cadasociedade real, histórica, cria .e impõe o tipO de tipo de sociedade - a \"tribal\" de a ínrdeivoosluGçãê~ do Brasil Central; a chinesa apóseducação de que necessita. E arremataria: socialista; a indiana do V século A.C.; a da\"Na verdade, porém, cada sociedade, considerada Alemanha medieval ou mesmo a de uma aldeiaem momento determinado de seu desenvolvi-mento, possui um sistema de educação q.ue ~e de camponeses, dentro dela; a portuguesa colon ia-impõe aos indivíduos de modo geralmente ITreSIS- lista do século XVII; a do Brasil \"pós-64\" -t(vel. E uma ilusão acreditar que podemos educarnossOs filhos como queremos. .. Há, pois, a cada inventa e faz a sua educação ou as suas educações,momento, um tipo regulador de educação do qual nos sistemas mais oficiais, mais organizados em projetos e programas pedagógicos, são pensados a partir das idéias fundamentais de todos os tipos r o78 que é Educação Carlos Rodrigues Brandão 79de pessoas? As mesmas escolas servem ao operário, não estar escrita de maneira direta nas \"leis doao engenheiro e ao capitalista imobiliário do mes- ensino\". Afinal, as leis quase sempre são escri-mo modo (como as leis brasileiras de ensino garan- tas por quem pensa que nem elas nem o mun-tem que sim e os professores críticos garantem qu~ do vão mudar um dia. Mas as suas conseqüên-não)? Uma educação ensina o saber da \"comunI- cias podem aparecer indiretamente. Por exem-dade nacional\" a todos, para os mesmos usos so- plo, na Lei 5.692, conhecida como Lei de Dire-ciais, e segundo os mesmos direitos individuais de trizes e Bases da Educação Nacional e já citadatodas as categorias de seus \"adultos educados\"? neste livro, os fins da educacão acrescentam a formação para o trabalho, ou enfatizam este Ora entre os que colocam \"sociedade e cultura\" objetivo do ato de ensinar, mais do que as leisno me'io da questão da educação, alguns pesquisam anteriores:e apenas reconhecem que ela é, na cultura, uma prática social de reprodução de categorias de saber \"O ensino de I? e 2? graus tem por objetivo ge-através da formação de tipos de sujeitos educados. Outros projetam e defendem a necessidade deste rai proporcionar ao educando a formação neces- ou daquele tipo de educação para este ou aquele sária ao desenvolvimento de suas potencialida- des como elemento de auto-realização, prepara-tipo de sociedade. . ção para o trabalho e para o exercício conscien-Entre estes últimos, um pensamento mUito te da cidadania\".corrente hoje em dia é o de que a educação é um Quando a idéia de educacão vem associada àdos principais meios de realização de mudança de adaptação para alguma coisa externa à pes- soa, e que se transforma, a proposta pode ser for-social ou, pelo menos, um dos recursos de adapta- mulada assim: \"Educação é preparação da crian- ça para uma civilização em mudança\" (Kilpatrik),ção das pessoas a um \"mul)do em mudança\". ou assim:Este modo de imaginar tende a ser dominante \"Em uma sociedade dinâmica como a nossa, só pode ser eficaz uma educação para a mudança. Es-atualmente. Mas ele não fazia sentido para gregos ta (educação! consiste na formação do espíritoe romanos e nem mesmo para os portugueses isento de todo dogmatismo, que capacite a pes-e missionários que tentaram educar nosSOS antepas-sados durante a Colônia. A idéia de que a educação não serve apenasà sociedade, ou à pessoa na sociedade, mas àmudança social e à formação conseqüente desujeitos e agentes na/da mudança social, pode . 80 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 81 soa para elevar·se acima da corrente dos acon· tecimentos, ao invés de arrastar·se por eles.\" (Mannheim) Um outro nome para a educação pode ser até mesmo sugerido, quando se constata, por exemplo, que o rumo e a veloCidade das transformações do mundo moderno exigem cada vez mais, de todos os homens, uma constante reciclagem de conhecimentos e uma contínua readaptação a um mundo que, afinal, ainda é sempre o mesmo e já é sempre um outro. \"A Educação Permanente é uma concepção dialé· tica da educação, como um duplo processo de aprofundamento, tanto da experiência pessoal quanto da vida social, que se traduz pela parti· cipação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que seja a etapa de existência que esteja vivendo. . .. O primeiro imperativo que deve preencher a Educação Permanente é a necessidade que todos nós temos de sempre aperfeiçoar a nossa formação profissional. Num mundo como o nosso, em que progridem ciência e suas aplicações tecnológicas cada dia mais, não se pode admitir que o homem se satisfaça durante toda a vida com o que aprendeu durante uns poucos anos, numa época em que estava profun· damente imaturo. Deve informar·se, documen· tar·se, aperfeiçoar a sua destreza, de maneira a 82 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 83 se tornar mestre da sua práxis. O dom(nio de formar a sociedade.