Como a ruptura entre natureza e cultura e entre tradição e modernidade impactam a sociologia

23De l’abduction crátive comme méthode sémio-anthropologique...

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 13-22, jan./abr. 2005

A RELAÇÃO CORPO–NATUREZA NA

MODERNIDADE1

Dulce Suassuna*

Jônatas Barros**

Aldo Azevedo***

Juarez Sampaio****

Resumo: O trabalho apresenta uma reflexão teórica sobre o significado

da relação corpo-natureza tomando como contexto a modernidade.

O debate teórico proposto subsidia-se na teoria social, seguindo

como referencial o pensamento weberiano no que concerne à sua

visão sobre a modernidade. Ampara-se em Habermas para mostrar

que na modernidade o quadro configurado se constrói por meio de

rupturas que se processam como conseqüências patológicas do

mundo natural, momento em que se permite discutir a relação homem

(corpo) e meio ambiente (natureza). A recuperação da contribuição

de Habermas ocorreu por meio do texto clássico Teoria da Ação

Comunicativa e da leitura de Goldblatt no seu livro

Teoria Social e Ambiente. Além desses autores, outros são utilizados

dentro dessa linha de pensamento, entretanto, pretendendo-se fugir

da visão instrumentalista, buscou-se em Mauss, por meio da teoria

do fato social total e da noção de técnicas corporais, um esforço

teórico para uma possível justificativa da perspectiva da

interdisciplinaridade entre o campo disciplinar das Ciências Sociais

e a Educação Física e, por conseguinte, do desporto.

Palavras-chave: corpo, natureza, modernidade.

* Professora da FEF/UnB. Doutora em Sociologia.

** Professor da FEF/UnB. Doutor em Educação Física.

*** Professor da FEF/UnB. Doutor em Sociologia.

****Professor da SEDF/UnB. Especialista em Educação Física.

Artigo recebido em 3 set. 2004; aprovado em 29 mar. 2005.

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

24 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Introdução

A modernidade ocidental, revestida de uma crescente

racionalização instrumental de controle da natureza, cindiu o homem

em corpo e espírito, assegurando-lhe concretude ao físico/corpóreo.

Essa cisão significou o desenlace simbólico de valores agregados ao

homem por meio do inexplicável. Buscou-se, portanto, tudo explicar

por meio do pragmatismo e, até certo ponto, do ceticismo. Entretanto,

o controle sobre a natureza na verdade significou o seu descontrole,

isto é, aperfeiçoaram-se métodos e técnicas no acelerado processo

de industrialização, mas tal instrumental não possibilitou ao homem a

compreensão de sua relação consigo mesmo e com a natureza.

O presente trabalho pretende construir uma reflexão teórica

sobre o significado da relação corpo-natureza tomando como contexto

a modernidade. A modernidade é entendida como produtora de um

discurso instrumental que tem como centro o dualismo (corpo-

natureza) e, por conseguinte, a razão instrumental. O debate teórico

proposto subsidia-se na teoria social, seguindo como referencial teórico

o pensamento weberiano no que concerne à sua visão sobre

a modernidade. Ampara-se em Habermas para mostrar

que, na modernidade, o quadro configurado se constrói por meio de

rupturas, que se processam como conseqüências patológicas do

mundo natural, momento em que se permite discutir a relação homem

(corpo) e meio ambiente (natureza). A recuperação da contribuição

de Habermas (1987) ocorreu por meio do texto clássico Teoria da

Ação Comunicativa e da leitura de Goldblatt (1996), no seu livro

Teoria Social e Ambiente. Além desses dois autores, outros são

utilizados dentro dessa linha de pensamento, entretanto, pretendendo-

se fugir da visão instrumentalista do discurso moderno, buscou-se

amparo na teoria do fato social total de Mauss (1974, 2003), que é

vista como um esforço teórico para uma possível justificativa da

perspectiva de interdisciplinaridade entre os campos das Ciências

Sociais e da Educação Física. Ainda dentro de uma perspectiva

antropológica, recorreu-se a Le Breton (2003) procurando situar sua

preocupação sobre a noção de corpo assumida pelo projeto moderno,

inserida no debate entre as ciências médicas (da saúde), as tecnologias

e as ciências sociais.

