A fé do povo reflexões teológicas sobre o catolicismo popular

A América Latina passou por processos políticos que conduziram ao “fim de ciclo” de um conjunto heterogêneo de governos pós-neoliberais e que levaram a uma guinada à direita na esfera política, caracterizada não apenas pelo recuo dos direitos e da distribuição de renda, como também por um ataque contra as instituições democráticas, avançando, em determinados países, para uma crise orgânica do capitalismo. Neste ensejo, os atores religiosos têm se mobilizado e trazem a público sua linguagem, seus valores, suas práticas e suas demandas, quer no plano da cultura e do cotidiano, quer no plano da esfera pública e da política. Podem contribuir para compor forças progressistas e caracterizar formas pluralistas de convivência e de enfrentamento de problemas sociais e políticos; porém, aliados a forças regressivas, podem apontar para o estreitamento dos canais de interlocução e para a escalada da violência e da intolerância.

No contexto impulsionado por uma nova onda neoliberal, a fé do “povo latino-americano” novamente tem sido mobilizada em discurso para consolidar a hegemonia de uma fração burguesa bancária, ligada ao capital financeiro que avança no cenário político mundial. Cabe lembrar que, há pouco mais de duas décadas, essa fé popular era elemento fundamental nas lutas sociais e na formação dos movimentos sociais no subcontinente, sendo marcantes as contribuições do Cristianismo da Libertação, movimento religioso no qual os pobres deixaram de ser apenas objeto de caridade dos fiéis da igreja para serem sujeitos da sua história, em busca de emancipação.

Na esteira desta reflexão, objetivamos compreender a experiência e o pensamento da subalternidade a partir das expressões de uma religiosidade popular na América Latina, relacionada com a emancipação do “povo pobre”, do “povo de Deus” como forma de articulação entre classes e grupos subalternos no discurso do cristianismo de libertação na América Latina, em especial, no Brasil. Consideramos ainda suas várias perspectivas e abordagens em oposição a outras correntes teológico-políticas cristãs, evidenciando os diferentes significados teológico-políticos da noção de “Povo de Deus” expressos por diferentes segmentos religiosos conservadores, reformistas ou revolucionários que influenciam as formas de mobilização, formação, organização e ação dos movimentos populares, definindo o sentido de “popular” atribuído a estes movimentos, grupos e classes, ao mesmo tempo que repercutem de diversas formas nas instituições e práticas democráticas burguesas e delimitam o potencial emancipatório desses movimentos.

Para a realização de nossos objetivos, torna-se necessário evidenciar as transformações sofridas pela Igreja Católica Romana ao longo do século XX e, principalmente, na segunda metade, quando vários setores do clero na América Latina passaram a identificar-se com as causas das esquerdas do continente e com o ideal de libertação das “classes empobrecidas” e dos “povos latino-americanos”. Desenvolveu-se uma nova reflexão teológica voltada para os anseios e necessidades das classes e grupos subalternos: a “Teologia da Libertação”. Nascida a partir de uma nova práxis do clero e dos leigos, dialogava tanto com as novas concepções políticas que surgiam no continente, animadas pelos ideais da revolução cubana de 1959, como com as novas orientações teológicas e pastorais da Santa Sé, definidas no Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1968 (Silva 2006SILVA, Sandro Ramon Ferreira. (2006), Teologia da Libertação: revolução e reação interiorizadas na igreja. Niterói: Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, UFF. ).

É sabido que a Teologia da Libertação se tornou objeto de debates, ataques e disputas no interior da Igreja Católica Romana, com segmentos conservadores das igrejas evangélicas e nas sociedades latino-americanas. Na América Latina, assumiu influência ideológica hegemônica na II Conferência do Episcopado Latino-americano em Medellín, na Colômbia, em 1968, logo após o Concílio Vaticano II. No Brasil, influenciou a atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e foi fundamental na formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), no interior do processo de transição política do regime civil-militar para o Estado de Direito, assim como na formação dos movimentos sindicais, dos movimentos populares urbanos, de trabalhadores rurais, indígenas e negros. Na América Central e na Nicarágua, acabou assumindo um caráter mais radical, inspirando a Frente Sandinista de Libertação Nacional (Silva 2006SILVA, Sandro Ramon Ferreira. (2006), Teologia da Libertação: revolução e reação interiorizadas na igreja. Niterói: Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, UFF. ).