\" (Ortega V Gasset) uma profissão não exclui o seu aperfeiçoamento. Associar \"educação\" a \"mudança\" não é novi- Ao contrário, será mestre quem continuar apren- dendo.\" (Pierre Furter) dade. Tem sido um costume desde pelo menos as primeiras décadas do século. Mas só um pouco Não será estranho que, aqui e ali, a proposta de uma educação apareça armada do poder de mais tarde, quando pol íticos e cientistas come- realizar, ela própria, o trabalho de transformar çaram a chamar a \"mudança\" de \"desenvolvi- a sociedade. Quando este tipo de proposta consi- mento\" (desenvolvimento social, socioeconômico, dera a educação como uma entre outras práticas nacional, regional, de comunidades, etc.), é que foi sociais cujo efeito sobre as pessoas cria condições lembrado que a educação deveria associar-se a necessárias para a realização de transformações ele também. Este foi o momento de uma transição indispensáveis, a sugestão é aceitável e rea lista. importante. Antes de se difundirem pelo mundo Nada se faz entre os homens sem a consciência idéias de mudança e de necessidade de mudança e o trabalho dos homens, e tudo o que tem o social, a educação era pensada como alguma coisa poder de alterar a qualidade da consciência e que preserva, que conserva, que resguarda justa- do trabalho, tem o poder de participar de sua mente de se mudarem, de se perderem, as tradi- práxis e de ser parte dela. No entanto, quando a ções, os costumes e os valores de \"um povo\", educação é imaginada - agora pelo utopista \"uma cultura\" ou \"uma civilização\". Antes de se social - como o único ou principal instrumento inventarem pol(ticas de desenvolvimento, a edu- de qualquer tipo de transformação de estruturas cação era prescrita como um direito da pessoa, políticas, econômicas ou culturais, sem que haja ou como uma exigência da sociedade, mas nunca a lembrança de que ela própria é determinada como um investimento. Um investimento como por estas estruturas, esta'11os diante de pequeno outros, como os de saúde, transporte e agricultura. acesso de \"utopismo pedagógico\". A educação deixa finalmente de ser vista como um privilégio, um direito apenas, e deixa também \"Se educaçaã é transformação de uma realidade, de ser percebida como um meio apenas de adapta- de acordo com uma idéia melhor que possu(mos, ção da pessoa à mudança que se faz sem ela, e e se a educação só pode ser de caráter social, que apenas a afeta depois de feita. resultará que pedagogia é a ciência de trans- Pessoas educadas (qualificadas como \"mão-de- -obra\" e motivadas enquanto \"sujeitos ·do proces- so\") são. agentes de mudança, promotores do 84 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 8S desenvolvimento, e é para torná-los, mais do que emprego de uma força de trabalho \"adequa- cultos, agentes, que a educação deve ser pensada damente qualificada\" misturam a educação antiga e programada. Não é raro que em alguns países da oficina com a da escola, reduzem o seu compro- se defenda então que as propostas básicas da misso aristocrata com a \"pura\" formação da educação venham quase prontas do Ministério personalidade e inscrevem o ato de educar entre do Planejamento para o da Educação. as práticas pol ítico-econômicas das \"arrancadas para o desenvolvimento\". Arrancadas que, nas \"A Educação é hoje considerada como um fator de sociedades capitalistas são de modo geral estra- mudanças: um dos principais instrumentos de inter- tégias de reorganização de toda a vida social, venção na realidade social com vistas a garantir a de acordo com projetos e interesses de reprodução evolução econômica e a evolução social e dar conti- do capital. De multiplicação dos ganhos das em- nuidade à mudança no sentido desejado. .. presas capitalistas. \"Salienta-se, no entanto, um aspecto em que a educação representa investimento a curto prazo: Esta é a crítica que tem sido feita por cientistas é quando ela desempenha função de forma- e educadores que, sem deixarem de reconhecer ção de mão-de-obra. Ao lado da formação da com Durkheim que a educação existe na socie- personalidade, da preparação necessária de cada dade, dentro da cultura, procuram compreender cidadão para assumir as obrigações sociais e polf- como ela existe a í e sob que condições é prati- ticas, a educação desempenha a tarefa de preparar para o trabalho, e influi substancialmente na cada contra o homem ou a seu favor. criação de novos quadros de mão-de-obra com Ora, às veses mais útil do que comprar e discu- capacidades técnicas adequadas' aos novos proces- sos produtivos que o desenvolvimento introduz tir o conteúdo de estilos diferentes de definições criando novos mercados de trabalho.