25A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Diante deste esforço de interdisciplinaridade entre Ciências

Sociais e Educação Física, propõe-se o estudo dos esportes de

aventura como tema que permite o encontro entre corpo-natureza.

Neste sentido, recuperam-se, por meio de Ferrando et al. (2002),

alguns argumentos de Machado (1971). Tais argumentos defendem

a idéia de que a atividade física na natureza, realizada desde a infância,

pode permitir ao homem não só um maior conhecimento sobre a

natureza, mas, também, sobre si mesmo (entendendo o homem como

ser integrante da natureza).

O discurso moderno: a natureza sob controle

A modernidade representa o cenário que propaga o discurso

por meio do qual os vínculos que sustentavam a relação corpo e

natureza sofreram uma cisão. Com isto sugere-se que, no quadro

moderno, houve um redimensionamento da relação homem-natureza.

Com efeito, enquanto a natureza está atrelada à noção de espiritual

e, por essa razão, tal noção foi, de certo modo, discutida apenas na

transversalidade dos embates sociológicos travados entre pensadores

sociais clássicos do século XIX, o corpo, que passa a ser visto durante

o período moderno como algo profano, é o substrato de todas as

reflexões científicas desde o século XVIII mais precisamente,

considerado o Século das Luzes.

No pano de fundo da reflexão encontra-se a busca incessante

do homem pelo controle da natureza, buscando aperfeiçoar técnicas

e máquinas com a finalidade de promover o desenvolvimento. O

controle sobre a natureza apresentava como elemento basilar a razão

instrumental, que se sustentou por meio da cisão entre corpo e espírito.

A cisão tornou-se possível com fundamento no desmantelamento da

estrutura feudal e, por conseguinte, com a desestruturação do poder

da Igreja Católica, proporcionando uma reorientação na concepção

de homem. Conforme Le Breton (2003) desde o século XVI, mais

precisamente 1543, com a publicação do De humani corpori

fabrica, houve um momento de mudança na forma de pensar o homem

e sua relação com o corpo, diz o autor: “Os anatomistas antes de

26 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Descartes e da filosofia mecanicista fundam um dualismo que é central

na modernidade e não apenas na medicina, aquele que distingue, por

um lado, o homem, por outro, seu corpo” (Le Breton, 2003, p. 18).

Por meio da interpretação do autor, percebe-se que o projeto

moderno teve seu matiz alinhavado na forma sistemática de encarar

o homem, advinda da filosofia mecanicista e, portanto, de Descartes.

Todavia, mais do que isso, a visão moderna recupera o modelo do

corpo como máquina, que também é decorrente do pensamento de

Descartes. Com efeito, segundo Le Breton (2003, p. 18), Descartes

ao apresentar sua idéia de cogito “prolonga historicamente a

dissociação implícita do homem com seu corpo despojado de valor

próprio”, entendendo-se com isso que o corpo é encarado como o

invólucro mecânico que reveste a “essência” da natureza humana, o

cogito. Por meio destas observações, percebe-se que o projeto

moderno não só se fundamenta na dissociação do corpo e espírito,

como também se incumbe de dividir o lado material – o corpo humano

– entre essência (cogito) e aparência (corpo – parte externa).

Trata-se, portanto, de refletir o que significou essa dissecação

apresentada sobre o corpo, que trouxe consigo duas referências: corpo

cogito (mente) e corpo – espírito (alma). Assim, ao se debruçar

sobre essa dupla referência percebe-se que ocorreu uma re-

significação do que é ser homem, que de uma forma ou de outra,

implica uma visão dualista. Isto quer dizer que o projeto moderno

dividiu o homem em duas partes desiguais, fazendo com que este

homem, ao buscar a realização material, se situe na sociedade como

um ser em busca do sentido de sua vida, na verdade, muitas vezes

desacreditado ou mesmo desencantado.

A compreensão do desencantamento do homem no cenário

moderno contribui para o entendimento de sua relação com a

natureza, à medida que a cisão corpo–espírito se sustenta numa

relação analógica entre cultural e natural. A este respeito Goldblatt

(1996) permite uma incursão na teoria social, por meio de uma

releitura de autores clássicos, destacando-se aqui Habermas (1987).