A articulação prática entre diversas frações de classe e grupos subalternos, dentro e fora das comunidades eclesiais, foi influenciada pelas teorias críticas de esquerda, marxistas, feministas e pós-coloniais. Já os significados teológico-políticos produzidos pela teologia da libertação transformaram as formas de mobilização, formação, organização e ação dos movimentos populares e definiram o sentido de “popular” atribuído a esses movimentos como parte do “povo”, da “esperança comum” que os unifica, os meios necessários para transformação da realidade e realização de sua “esperança”. Seja a partir da economia popular solidária, passando pelas comunidades eclesiais de base, até a guerrilha revolucionária, o Cristianismo e a Teologia da Libertação engajaram-se em um conjunto heterogêneo de ações políticas.

Será preciso, contudo, analisar os efeitos sociais e políticos da expansão de comunidades católicas e das igrejas evangélicas na América Latina, especialmente de seus segmentos mais conservadores e fundamentalistas, e de sua convergência com uma contraofensiva neoliberal às lutas por garantias de direitos, pela democratização das instituições políticas ou pela superação das relações de exploração e acumulação capitalista.

Tomando em consideração esses processos históricos e sua influência no contexto histórico atual, o pressuposto desenvolvido no presente texto é que o reconhecimento pelas ciências sociais das relações de poder que estruturam os discursos e espaços de saber religiosos pode abrir horizontes de compreensão e de rebeldia que propiciem subversões e a construção de discursos e práticas teológico-políticas descolonizadoras e emancipadoras, protagonizadas pelos grupos subalternos. Nossa metodologia utiliza o materialismo histórico para compreender e analisar o desenvolvimento das categorias “pobre” e “povo de Deus” em estudo e sua relação com os discursos constituintes dos diferentes atores sociais: classes, intelectuais, igreja, povo.

Esse processo será lido a partir das categorias gramscianas de hegemonia e subalternidade, apresentando a disputa teórica em torno delas no campo da esquerda, buscando identificar as diversas influências ideológicas envolvidas na elaboração histórica das noções teológico-políticas de “pobres” e de “Povo de Deus” e suas consequências para as formas sociais e políticas que assumiu a luta de classes na América Latina.

A religião, a sociologia e o marxismo: teologia e práxis

O marxismo, desde as figuras de seus cânones, Karl Marx e Friedrich Engels, não descuida em conferir análise à religião, sendo bastante difundida a premissa de que, para Marx, a religião seria o “ópio do povo” (Marx 2005MARX, Karl. (2005), Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo . [1843]:46). Essa frase circulava entre vários autores do século XIX antes de Marx citá-la na introdução do texto Crítica ao direito de Hegel, de 1843. A religião, nesse importante ensaio, analisada de forma dialética, apresenta-se como expressão da miséria real, mas pode também se apresentar como um protesto. Possui esse duplo sentido, essa contradição, o próprio “suspiro da criatura oprimida”, conforme afirma literalmente Marx. O jovem Marx, como um neo-hegeliano de esquerda, filia-se à leitura de que a religião seria uma das alienações da essência humana, sendo a-histórica, idealista, não a relacionando com a economia, nem com a sociedade, tampouco com a luta de classes. Engels refina essa leitura e amplia a análise marxiana ao se interessar pelas teorias críticas da religião, atentando para sua concepção histórica, bem como suas transformações e a própria diversidade do cristianismo, relacionada com o conflito social da época, com o enfrentamento entre as classes sociais. A partir de então, para o marxismo, seria imprescindível entender a religião com base em um contexto social, marcado por conflitos entre classes, molas propulsoras da transformação histórica da economia, da sociedade e das formas políticas (Löwy 1998LÖWY, Michael. (1998), “Marx e Engels como sociólogos da religião”. Lua Nova, nº 43: 157-170. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000100009&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 30/12/2018.
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).