\" (SAGMACS ou propostas de tipos de educação, é procurar - educação e planejamento) ver de onde eles vêm. Quem diz, em nome de 111 nvestimento\", \"mão-de-obra\", Ilpreparação quem e para quê? para o trabalho\", \"capacidades técnicas ade- A variação da maneira como o triângulo edu- quadas\". .. são os nomes que denunciam o momento em que os interesses pol íticos de cação-ensino-escola tem sido formulado no Brasil pelas pessoas que possuam o poder direto ou indireto de determinar como ele vai existir, dá o que pensar. Até há alguns anos atrás o universo da educação estava dividido por aqui tal como na Grécia e em Roma, há muitos séculos. As 86 Carlos Rodrigues Brandiio o que é Educação 87 crianças filhas de pais \"das boas famílias\" iam porque \"sem cultura\", de acordo com a visão às escolas, mesmo que por poucos anos. As escolas das elites, mas sábios do saber que faz o trabalho . eram particulares, \"abertas\" por professores produtivo, fizeram a riqueza e as obras do pa ís avulsos ou pelas ordens religiosas. Eram pagas, e de cada uma de suas cidades. algumas custavam caro e as poucas crianças pobres que aprendiam \"de graça\" aprendiam nos arfa· \"Mestre carapina, conhecido na história da cidade, natos ou nos anexos dos colégios religiosos. queria dizer carpinteiro, mas sua atividade não se circunscrevia apenas a este of/cio. Eram enge- Os escravos e os filhos dos deserdados da for· nheiros práticos: estes escravos calculavam a tuna - lavradores livres, artistas pobres, artesãos - construção de um sobrado fi o construiam. Isto aprendiam \"no ofício\". Rara vez um deles alisava ocorreu até a metade do século passado com com o traseiro magro o banco de madeira de sobrados que chegam até nossos dias e foram alguma eséola, razão por que o país tinha, até há construidos por esteS engenheiros (toda a parte poucos anos, um dos maiores índices de analfa- de taipa, armação do telhado de grande dimen- betismo em.todo o mundo. são), sendo que os engenheiros graduados só chegavam na fase final para terminar a construção. Havia, portanto, duas educações em curso. Uma A velha Igreja do Carmo foi feita só por 'mestres era a da escola, destinada aos filhos das \"gentes carapinas', como muitos outros prédios cujos de bem\". Ali, fora o ensino de primeiras letras, ha- construtores podem ser identificados ainda hoje. \" via cursos, sempre não profissionalizantes, que en- (Celso Maria de Mello Pupo, sobre a cidade de sinavam Latim, Grego, Literatura e Música para os Campinas, em São Paulo) que chegavam até depois dos estudos primários. Mesmo nas três primeiras décadas deste século, Nas primeiras décadas deste século, pol íticos até entre os mais ricos eram raras as pessoas que e educadores liberais trouxeram idéias novas para faziam algum curso superior. Havia poucas facul- a educação no país. Entre outras coisas eles come- dades isoladas e a nossa universidade mais anti- ga, a de São Paulo, só tem 60 anos. çaram a falar de uma escola mais dirigida à vida Outra era a da oficina, misturada com a da de todo dia e mais estendida a todas as pessoas, vida, destinada pelos ossos do ofício aos filhos ricas ou pobres. A \"luta pela democratização \"da pobreza\". Analfabetos \"de pai e mãe\", mas do ensino\" resultou na escola pública. Resultou excelentes lavradores, mineradores, pedreiros, no reconhecimento pai ítico do direito de estudar carapinas, ourives, ferreiros, estes homens \"rudes\ ,"88 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 89 para todas as pessoas, através de escolas gratuitas, Como tipos de intelectuais (educadores, filó' de ensino leigo, oferecido peio governo. safas, legisladores, cientistas sociais) constitu ídos e sustentados, direta ou indiretamente, pelos novos Há quem diga que isto foi o resultado de um donos do poder, quase todos os militantes de confronto entre \"liberais\" e \"conservadores\" uma nova educação souberam lutar com entu· na pol(tica, um confronto que invadiu a questão siasmo