Para Habermas, a maneira encontrada pelo homem para lidar

com os problemas gerados pela modernidade produziu quadros

27A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

patológicos na sociedade, determinando crises de direção e, até mesmo,

diminuindo a integração societária. Essas crises de direção podem

ser compreendidas no sentido da teoria weberiana como o

desencantamento do sujeito no quadro moderno, pois a vida para o

homem aparece sem sentido em função de sua descrença,

especialmente, com a vida extra-mundana (Weber, 1989). O

empobrecimento cultural e a perda do significado são, conforme

Habermas (1987), os dois aspectos que contribuem para a perda de

referência do homem no mundo moderno. Nesta direção vale a pena

atentar para o que observa Habermas (1987, p. 355, citado por

Goldblatt, 1996, p. 182): “A consciência do quotidiano não é enganada,

mas fragmentada. Só então se encontram reunidas as condições para

pôr em prática a colonização do mundo natural”. Quer dizer, então,

que o fato de o homem moderno perder a referência consigo mesmo

e com o lado espiritual propicia (para não dizer, determina) formas

para o controle da natureza.

A singularidade do pensamento moderno consiste na definição

da razão instrumental, que se ampara na busca de princípios

fundamentais que devem abandonar dogmas e crenças religiosas

(não-científico), enquanto os pressupostos que norteiam a ciência

moderna se baseiam em um tripé que se constitui por observação,

experimentação e comprovação dos fatos, estabelecendo-se leis gerais

e invariáveis para todos os fenômenos “científicos”, isto é, passíveis

de investigação científica. Neste contexto, tanto o racionalismo

(movimento intelectual surgido no século XVII) quanto o iluminismo

(século XVIII) subsidiam-se nas hard sciences, talvez por convicção

ou por conveniência. Portanto, negava-se tudo o que não fosse

devidamente (cientificamente) comprovado, por oportuno, contrariava-

se o imaterial como forma de controlar a natureza e construir uma

ciência a serviço do desenvolvimento da humanidade, contribuindo,

assim, para a consolidação de um novo modelo de sociedade

(Suassuna, 1999).

O controle sobre a natureza consistiu no grande fundamento

da ciência ocidental moderna ou ciência secular. Estabelecem-se

convenções que se apresentam como verdadeiras oposições (material

28 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

e imaterial, corpo e mente, corpo e espírito, científico e não-científico,

cultural e natural), justificando, com isso, a textura científica de

determinadas disciplinas. Vê-se, por assim dizer, que tais categorias

de pensamento são utilizadas de modo dual, maneira encontrada para

mostrar sua oposição discursiva. Desta forma, como efetivamente o

rural era o espaço e o cenário do feudo, do crente, da Religião

institucionalizada (católica), pretende-se, na modernidade, fugir dele

como forma de superá-lo. Aqui, pode-se construir uma associação

entre o que representa o rural e o natural, posto que é exatamente o

que ocorre no cenário moderno. Nega-se a concepção de natural,

associando-a ao modelo de dominação medieval em que prevalecia

o meio rural, isto é, o Feudalismo (Weber, 1989).

Na dinâmica desse processo, o capitalismo, a demografia, a

política, a urbanidade e o industrialismo aparecem como elementos

que dimensionam um modelo de sociedade pautado em um mecanismo

complexo e conflituoso, que se embasa em causas diretas, motivadoras

da degradação ambiental de per si, e, causas estruturais,

correlacionadas aos fatores históricos e estruturais da degradação

ambiental (Habermas, 1987).

As categorias corpo e natureza são apresentadas sob uma

tensão, o que sugere não apenas a existência de uma dualidade, mas

emerge a ponto de assumir um caráter de conflito. Corpo significando

o material, e natureza sendo reportada a algo que está além do

corpóreo, portanto, está relacionada ao imaterial, voltando-se, mais

uma vez à relação natural-cultural. Trata-se, como afirma Goldblatt

(1996), de uma questão ontológica que se cristaliza por meio do

paradoxo estabelecido entre sujeito humano e objeto natural. Com

isso, pode-se inferir que a natureza é tratada como algo mítico,

intocável, coisas de outro plano, plano este superior ao corpóreo.

Que razões justificariam tomar a natureza como algo extra-mundano?

