Artigos Assinados • • https://doi.org/10.1590/S0103-40141990000100004 copiar Michel Debrun Sobre o autor
ARTIGOS ASSINADOS A identidade nacional brasileira Michel Debrun Apresentamos a seguir os principais temas e articulações de um trabalho em andamento sobre a identidade nacional brasileira: 1. O que é ser brasileiro? Será mesmo que faz sentido falar desse ser? É fácil afirmar a existência da Nação brasileira, se atentarmos apenas para os aspectos geográficos, jurídicos ou diplomáticos. E definir a identidade brasileira como o atributo, a etiqueta do conjunto populacional, ou dos indivíduos, que vivem dentro desse quadro formal. Mas parece que Nação e identidade nacional exigem algo mais. Como, por exemplo, um consenso em torno de certos valores, e uma diferença entre ele e outros tipos de consenso, ou entre eles e outros consensos nacionais. Ora, desde os fins do século XIX, muitos têm duvidado seja da coesão brasileira seja da diferença específica do Brasil. 2. Hoje essas dúvidas se acham reforçadas, face a três categorias de indagações:
3. Tais indagações têm suscitado dois tipos de respostas:
É a indagações desse tipo que procuravam responder os "Ensaios sobre o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira", no início da atual década. Tentemos articular e sistematizar as teses difusas nestes "Ensaios":
As teses dos "Ensaios..." (ver nota ) estão discutidas ao longo do nosso trabalho. 4. Endossamos em grande parte a análise crítica do nacional-popular, tal como ele se apresenta em certos aspectos da atualidade brasileira, isto é, como unidade ilusória e, portanto, como ideologia dele próprio. Crítica parecida já estava presente no trabalho inovador de Carlos Guilherme Mota sobre " A Ideologia da Cultura Brasileira". Nos dois casos trata-se de desmistificar, ou desarticular, entidades (a cultura brasileira ou o nacional-popular) que se oferecem como evidentes, como não-suscetíveis de serem questionadas. Fazemos, todavia, três tipos de ressalvas às análises críticas dos "Ensaios...":
5. A idéia de um nacional-popular cultural — e de uma identidade nacional nele baseada — é, aliás, um tema familiar para toda uma tradição antropológica e/ou literária. Procuram circunscrever uma brasilidade. Mas, a partir dela, vão além. O que lhes interessa, sobremaneira, é que a cultura, através dos seus portadores, se torne auto-referencial — sem se fechar numa torre de marfim, ao contrário — e vise seu próprio alargamento e aprofundamento. Nisso consiste sua universalidade. Não há, é claro, imperativos categóricos, que seriam do tipo devemos todos desfrutar o Carnaval; nem mesmo se pode decretar "devemos praticar um anticarnaval", um carnaval da miséria, como aquele encenado por Joãozinho Trinta. Tais imperativos representariam uma invasão da esfera sociocultural por atitudes éticas ou ético-cívico-políticas. Mas parece que a idéia de esfera pública — com valores a serem protegidos ou promovidos, pelo desejo senão por obrigação — está presente no campo cultural também. É esse aspecto que aparece na interpretação que Maria Isaura Pereira de Queiroz dá do Carnaval. Este é visto, em certas das suas manifestações, como uma forma de auto-afirmação popular, que concerne potencialmente a muito mais gente do que o pequeno grupo diretamente envolvido. E também é algo essencialmente cultural. Pode ser, é verdade, que haja nisso uma forma de protesto contra a impossibilidade de uma participação política efetiva, em particular em nível nacional. Mas, mesmo nesse caso, isso não significa que o Carnaval seja praticado como uma atividade política de segunda categoria, ou disfarçada, ou indireta. Simplesmente, face às dificuldades presentes para participar de uma vida política autêntica, se optou por outra forma de vida, em que se torna possível uma experiência comunitária, que desejam por sua vez estender em nível nacional. Em Roberto da Matta encontra-se uma idéia parecida: com o Carnaval presenciamos o advento de uma comunidade efêmera, mas real e original, que permite agüentar ou compensar até certo ponto as agruras da sociedade, caracterizada, esta última, por separações, antagonismos e hierarquias. Outras experiências — e também reflexões sobre essas experiências, e reiterações das experiências a partir das reflexões — visam aprofundar outra vertente da identidade nacional cultural. Menos seu aspecto comunitário, de comunhão, do que sua diferença, sua especificidade. Não forçosamente como quer o nacionalismo ingênuo, pela recuperação e expansão de uma cultura originária que teria, até o momento, ficado soterrada ou marginalizada. Nem pela constituição, em seu favor, de uma reserva de mercado. Mas pela