por torná·la mais aberta e democrática da educação. De um lado ficaram os que falavam por dentro e por fora, sem saber muitas vezes em nome das elites agrárias tradicionalistas e que as suas idéias apenas consolidavam outros acostumadas a padrões ultrapassados de dom(nio projetos pai (ticos para a educação. Eles subs· pai (tico. De outro lado ficaram os que falavam titu íam outros intelectuais, aqueles cujas idéias em nome das novas elites capitalistas, atentas pedagógicas serviram aos interesses pol(ticos a novos tempos e problemas que batiam nas portas do mundo e do Brasil. No entanto, o que dominantes de outros tempos, e que não tinham eu quero ressaltar é que esses pol (ticos e educa· mais lugar nem poder, porque eram as idéias dores liberais - alguns deles sem dúvida lúcidos que traduziam os interesses de preservação de e bem·intencionados - ao pregarem idéias de um tipo de ordem social inadequada no Brasil, uma educação voltada para a vida, a mudança, diante das mudanças aos poucos havidas nas o progresso, a democracia, traduziam ao mesmo relações de produção de bens e de poder. tempo o imaginário democrático de seu tempo e, por outro lado, o projeto polltico que servia Por uma porta os filhos dos pobres começam aos interesses de novos donos do poder e da eco· a entrar nas escolas públicas. Por outra o pa ís nomia. E, tal como aconteceu em outros setores ingressa enfim em tempos de transferência do da sociedade brasileira, as i\"novações propostas capital da agricultura para a indústria, e de poder para a educação propiciaram novos tipos de usos e pessoas do campo para a cidade. Então pai íticos pai (ticos de todo o aparato pedagógico, adaptan· e educadores começam a chamar a atenção para a do·o à realidade de novos tempos e a novos mode· evidência de que, mesmo nas escolas públ icas, o los de controle do exercício da cidadania e de ensino escolar era inadequado. Não servia para preparação de \"quadros\" qualificados para o preparar o cidadão para a vida nem para preparar trabalho das fábricas. Indústrias que primeiro o trabalhador para o trabalho, em qualquer um o capital brasileiro e, depois, o internacional, dos seus níveis. Quando as exigências de ordem comeÇaram a semear pelo país. e trabalho do capital redefiniram aos poucos a vida e o trabalho, a idéia de que, além de uma 90 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 91 vaga \"personalidade do educando\", a educação nicas\". lO claro que esta oposição real, que existe tinha compromissos para com a vida social e o sob uma unidade proclamada, não é oficialmente trabalho produtivo passou a figurar entre leis aceita. Não é reconhecida como existente e deter· e projetos de escolarização no país. minante do sistema pedagógico francês pelos seus ideólogos. Mas é através do que separa e de como Este progressivo ingresso da criança pobre separa quem entra e quem sai das escolas que a nas salas das escolas, associado a uma redefinição educação capitalista cumpre a sua função de do ensino escolar em direção ao trabalho produ· reproduzir e consagrar a desigualdade, afirmando tivo, não fez mais do que trazer para dentro que existe como um instrumento democrático dos muros do colégio a divisão anterior entre o de produção da igualdade social através do acesso aprender·na·oficina para o trabalho subalterno ao saber. e o aprender·na·escola para o trabalho dominante. Uma rede é a de tipo PP, primário·profissional, Algumas pesquisas de sociólogos americanos, limite dos estudos para os filhos do povo desti· realizadas desde a década de 50, confirmam que, nados, também por ela, aos padrões do trabalho mesmo nos Estados Unidos, o filho do operário operário. Outra rede é a de tipo 55, secundário· estuda para ser o operário que acaba sendo, e ·superior, destinada aos filhos dos ricos, enviados, o filho do médico para ser médico ou engenheiro. também por ela, às pontes·de·comando do trabalho Apesar de ser, também lá, um projeto teórico de reprodução da igualdade, a educação da socie· \"superior\", dade capitalista avançada reproduz na moita e consagra a desigualdade social, sem esquecer Então, esta educação que incorpora o povo de fazer alarde em festa de formatura quando ao ensino oficial, que arranca o menino proletário algum filho de operário consegue sair formado da oficina e o deseja pelo menos por alguns anos da Faculdade de Engenharia. na escola, será a educação que serve a ele? Que serve pelo menos também a ele? Em um dos mais importantes estudos elabora- dos sobre o