Como atribuir significado à relação corpo e natureza numa sociedade

em que todas as categorias parecem esvaziadas de sentido? Tais

questões aparecem no pano de fundo do dualismo construído pelo

projeto moderno e que serviu como matiz para alargar o abismo entre

o sujeito (corpo) e o meio ambiente, mundo natural, como chama

Habermas (1987) ou, natureza, seguindo Merleau-Ponty (2000).

29A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

A categoria natureza recebeu como herança da teoria social

clássica, principalmente dos escritos de Durkheim, Marx e Weber

preocupações transversais (Goldblatt, 1996), isto é, estes autores não

se preocuparam com as conseqüências do capitalismo sobre o meio

ambiente. Suas análises se encaminharam dentro das seguintes

preocupações centrais: no caso de Durkheim (1995), para a

constituição de um modelo de sociedade complexa – solidariedade

orgânica – que se originou da especialização das profissões em razão

da divisão do trabalho social; para Marx (1989), a questão principal

era a análise do funcionamento da sociedade capitalista; e, por fim,

no caso de Weber (1989) o ponto norteador de sua interpretação era

a compreensão da constituição ética do capitalismo. Com efeito, que

fatores poderiam justificar a pouca preocupação dos cientistas sociais

com a questão do controle do homem sobre a natureza?

Segundo Rodrigues (1983, p. 14), “pela natureza do seu espírito,

o homem não pode lidar com o caos. Seu medo maior é o de defrontar-

se com aquilo que não pode controlar, seja por meios técnicos, seja

por meios simbólicos”. Retoma-se a questão: não é a natureza uma

categoria ainda fora de controle para o homem? Em função disso, é

mais fácil relegá-la a uma outra dimensão do que propriamente lidar

com ela. Por essa razão, o homem deu conta do processo de

industrialização, das técnicas, da produção, mas não construiu

categorias analíticas suficientemente capazes de explicar sua relação

com a natureza.

A necessidade de explicar a relação corpo-natureza está

centrada no bojo de uma discussão sobre o que fazer com a natureza.

Será que é necessário destruí-la, já que não podemos controlá-la?

De acordo com Goldblatt (1996), existem dois motivos de diferentes

ordens que promovem a devastação ambiental, quais sejam: as

interações diretas, como, por exemplo, um índio derrubar uma árvore

para fazer lenha e as pressões históricas e estruturais, que consistem

na determinação de motivações sociais, como subemprego,

desemprego, escassez de capital, que podem compelir um agricultor

a devastar o ambiente. Neste último caso, a visão do homem sobre a

natureza aparece como fundamento que acaba por instrumentalizar

30 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

a relação homem-natureza, percebendo o homem como não-integrante

da natureza.

Merleau-Ponty, por seu turno, consegue fugir dessa percepção

ao afirmar que:

Existe natureza por toda parte onde há uma vida que tem um sentido,

porém, não existe pensamento; daí o parentesco com o vegetal: é

natureza o que tem um sentido, sem que esse sentido tenha sido

estabelecido pelo pensamento. É a auto-produção de um sentido. A

Natureza é diferente, portanto, de uma simples coisa; ela tem um

interior, determina-se de dentro; daí a oposição de ‘natural’ e

‘acidental’. (Merleau-Ponty, 2000, p. 4).

Fica-se, pois, com a idéia de que natureza é a auto-produção

de um sentido. Esse sentido é aqui interpretado como a intenção dos

atores sociais, portanto, não se consegue escapar da interpretação

recorrente no pensamento weberiano de que as condutas humanas,

inclusive em relação à natureza, sejam racionais. Como pensa Husserl

“a Natureza envolve tudo, a minha percepção e a dos outros, enquanto

estas só podem ser para mim um afastamento do meu mundo” (citado

por Merleau-Ponty, 2000, p. 19).

Concorda-se, portanto, com a idéia de natureza trazida por

Husserl (a partir de Merleau-Ponty, 2000), o que permite a

aproximação com a noção dos sujeitos como indivíduos capazes de

exprimir sentidos (percepções) por meio de suas condutas. Naquela

interpretação, a natureza é expressa como uma construção social,

pois como afirmou o autor, natureza é tudo que não é individual. Isto

é, natureza é tudo aquilo que permite a localização do sujeito – corpo

– no mundo (social).