multiplicação das interações entre a cultura cosmopolita (ou portuguesa, francesa, anglo-saxônica) que vem se reiterando desde os primórdios do Brasil (e que talvez mereça melhor a denominação de originária), e uma cultura endógena que, em seguida, se firmou aos poucos. Pode-se conceber, entre o pólo exógeno/endógeno e o pólo endógeno inúmeras modalidades de empréstimos, alianças, antagonismos. Pode continuar também havendo interpretações recíprocas, de cada pólo pelo outro — um sendo visto como residual e folclórico, o outro como artificial, fora de lugar. O essencial, porém, aos olhos dos que defendem a idéia de uma dualidade básica da cultura brasileira, é que ficam excluídas, seja a fusão harmoniosa dos dois pólos, seja a expulsão de um deles pelo outro, seja a sua coexistência pacífica mas estanque. A propósito deste último ponto: não há, como em outros lugares, duas culturas, uma para o povo, outra para as elites, embora possam se desenvolver acentuações num ou noutro sentido; cada brasileiro seria portador, ao menos em potencial, da mesma dualidade — que, aliás, foi explorada, em nível auto-referencial, por obras como as de Mário e Oswald de Andrade, e pelo Tropicalismo. É nessa igualdade tensa que residiria — e sem perspectiva de superação a curto e médio prazos — a identidade nacional cultural brasileira. Há também a possibilidade de uma interação generalizada entre regiões, etnias, classes. E isso interessa tanto ao aspecto comunitário como ao aspecto da diferença da identidade cultural. Não há mais, apenas, generalização do Carnaval, do samba, do futebol — por justaposição, por exemplo, de inúmeros microcarnavais através da imensidão brasileira — mas a transformação, mediada pela TV, do Brasil em imenso auto-espetáculo. A nova transparência do espaço permite a todos presenciarem todos, pularem com todos. Parece que o privatismo da sociedade brasileira não é, nessa área, incompatível com a expansão do universal, da esfera pública. Cada um pode, ficando no seu lugar, participar de tudo com todos. Não há a dialética tensa de público e de privado, que vigora, ou deveria vigorar, na área política. Mas uma transição e uma oscilação suaves entre os dois pólos. Ocorre algo parecido com a novela. Esta, hoje, vale menos pelo seu conteúdo, que pode ir de conservador a vagamente progressista, do que pelo fato de pôr todos em contato com todos: para onde quer que eu vá, sempre encontrarei pessoas para narrar ou comentar o capítulo da véspera. É aqui, talvez, que Mac Luhan tem razão: o meio é a mensagem. Mas há uma contrapartida: o conteúdo de uma novela, mesmo quando corrosivo, não mobiliza ninguém — pelo menos quando a participação na televisão se limita a si própria (o que, hoje, é a regra), não se inserindo num quadro mais amplo de práticas sociopolíticas. 6. A partir desses vários pontos é possível esboçar três teses, que estamos desenvolvendo no momento:
7. Para tentar entender a gênese da dualidade entre identidade política e identidade cultural, e avaliar as possibilidades da sua evolução, temos utilizado, como fio condutor, a "Ideologia da Realidade Brasileira". Entende-se por isso o conjunto das posições que, a partir de uma concepção global da sociedade brasileira e da sua história, procuram tirar ilações no que diz respeito à especificidade e ao destino dessa sociedade, da sua política da sua cultura. O termo ideologia não é utilizado num sentido pejorativo. Mesmo porque constam, no elenco dos trabalhos a serem analisados, obras de consagrada reputação científica. A intenção é tão-somente indicar que esses trabalhos se situam numa perspectiva engajada, seja ela explícita ou não. A escolha desse conjunto ideológico, como fonte principal de reflexão sobre a identidade nacional brasileira, se prende ao fato de que, na maioria dos autores em foco, manifesta-se uma preocupação dominante pela constituição ou pela preservação da Nação brasileira; e pelos obstáculos, bloqueios, meios, caminhos que podem dificultar ou facilitar a consecução desses objetivos. Tudo isso dentro de uma perspectiva histórica, que pretende apontar fenômenos de longa duração, para além da diversidade das conjunturas. Espera-se do estudo da "Ideologia da Realidade Brasileira" três fontes de informação:
8. O trabalho comporta também um capítulo teórico, em que se pretende definir:
Michel Debrun, professor de Ciência Política da UNICAMP e membro da área de concentração de História das Ideologias e Mentalidades do IEA. A identidade nacional brasileira não é uma só. As suas dimensões política e cultural, emparticular, não têm caminhado juntas. Nem remetem a um mesmo espírito... (
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