assunto, dois franceses, Christian Bau- Este é o momento de voltarmos juntos, leitor, delot e Roger Establet, demonstram que a escola a algumas páginas do começo desta conversa capitalista francesa superpõe ao sistema oficial de sobre ensinar·e·aprender. O tipo de formação ensino - aquele que é proclamado como demo- social onde nós vivemos não é como o de uma craticamente aberto a todos - uma divisão entre pequena aldeia tribal, embora haja muitas delas duas redes \"heterogêneas... opostas... antagô- em nosso mundo. Não é sequer, como na Grécia, de onde saiu o modelo de nossa educação, o 92 Carlos ROdrigues Brandão o que é EduCtlção 93 lugar da polís, onde pelo menos nos melhores inclusive por meio de dados estatísticos. Ela não tempos vigora a democracia de todos os cidadãos vale só para um país de economia pobre e depen- livres, mesmo que ela seja sustentada pelo traba- dente como o nosso, situado, como diriam os lho dos escravos. Vivemos aqui, hoje, dentro de economistas, \"na periferia do sistema capitalista\". uma ordem social regida por um sistema amplo Vale também para os países de economia desen- e muito complexo de relações de produção entre volvida, os da \"metrópole\" do sistema. tipos de meios e produtores, que se costuma chamar de modo de produção capitalista. Embora Em um estudo sobre \"a educação como processo possa ser fatigante e parecer agressivo, é muito social\", o norte-americano Wilbur Brookover pouco real pensar, seja a educação, seja quase concluiu que em seu país a educação: a) tem o seu tudo o mais que acontece por aqui, sem levar controle situado em mãos \"de elementos conserva- em conta que são tipos de trocas regidos pela dores da sociedade\"; b) é dirigida de modo a oposição entre o capital e o trabalho. impedir mudanças significativas, \"exceto nas áreas em que os grupos dominantes desejam a mudança\"; Ora, por toda parte, em sociedades como a nossa, grupos nacionais ou estrangeiros, que c) na melhor das hipóteses, pode atuar como repartem entre si a propriedade e o controle um agente interno de mudanças sociais, não como direto dos meios de produção dos bens de que um agente externo, ou seja, capaz de provocar se nutrem as pessoas e seu mundo, concentram entre si o poder de constituírem, em seu proveito, por sua conta mudanças significativas; d) não é o tipo de Estado que, por sua vez, reproduz ser- acreditada como criadora de um possível \"mundo viços e normas de segurança, de propriedade, melhor\", a não ser quando \"outras forças também de direito, de saúde e até de educação, serviços operam como agências de mudanças\". e normas que servem em conjunto para manter coesa e, se possível, em relativa paz a ordem Dentro de um tipo de ordem social assim divi- social de que se nutre o capital, ou seja, aquela dida, a educação (como tantas outras coisas da ordem em que ele se multiplica. vida e dos sonhos de todos os homens) perde a sua dimensão de um bem de uso e ganha a de Esta é uma afirmação comum hoje em dia entre 'um bem de troca. Ela não vale mais pelo que é os que pensam sobre a educação sem se iludirem e pelo que representa para as pessoas. Não é mais com as condições de sua existência real. 10 também um dom do fazer que existe no ensinar o saber uma crítica que se confirma a todo momento, que é um outro dom de todos e que a todos serve. A educação vale como um bem de mercado, e por isso é paga e às vezes custa caro. Vale como 94 Carlos Rodrigues Brandão o que é Educação 9S um instrumento cujos segredos se programam A autoridade do mestre na educação dita democrática nos gabinetes onde estão os emissários dos interme- diários dos interesses pol,ticos postos sobre a edu- cação. Esta é a sua dupla dimensão de valor capitalista: a) valer como alguma coisa cuja posse se detém para uso próprio ou ,de grupos reduzidos, que se vende e compra; b) valer como um instru- mento de controle das pessoas, das classes sociais subalternas, pelo poder de difusão das idéias de quem controla o seu exercicio. Então, o que parece inacreditável faz parte da própria lógica do modo como a. educação existe na sociedade desiguat. Quando. pensada como uma \"filosofia\" ou uma. \"política de edu- cação\", ela se apresenta juridiCamente como um bem de todos, de que o· estado assume a responsabilidade de distribuição em nome de todos. Mas sequer as pessoas a quem a educação serve, em principio, são de algum modo consul- tadas sobre como ela deveria ser. A educação que chega à favela, chega prqnta na escola, no livro e na lição. Os