Ressaltamos que Engels demonstra interesse essencialmente pelo cristianismo primitivo e suas relações com as camadas e grupos subalternos, como os artesãos, os operários, entre outros (Engels 1882ENGELS, Friedrich. (1882), “Bruno Bauer e o Início do Cristianismo”. Arquivo Marxista na Internet. Disponível em: Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1882/05/11.htm . Acesso em: 25/06/2020.
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). Em sua leitura, como movimento das massas oprimidas pelos Impérios, os subalternos vão aderir ao cristianismo e às comunidades cristãs como um programa comum a esses grupos: o único elo que relacionava esse “povo” seria a aspiração a um Reino de Deus. Esse mito do cristianismo primitivo teria inspirado todas as revoltas populares no curso da história (Löwy 1998LÖWY, Michael. (1998), “Marx e Engels como sociólogos da religião”. Lua Nova, nº 43: 157-170. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000100009&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 30/12/2018.
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).

Posteriormente, o marxista italiano Antonio Gramsci também desenvolveria leituras sobre a religião e, de certa maneira, pensaria que o socialismo é ele mesmo uma forma de religião, diferente das tradicionais, pois não propõe um reino dos céus, mas a confiança dos seres humanos em sua energia como única forma de transformação. Na leitura gramsciana, a verdadeira política seria uma fé mística - certamente como decorrência de sua apropriação crítica das leituras do sindicalista francês Georges Sorel sobre fé e mito na greve geral (Aguiar 2018 AGUIAR, Jórissa Danilla. (2018), “Resenha de GALASTRI, Leandro. Gramsci, marxismo e revisionismo. Campinas: Autores Associados, 2015”. Revista de Ciências Sociais, vol. 49, nº 2: 659-666. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/36630 . Acesso em: 25/06/2020.
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).

Gramsci desenvolve, nos Cadernos do Cárcere (1929-1935), a premissa de que a religião oferece os elementos principais do senso comum (La Rocca apud Liguori & Voza 2017LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. (2017), Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo. :688). Ao enfrentar uma estrutura religiosa como a Igreja Apostólica Romana da Itália, não desconhecendo o papel positivo e os traços revolucionários do cristianismo, procura captar a existência de correntes de esquerda nessa religião, entendendo também que os socialistas marxistas não são antirreligiosos, que o “Estado operário não perseguirá a religião; exigirá dos proletários cristãos a lealdade que todo Estado exige dos seus cidadãos” (La Rocca apud Liguori & Voza 2017:689). Identifica, na criação pela Igreja Católica do Partito Popolare Italiano, em 1919, um ato político importante na história italiana e interessa-se pela ala à esquerda desse partido representada pelo dirigente dos sindicatos dos camponeses cristãos, de orientação antifascista, Guido Miglioli, “o porta-voz camponês de esquerda do Partido Popular”; e “de acordo com Gramsci, os comunistas devem buscar aliança com essa corrente, porque o ‘fenômeno Miglioli’ expressa a atitude de um setor importante do campesinato, sob a pressão econômica e política do fascismo” (Löwy 2009LÖWY, Michael. (2009), “Marxisme et religion: Antonio Gramsci”. La Brèche Numérique (Révolution, égalité & démocratie), 9 mar. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.preavis.org/breche-numerique/article1028.html . Acesso em: 21/11/2018.
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n.p.). Infelizmente, contrariando as apostas de Gramsci, esse partido desaparece e a Igreja se alia ao regime fascista (Melo 2016MELO, Sydnei. (2016), “Mariátegui e os ‘populares’”. Revista Outubro, nº 26: 145-167. Disponível em: Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2016/07/07_Sydnei-Melo.pdf . Acesso em: 13/09/2018.
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:152).

Gramsci aproxima da leitura de Engels e da análise marxista da religião do ponto de vista da luta de classes, diferenciando-se por propor que a mesma religião é interpretada de maneira distinta por diferentes classes e grupos sociais - ponto de partida que pode nos levar ao estudo das particularidades da formação social latino-americana. Na esteira dessa reflexão, reside seu interesse por buscar essa origem social desses dirigentes e sacerdotes (Gramsci 2001aGRAMSCI, Antonio. (2001a), Cadernos do Cárcere. Temas de cultura, ação católica, americanismo e fordismo. Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ). Para o marxista italiano, a igreja seria o exemplo típico do intelectual tradicional (Löwy 2009LÖWY, Michael. (2009), “Marxisme et religion: Antonio Gramsci”. La Brèche Numérique (Révolution, égalité & démocratie), 9 mar. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.preavis.org/breche-numerique/article1028.html . Acesso em: 21/11/2018.
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). Era preciso que as classes e grupos subalternos também formassem seus intelectuais orgânicos revolucionários, que se transformariam em intelectuais coletivos, como cimento de um novo bloco histórico.