O corpo e seu significado

Caracterizado na modernidade por meio de aspectos biológicos,

o corpo é parte do conteúdo estudado por uma ciência secularizada

que assume os pressupostos do dualismo cartesiano, em especial

31A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

disciplinas como Biologia, Medicina, Fisioterapia e Educação Física,

que tradicionalmente o assumem como objeto de estudo. Para a visão

predominante no campo disciplinar que as envolve, o corpo é definido

como uma célula autônoma ou por várias células funcionando de

modo integrado, sugerindo-se com isso a harmonia entre órgãos no

desempenho de suas funções. Entretanto, por si só, essa definição –

que se registre, é adotada pelo funcionalismo, especialmente, por

Durkheim (1995) ao fazer analogia entre o corpo humano e o corpo

social – apresenta-se como insuficiente, isto é, é limitada porque ao

definir-se o corpo de modo biológico, como o foi, chega-se a um

lugar comum, pois tanto pode se expressar pela definição o corpo de

um animal qualquer ou o de um ser humano.

A visão remanescente do determinismo biológico teve lugar

durante o século XIX também nas Ciências Sociais em função do

pensamento evolucionista. Todavia, ao longo da discussão acumulada

sobre o assunto percebeu-se que uma definição meramente biológica,

que considere a dimensão humana sob apenas um aspecto não pode

servir como referência para os estudos sobre o corpo que envolvam

o indivíduo de modo integral. Neste âmbito, Mauss (2003) ao

apresentar sua noção de técnica corporal consegue situar o diálogo

entre diferentes campos disciplinares, especialmente o das Ciências

Sociais e o da Educação Física – que, tradicionalmente, está inserida

no campo das Ciências da Saúde.

Para Mauss (2003, p. 401) são técnicas corporais “as maneiras

pelas quais os homens de sociedade em sociedade, de uma forma

tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. Ao apresentar sua noção

de técnica corporal, o autor recorta o corpo como objeto de

preocupação da Etnologia e amplia sua contribuição ao passo que

considera o homem como um ser total, isto é, na constituição humana,

os aspectos biológicos, psicológicos e sociais se fazem presentes.

Com isso, Mauss (2003) conseguiu promover uma ruptura com a

visão preponderante no campo das Ciências da Saúde e também no

das Ciências Sociais. Por meio dela, esse autor rompeu com o

determinismo biológico, mas também com vertentes sociológicas que

pretendiam, durante o século XIX, tratar o homem apenas sob o

32 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

prisma social. Por esta razão, concordando-se com Mauss (1974,

2003), compreender a dimensão humana é partir do pressuposto de

que o homem constitui um fato social total. Lévi-Strauss, na introdução

de Sociologia e Antropologia de Mauss (1974), destaca que, desde

1926, Mauss defendeu que para interpretar a relação indivíduo-

sociedade era necessário relacionar imediatamente o fisiológico e o

social.

Desta forma, enquanto autores racionalistas discutiam a noção

conflituosa entre corpo e espírito ou corpo e mente, debate que

remonta ao dualismo cartesiano, para que dissecações e olhares que

os tornam objetos pudessem ser suportados e, que resultou na

mecanização da lógica corpórea, com o conseqüente

desencantamento do corpo, fragmentando-o, Mauss (1974)

permanece à frente e propõe o estudo das técnicas corporais como

objeto da pesquisa etnológica. Com efeito, Mauss (1974) considerava

indispensável para uma disciplina que se preocupa com o estudo da

cultura (construída por homens), que a Etnologia realizasse o inventário

de tudo que os homens fazem dos seus corpos, ou seja, de todos os

usos e apropriações do homem sobre seu corpo ao longo da história.

E critica dizendo que continuamos a ignorar inúmeras possibilidades

do corpo humano, tudo isso porque nos preocupamos com fragmentos

ou com visões instrumentais sobre esse corpo.