pais favelados dos alunos são convocados a matricular os seus filhos, como se aquilo fosse um posto de recrutamento. Não são convocados, por exemplo, a debaterem com os professores como eles pensam que a escola da favela poderia ser uma verdadeira agência de serviços à sua gente. Mesmo que fossem, as suas idéias por certo não sairiam do caderno de anotações da diretoria. Mas não são só os 96 Carlos Rodrigues Brandíio o qUe é Educação 97 pais e as crianças faveladas os que não têm direitos Por isso há \"leis do ensino\" que afirmam com de pensa r na educação da favela. Mesmo os cida- dãos ricos e letrados não tem poder algum sobre as fé de oficio os valores de uma suposta democracia idéias que determinam a educação de seus filhos, e a imensa massa dos próprio educadores da linha feita através da educação. e que é a alma dos de frente do trabalho pedagógico (professores, diretores de escola, orientadores, supervisores conteúdos de seu ensino. Estas afirmações teóricas educacionais) têm o poder do exercício da repro- dução das idéias prontas sobre a educação e dos ocultam o fato real de q.ue o exercício desta conteúdos impostos à educação. Mas não têm nem o direito nem o poder de participarem das decisões educação consagra a deSigualdade que deveria pol ítico-pedagógicas sobre a educação que prati- cam. Elas estão reservadas aos donos do poder destruir. Afirmar como idéia o que nega como pol ítico e às pequenas confrarias de intelectuais constituídas como seus porta-vozes pedagógicos. prática é o que move o mecanismo da educacão Poucos espaços de trabalho social são hoje, tão pouco comunitários e democratizados entre autoritária na sociedade desigual. . os seus diferentes praticantes, como a educação. • •fi • • • E, em qualquer tipo de ordem social, quanto mais a educação autoritária e classicista é expressão de um poder autoritário de üm~ sociedade classista, tanto mais ela procura apresentar-se como uma prática humanamente legitima, exercida em nome de. leis legítimas e \"para o bem de todos\". A ideologia que fala através das leis, decretos e projetos da educação autoritária nega acima de tudo que ela seja uma pedagogia contra o ho- mem - contra a verdadeira liberdade do homem através do saber, liberdade que existe através da verdadeira igualdade entre os homens. o que é Educação 99 A ESPERANÇA NA EDUCAÇÃO é inevitável\". Uma outra, melhor seria: \"porque a educação sobrevive aos sistemas e, se em um Se a educação é determinada fora do poder ela serve à reprodução da desigualdade e à difusãode controle comunitário dos seus praticantes, de idéias que legitimam a opressão, em outro podeeducandos e educadores diretos, por que parti· seryir à criação da igualdade entre os homenscipar dela, da educação que existe no sistema e à pregação da liberdade\". Uma outra ainda pode·escolar criado e controlado por um sistema pol í· ria ser: \"porque a educação existe de mais modostico dominante? Se na sociedade desigual ela do que se pensa e, aqui mesmo, alguns delesreproduz e consagra a desigualdade social, deixan· podem servir ao trabalho de construir um outrodo no limite inferior de seu mundo os que são para tipo de mundo\".ficar no limite inferior do mundo do trabalho(os operários e filhos de operários), e permitindo \"Reiventar a educação\" é uma expressão caraque minorias reduzidas cheguem ao seu limite a Paulo Freire e aos seus companheiros do Institutosuperior, por que acreditar ainda na educação? de Desenvolvimento e Ação Cultural. De algumSe ela pensa e faz pensarem o oposto do que é, modo eles a aprenderam na África, trabalhandona prática do seu dia a dia, por que não forçar como educadores junto a educadores de paísesO poder de pensar e colocar em prática uma outra como a Guiné·Bissau e as ilhas de São Toméeducação? e Príncipe, que se haviam tornado independentes de Portugal e tratavam de reinventar, mais do que A resposta mais simples é: \"porque a educação só a educação, a sua própria vida social. O mais importante nesta palavra, \"reinventar\", é a idéia de que a educação é uma invenção humana e, se em algum lugar foi feita um dia de um modo, pode ser mais adiante refeita de outro, diferente, diverso, até oposto. Muitas vezes um dos esforços mais persistentes em Paulo Freire é um dos menos lembrados. Ao fazer a crítica da educação capi· talista, que ora chamou também de \"educação bancária\", ora de \"educação do opressor\", ele sempre quis desarmá·la da idéia de que ela é maior do que o homem. De que as pessoas são um pro·