Gramsci (2002GRAMSCI, Antonio. (2002), Cadernos do Cárcere. O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .) concebe, assim, o partido revolucionário como esse intelectual orgânico coletivo de caráter revolucionário, formado como instrumento concreto capaz de canalizar a rebeldia dos subalternos, de promover uma reforma moral e intelectual, concebendo um projeto de construção de uma nova hegemonia e bloco histórico. Cabe destacar, contudo, que, ainda para Gramsci, não é possível surgir um novo bloco histórico sem o estabelecimento de uma crise orgânica, uma crise nos padrões de poder, uma crise do Estado em seu conjunto que atingiria diretamente as formas de organização política e ideológica da classe dirigente, abrindo a possibilidade de resolução da crise orgânica em favor das classes subalternas, conforme a relação de forças expressa na luta de classes. Um novo bloco histórico poderia surgir de uma vontade coletiva popular que seria construída através da “fé” revolucionária racional, a fé no seu grupo, resultante de um ato pedagógico junto às massas, uma construção educativa e de prática política pela base popular, pela qual as massas não sejam mais tuteladas pela burguesia.

Para isso, a formação de uma camada de intelectuais orgânicos seria imprescindível. Na perspectiva gramsciana, a história do folclore, da religiosidade, do senso comum das classes subalternas, enfim, não pode estar dissociada das formas de domínio que lhes são impostas com decisiva contribuição dos grupos intelectuais (Gramsci 2001bGRAMSCI, Antonio. (2001b), Cadernos do Cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. O jornalismo. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .).

Para a compreensão da relação entre luta de classes e religiosidade, particularmente na América Latina, se faz fundamental analisar a particularidade de nossa formação econômico-social. A imposição de uma religiosidade eurocentrada incidiu, junto com fatores políticos, econômicos e de representações simbólicas, como uma das formas de dominação colonial. Por outro lado, como vimos, algumas revoltas populares foram acolhidas por membros da Igreja Católica, cristãos e intelectuais de esquerda, aproximando-se, conforme retratou Weber (apud Löwy 1998LÖWY, Michael. (1998), “Marx e Engels como sociólogos da religião”. Lua Nova, nº 43: 157-170. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000100009&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 30/12/2018.
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), de uma ética católica que desenvolve uma espécie de aversão, uma profunda hostilidade ao espírito do capitalismo. Nesta direção, podemos encontrar a contribuição de vários autores e militantes latino-americanos que logram perceber que a religião, como parte de uma cultura popular, em sua estrutura “mítica e imaginária”, é fundamental para a produção de pensamento crítico.

No campo do pensamento marxista, as formulações do peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) destacam-se por sua criatividade no trato da questão indígena, do colonialismo, do anti-imperialismo e por expressar os primeiros esforços teóricos para a compreensão da economia, política e cultura presentes no território peruano. Sua obra mais conhecida, os Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana, é também a primeira obra de análise da formação econômico-social latino-americana, em que explicita o conflito da separação entre intelectuais e povo, entendido como sujeitos subalternos, com características particulares como a origem a partir de outras raças, outra cultura ou outra religião, não contempladas pela ideologia dominante (Mariátegui 2008 [1928]).

A aproximação com as leituras de Georges Sorel o fez incorporar em suas obras a concepção de mito revolucionário, que seria fruto da ação dos homens. Em sua obra El alma matinal (1970MARIÁTEGUI, José Carlos. (1970), El alma matinal. Lima: Amauta. [1925]), mais precisamente no capítulo “El hombre y el mito”, Mariátegui cita Sorel e suas contribuições em torno do diálogo entre religião e socialismo, e avança na concepção heroica do mito revolucionário, em resposta à “crise do racionalismo exposta no pós-Guerra” (Martins Fontes 2015MARTINS FONTES, Yuri. (2015), Outros saberes e o marxismo latino-americano. Dialética de culturas e novos paradigmas frente à crise da civilização. São Paulo: Projeto de Pós-Doutorado, FFLCH/USP.: 4). Não deixa, porém, de distanciar-se de críticas racionalistas e anticlericais. A relação entre religião e política constitui elemento fundamental da história social peruana, assim como da italiana - com a qual Mariátegui tem contato em seu exílio forçado no país europeu entre os anos 1919 e 1923. Sua leitura, assemelha-se à gramsciana ao pensar que não há uma contraposição aguda entre socialismo e religião, sendo o primeiro também uma religião, uma mística (Mariátegui 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. (2008), Sete Ensaios de Interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular.; Flores Galindo 1984FLORES GALINDO, Alberto. (1984), “Marxismo y religión: para situar a Mariátegui”. 30 días: revista mensual de sociedad y cultura, nº 5: 24-25.).