Conforme Rodrigues (1999), a visão que desencadeia a

fragmentação do corpo, impedindo, inclusive, que ele seja visto como

parte da natureza, foi a conseqüência de um processo não meramente

casual, pois, o período histórico coincide com a consolidação da

sociedade capitalista, pretendendo-se, naquele momento, transformar

os corpos em instrumentos funcionais, espécie de máquinas. É válido

ressaltar que neste caso, em particular, as idéias de Rodrigues (1999)

e Le Breton (2003) são convergentes e apresentam pontos de ligação

ao mostrar que o corpo serve ao processo produtivo de modo

sincrônico2 e mecânico, tal qual uma peça na engrenagem de um

motor. Como se observa por meio da passagem abaixo:

[Na modernidade] a vida passará a adquirir sentido mediante

contraposições e dicotomias: entre o mundo do natural e o do

33A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

sobrenatural, entre o do subjetivo e o do objetivo, entre o da realidade

e o da imaginação, entre o do verdadeiro e o do falso, entre o da

sociedade e o do indivíduo, entre o da natureza e o da cultura. Aquele

amálgama, aquela integridade do universo medieval serão contínuos

e cada vez mais profundamente fracionados, para dar lugar à lógica

de segregações que doravante atribuirá sentido ao mundo, ditará os

princípios que vão presidir as mentalidades e sensibilidades

posteriores e que deverão resultar na nossa ciência, na nossa etiqueta,

nosso meio ambiente, nossa resistência, nossa postura corporal...

(Rodrigues, 1999, p. 63).

Deste modo, passaram a ter lugar as dicotomias,

fragmentações, que se revestem em categorias que se pautam em

uma crescente racionalização instrumental de controle da natureza.

Para reforçar sua interpretação acerca da noção dual como

parte do projeto moderno, Rodrigues (1999) recorre a fatos históricos

da Idade Média, mostrando que, por meio deles, é possível perceber

que o sentido das categorias corpo e espírito eram bem diferentes

dos tempos modernos, como se observa a seguir:

Um dos aspectos mais característicos e de mais difícil entendimento

para a mentalidade contemporânea é que espírito e matéria não se

opunham. Não se imaginava, nos tempos medievais, que os seres

humanos possuíssem, por um lado, um espírito – indestrutível,

transcendente e sublime – que se contrapusesse, por outro, a uma

matéria fadada à degradação e à decomposição, por ser portadora de

dignidade menor. A corporalidade medieval era valorizada em si, até

porque continha o que hoje chamamos de espiritual. (Rodrigues,

1999, p. 55).

Vê-se, pois, que a difícil compreensão do significado da

mentalidade medieval na modernidade tem como um dos aspectos o

fato de que o homem era compreendido dentro de um modelo baseado

no dualismo cartesiano, isto é, enquanto espírito e matéria em

separado. Com efeito, o projeto moderno “jogou o bebê fora com a

água do banho”, isto é, foi responsável pela construção de rupturas

no homem, que passou a ser redimensionado como corpo e espírito

34 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

separadamente, o que quer dizer que o homem avançou

significativamente em relação ao aperfeiçoamento técnico, à

industrialização, mas, por outro lado, esqueceu de buscar a

redescoberta de si mesmo como sujeito autor da história e como ser

natural e cultural que é. Então, o projeto moderno estruturou, por

meio do seu discurso, uma visão fragmentária do homem, entendido

apenas sob o prisma corpóreo. Diante deste cenário, quais seriam as

possibilidades concretas de permitir que o homem vislumbre um

contato próximo com a natureza e, desta maneira, possa romper com

a separação proposta pelo racionalismo entre corpo/cultura e natureza/

imaterial?

Como mostram Ferrando et al. (2002) tanto o processo

industrial como as atuais condições dos centros urbanos começam a

promover uma espécie de sentimento/necessidade no homem de

buscar práticas de atividades físicas na natureza. As razões dessa

busca são enunciadas pelos autores com base na urbanização e na

tecnificação da sociedade moderna. Contudo, acrescentam que é

necessário se pensar nos impactos causados pelas práticas dessas

atividades na natureza, porém, com base nas argumentações de

Machado (1971), defendem que o contato desde a infância com a

natureza, permite que a atividade física encontre uma base real para

o desenvolvimento da cultura corporal, fugindo de exercícios

mecanizados e, muitas vezes, descontextualizados da “natureza”

humana. Observa o autor:

Para crear hábitos saludables, que nos acompañen saludables, que

nos acompañen toda la vida, no hay peor camino que el de la gimnasia

y de los deportes, que son ejercicios mecanizados, en cierto sentido

abstractos, desintegrados tanto de la vida animal como de la

ciudadana. (...) Si lográsemos, en cambio, despertar en el niño el

amor a la naturaleza, que se deleita en contemplarla, o la curiosidad

por ella, que se empeña en preservarla y conocerla, tendríamos mas

tarde hombres maduros y ancianos venerables, capaces de atravesar

la sierra de Guadarrama e los días más crudos del inverno, ya por

deseo de recrearse en el espectáculo de los pinos y de los montes, ya

movidos por el afán científico de estudiar de lagartijas... (Machado,

1971, p. 97 citado por Ferrando et al, 2002, p. 193).

35A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

De acordo com as considerações do autor, pode-se perceber

que a contextualização da atividade física na natureza pode despertar

nas crianças a vontade de aprender mais sobre a natureza,

estimulando o processo cognitivo e até mesmo a redefinição da relação

entre corpo–natureza. Este aspecto pode ser capaz de re-significar

um modelo educativo que tome como premissa a necessidade do

conhecimento do homem sobre a natureza, percebendo-o como dela

integrante e, deste modo, promovendo o elo entre corpo–espírito ou

corpo–mente. Assim, o contato com a natureza pode permitir a

compreensão de que o homem é parte intrínseca da natureza e não

algo dissociado e perdido.

Considerações finais

Neste ensaio buscou-se promover um diálogo entre autores

com o propósito de discutir a temática da modernidade e a relação

corpo e natureza, procurando-se enfatizar a contribuição teórica da

teoria social para o campo da Educação Física. Neste sentido, além

de se ter como objetivo promover um debate com autores que

sustentam a teoria social, mostrando suas limitações em relação à

problemática escolhida – relação corpo–natureza –, procurou-se,

principalmente, construir uma fundamentação teórica para iniciar a

discussão com base no pensamento social clássico e, desta maneira,

redimensionar o debate entre o campo das Ciências Sociais e o da

Educação Física.

Mostrou-se, por meio da Teoria Social, que a modernidade,

sustentada por meio de um discurso instrumental do desenvolvimento

e da racionalidade técnica, cindiu o homem em corpo–espírito,

negando a sua face espiritual, tendo em vista que esta se distanciava

dos interesses racionais da sociedade capitalista.

Viu-se, por outro lado, que é possível apresentar uma crítica

ao discurso instrumental do projeto moderno por meio de Mauss, à

medida que este autor utiliza o conceito de fato social total (diga-se

de passagem, que é recorrente nos estudos de vieses antropológicos).

36 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Considerou-se que a leitura de Mauss, inclusive, coincidindo com a

reedição de sua obra Sociologia e Antropologia, até então esgotada

no Brasil, permitiu a fuga ao dualismo cartesiano. Retomando-se a

discussão proposta sobre a natureza, Mauss permitiu que o discurso

instrumental sobre ela seja superado, e, ao mesmo tempo, possibilitou

que o homem seja pensado dentro de uma tríade (biológica, psicológica

e social) – fato social total – que por muito tempo foi refutada pelas

Ciências Modernas (neste caso, tanto as naturais, quanto as sociais).

Por meio deste ensaio, tornou-se perceptível que o objetivo –

entender a relação corpo–natureza, situando o homem no contexto

da modernidade –, pressupondo-se que este homem moderno, ao

fugir de práticas cotidianas consideradas rotineiras, busca no contato

com a natureza a si mesmo e ao elo perdido com o mundo natural no

contexto da modernidade, pode ter um significado importante para a

compreensão do homem no sentido ontológico do termo. Deste modo,

considerando a Antropologia como uma disciplina à procura de

significados e o homem como o sujeito que está buscando o sentido

de sua vida, sendo, portanto, o papel da Antropologia a compreensão/

interpretação do sentido atribuído pelo homem (Oliveira, 1997),

defendeu-se que é fundamental o diálogo entre campos disciplinares

distintos, mas que registram preocupações comuns. Esse diálogo deve

ser recorrente e, desta forma, pode contribuir para a ampliação do

exercício de reflexão sobre o tema.