O militante peruano, em seu marxismo latino-americano heterodoxo, na busca por uma nova racionalidade, consegue realizar uma síntese entre mito e razão - representada pelo socialismo científico - ciência e religião, teoria e prática, destacando a importância de concessões a fatores espirituais na luta revolucionária.

América Latina, as lutas populares e o Cristianismo da Libertação

Particularmente no final dos anos 1950 e no par de décadas seguintes, na América Latina, duas concepções de leituras da realidade aparentemente distantes vão convergir na busca pela transformação da sociedade: o marxismo e o cristianismo. Tal convergência toma corpo intelectualmente com o Cristianismo da Libertação e sua posterior expansão com a Teologia da Libertação, assim como as significações das categorias “povo” e “vontade nacional-popular”. Outras categorias como “pobres” e “povo de Deus”, ainda que comuns no vocabulário judaico-cristão, ganharam significados nas práticas do cristianismo de libertação e na teologia da libertação nos diversos contextos geográficos e históricos do subcontinente.

Michael Löwy (2000LÖWY, Michael. (2000), A Guerra dos Deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis, RJ: Vozes . , 2016) aponta a importância do Cristianismo da Libertação no curso dos anos 1950 e 1960 como um movimento de cristãos comprometidos com a causa da libertação dos oprimidos, dos pobres, dos trabalhadores. Alguns deles, com orientações anticapitalistas, vão se estendendo em comunidades de base, pastorais, bispos. No subcontinente afora, essa perspectiva prática se deu com lutas e mártires como Camilo Torres, que foi lutar na guerrilha em nome da igreja, dos ideais cristãos. Em particular no Brasil, os elementos histórico-constitutivos do cristianismo da libertação se fazem fundamentais para entender, por exemplo, a constituição dos movimentos sociais no país.

A teologia da libertação, muito mais debatida, foi “reflexo e reflexão deste movimento” (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:74). Mesmo sem origem no cristianismo radical, figura como expressão de práticas libertadoras de ministros, leigos e comunidades, sendo fundamental, ainda para Löwy, entender quando esse movimento sociorreligioso aparece e em que circunstância histórica. A partir do final dos anos 1950, dá-se uma configuração particular de eventos que condicionam e influenciam a formação e o desenvolvimento da Teologia da Libertação. Em âmbito internacional: a crise e a renovação teológica do catolicismo europeu no pós-guerra; a eleição do papa João XXIII, em 1958, e sua convocação do Concílio Vaticano II; uma crise do marxismo institucional, com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e a denúncia do stalinismo, favorecendo um relacionamento mais próximo entre cristianismo e marxismo. No âmbito da América Latina: desenvolvimento acelerado do capitalismo, urbanização e industrialização intensas que aprofundam as contradições sociais, tanto na cidade como no campo; a Revolução Cubana (1959-60) com a tomada do poder pelas classes populares e o desencadeamento de uma série de reações no subcontinente. Especialmente em 1959, dois acontecimentos vão convergir e resultar no cristianismo da libertação, em prol de uma “igreja dos pobres” na América Latina: a Revolução Cubana e a abertura da Igreja Católica para novas ideias com o Concílio Vaticano II (1962-1968).

No decorrer dos anos 1960, desenvolveu-se no subcontinente um movimento cristão solidário aos pobres, baseado numa prática conscientizadora e emancipadora, que participa em movimentos de cultura popular, de alfabetização, de organização de bairro, de sindicalização rural e, em alguns países, em movimentos políticos de inspiração marxista.

Na mesma década, o Concílio Vaticano II abordou de forma inovadora o tema do “povo de Deus” na Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen gentium (LG), sendo considerado, por muitos teólogos conciliares, como o símbolo de toda a mudança que o Concílio queria imprimir à Igreja. A colocação do tema do povo de Deus como segundo capítulo da constituição dogmática, logo depois do capítulo sobre o mistério da igreja e antes do capítulo sobre a hierarquia, foi “uma das decisões mais significativas do Concílio e foi vivida como uma grande vitória por todos os partidários da mudança” (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:17).

Ao final desse Concílio, um grupo de teólogos que o compuseram decidiu fundar uma revista internacional, Concilium, que tinha como finalidade, segundo o editorial do primeiro fascículo, construir sobre o Concílio Vaticano II. O primeiro artigo, escrito por Yves Congar, tinha por título “A Igreja como povo de Deus”, apresentando que “a expressão ‘povo de Deus’ traz consigo tal densidade, tal seiva, que é impossível usá-la para significar a realidade que é a Igreja, sem que o pensamento se encaminhe para determinadas perspectivas” (Congar apud Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:17-18).

A categoria de “povo de Deus” tinha o potencial de sintetizar e simbolizar as lutas de setores marginais e periféricos da Igreja que, naquele tempo, buscavam superar a concepção jurídica, verticalista e autoritária da hierarquia eclesial. O catolicismo social, a democracia cristã, os movimentos de Juventude Universitária Católica (JUC) e Juventude Operária Católica (JOC), a Ação Católica, movimentos populares educacionais (Brasil), comitês para promoção da reforma agrária (Nicarágua), federações de camponeses cristãos (El Salvador), as comunidades de base, o novo movimento missionário no clero jovem e a renovação litúrgica com a participação dos fiéis forneceram as condições concretas para a afirmação teológico-política do “povo de Deus”. De fato, eram os primeiros textos de uma teologia-política latino-americana. Mas esses movimentos sociais necessitavam de uma teoria que fosse a “eclesiologia do povo de Deus” e possibilitasse articulá-los e integrá-los à identidade eclesial (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:85; Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:85).

No Concílio, havia bispos e teólogos informados tanto da evolução teológica como dos movimentos sociais. Adotando o conceito de “povo de Deus”, os padres conciliares buscavam reconhecer e estimular os movimentos intelectuais progressistas, assim como os movimentos de promoção dos leigos como povo cristão. No entanto, em razão das contradições de forças no interior do Concílio, ainda não fora possível destacar o lugar dos pobres no povo de Deus, introduzindo esse tema como eixo da Constituição sobre a Igreja, como era desejo do papa João XXIII. Essa compreensão da teologia do povo de Deus só chegou à sua expressão mais ampla na Igreja latino-americana, mesmo que a sua eclesiologia não tenha interessado o episcopado latino-americano antes do Concílio. Em sua maior parte, o episcopado estava comprometido com a teologia romana ou a teologia espanhola, muito tradicionais e fiéis à doutrina da societas perfecta, sensível às novas heresias e ao perigo do comunismo (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:88). Essa doutrina defende a perspectiva teológico-política de afirmação do poder “espiritual” da Igreja em contraposição ao poder “temporal” do Estado moderno. O poder religioso ou espiritual é entendido como uma região delimitada da realidade, transcendente à história mundana, cuja competência cabe à hierarquia da Igreja (Boff 1994BOFF, Leonardo. (1994), Igreja: poder e carisma. Ensaios de eclesiologia militante. São Paulo: Ática.:21-22).

Em confrontação com a societas perfecta, os setores sociais envolvidos no campo religioso-eclesiástico que iriam se tornar a força impulsora para a renovação eclesial eram marginais ou periféricos em relação à hierarquia oficial da Igreja. Num contexto de dependência econômica e pobreza crescentes, em que a revolução cubana foi o começo de uma onda de lutas sociais e tentativas revolucionárias por todo o continente, um número cada vez maior de cristãos começou a se envolver ativamente na causa dos pobres e em suas lutas de autoemancipação, interpretando o evangelho à luz dessa prática, ainda antes do Concílio Vaticano II ou da Conferência de Medellín.