Por fim, se o homem moderno está à procura do bebê jogado

fora com a água do banho – bebê que representou o sentido de sua

vida, isto é, a referência perdida no contexto moderno com o abandono

do lado espiritual – ele pode ser encontrado à medida que a interação/

relação homem–natureza é restabelecida, tendo na atividade física

na natureza (para nós, esportes de aventura) uma possibilidade real

para promover este encontro.

37A relação corpo-natureza na Modernidade

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Notas

1 Trata-se de um trabalho teórico que é parte de um projeto de pesquisa

que começou a ser desenvolvido no ano de 2002, pelo Núcleo de Estudos

do Corpo e Natureza (Necon FEF/UnB), em que se investiga o significado

da relação Corpo e Natureza, por meio do estudo dos esportes de

aventura. Colaboraram na discussão Daniel Cantanhede, Davi Metaxa,

Paulo Aires (bolsistas voluntários) e Lucimar Neves Schelgshorn

(bolsista PIBIC/CNPq). Este trabalho foi apresentado no VIII Congresso

Luso-Afro-Brasileiro “A questão social no novo milênio”, realizado em

Coimbra, Portugal, em setembro de 2004. Foi financiado pela Capes e

Finatec.

2 Sincronizar quer dizer ajustar com rigorosa precisão. Tal categoria também

é trabalhada por Durkheim (1995), ao explicar a função do indivíduo na

sociedade, relação que é caracterizada por meio da vinculação entre

parte e todo, respectivamente.

Abstract: The body-nature relation in the Modernity

This paper presents a theoretical reflection about the meaning of the

body-nature relation, taking Modernity as a context. The theoretical

discussion proposed here is subsidized by the social theory, following

the weberian thinking as a reference, where it concerns the view of

Modernity. It uses Habermas to show that in modernity the shaped

picture is built by means of breaches which occur as pathological

consequences of the natural world; moment in which the man (body)-

environment (nature) relation can be discussed. The recovery of the

contribution of Habernas happened through the classic text Theory

of the Communicative Action and the reading of Goldblatt in his

book Social and Environment Theory. Besides these authors, others

are used within this line of thought. However, attempting to dodge

the instrumentalist view, Mauss was embraced as a basis, through

the theory of the total social fact and the notion of body techniques,

in order to find theoretical support for a possible justification of the

perspective of interdisciplinary studies between the field of Social

Sciences and Physical Education and, consequently, of the sport.

Key-words: body, nature, modernity.

38 Dulce Suassuna / Jônatas Barros / Aldo Azevedo / Juarez Sampaio

Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 1, p. 23-38, jan./abr. 2005

Referências bibliográficas

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins

Fontes, 1995.

FERRANDO, Gárcia; BARATA, Núria Puig; OTERO, Francisco Lagardera

(Comps.) Sociologia del deporte. 2. ed. Madri: Alianza, 2002.

GOLDBLATT, David. Teoria social e ambiente. Lisboa: Instituto Piaget,

1996.

HABERMAS, Jürger. The theory of commuicative action. Boston.: Polity

Press, 1987. v. 2.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Campinas:

Papirus, 2003.

MACHADO, A. Juan de Mairena: sentencias, donaires, apuntes y

recuerdos de um profesor apócrifo 1936. Edición de José María

Valverde. Madri: Editorial Castalia, 1971.

MARX, Karl. O Capital. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. 13. ed. São

Paulo: Bertrand, 1989. Livro I e I.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: E.P.U., 1974.

_______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Casac & Naify, 2003.

MEARLEAU-PONTY, Maurice. A Natureza. São Paulo: Pioneira, 2000.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. Brasília:

Paralelo 15, 1997.

RODRIGUES, José Carlos. O tabu do corpo. 3. ed. Rio de Janeiro: Achiamé,

1983.

_______. Antropologia e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

SUASSUNA, Dulce. Do objetivismo à intersubjetividade: o lugar da razão

na modernidade. Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências

Sociais – Pós, Departamento de Antropologia e Centro de Pesquisa

de Pós-Graduação sobre a América Latina e Caribe, UnB, Brasília,

Edição temática, v. 3, n. 1. 1997.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:

Pioneira, 1989.