Destaca-se a figura de Camilo Torres, um sacerdote católico colombiano, considerado um dos pioneiros da Teologia da Libertação, cofundador da primeira Faculdade de Sociologia da América Latina e membro do grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional (ELN). Para Camilo, o cristianismo concebe a criação de uma sociedade justa e igualitária, o que supõe a necessidade de realizar uma profunda revolução, despojando do poder a oligarquia, dando lugar a uma sociedade socialista, resultante de “uma mudança fundamental das estruturas econômicas, sociais e políticas” (Torres 1981TORRES, Camilo. (1981), Cristianismo e Revolução. São Paulo: Global Editora. :120).

Camilo Torres foi ordenado sacerdote em 1954. Viajou à Bélgica para estudar sociologia na Universidade de Lovaina. Retornou a Bogotá, em 1959, sendo nomeado capelão da Universidade Nacional onde funda, em 1960, a Faculdade de Sociologia, mantendo-se vinculado como professor, até que o Cardeal Concha Córdoba, reprovando seu trabalho, o destituiu como capelão e das atividades acadêmicas da Universidade. Em razão disto, em 1965, abandonou o sacerdócio e dedicou-se à atividade política revolucionária (Torres 1981:120). Nessa época, ajudou a fundar as “Juntas de Ação Comunitária”, que ainda hoje são um movimento de organização e administração cidadãs em bairros populares em toda a Colômbia. Um aspecto importante do seu pensamento era procurar vincular a doutrina social da Igreja com a busca de um “amor eficaz” (Torres 1981:180).

Para Torres, a revolução significava retirar o poder das oligarquias colombianas e dar às “classes populares” (Torres 1981:123). Após constituir a Frente Unida do Povo, em 1965, organização que convocou importantes manifestações e atos, ingressou no Exército de Libertação Nacional, defendendo a continuação da agitação política nas cidades. Entendia que a luta das classes populares contra as oligarquias colombianas deveria estar associada à luta contra o imperialismo, sobretudo estadunidense, mediante a aliança das forças populares não apenas na Colômbia, mas em toda a América Latina (Torres 1981:121). Em 15 de fevereiro de 1966, morre em seu primeiro combate com as forças de repressão do Estado, em Patio Cemento, Santander, na Colômbia.

No contexto da renovação que se seguiu ao Concílio Vaticano II, aquela proliferação de inquietação política começou a atingir a Igreja em todo o subcontinente latino-americano. Durante a Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín, em 1968, adotaram-se resoluções que denunciavam as estruturas sociais como a base da injustiça, da violação dos direitos fundamentais da população e da “violência institucionalizada”, e comprometiam a Igreja com a aspiração do povo à “libertação de toda servidão” (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:89-90). Segundo o grupo de bispos e teólogos que fizeram a conferência em Medellín, a Igreja latino-americana é um poder moral e cultural indispensável à libertação do povo, levando a uma “coincidência entre a esperança dos pobres e a da Igreja” (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:95).

As categorias “pobre” e “Povo de Deus” como forma de articulação entre classes e grupos subalternos latino-americanos

Enquanto na Europa a categoria “povo de Deus” não evocava imediatamente os pobres, na América Latina, falar em povo era falar na imensa maioria da população pobre do campo ou da periferia das cidades, feita de indígenas, descendentes da diáspora negro-africana ou mestiços, “povo evocava a multidão oprimida por uma classe dominadora e exploradora” (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:94).

Ainda no subcontinente, a categoria povo permitia sintetizar politicamente o conjunto das aspirações da população, com exceção das oligarquias nacionais dominantes e de sua submissão ao imperialismo internacional, que reproduziam uma relação de dependência econômica crescente. O populismo latino-americano é o fruto dessa situação geopolítica concreta, onde uma “fraca burguesia nacional crescia simultaneamente com a classe operária e a organização dos camponeses, em uma nova aliança política, econômica, social e cultural” (Dussel 2016DUSSEL, Enrique. (2016), “Cinco teses sobre o ‘populismo’”. In: E. Dussel. Paulo de Tarso na filosofia política atual e outros ensaios. São Paulo: Paulus .:200-201). “Povo” recebera significado especial com a emergência dos nacionalismos populistas do início do século XX. Os próprios movimentos socialistas adotaram o vocabulário populista, apresentando-se como a libertação do povo do jugo neocolonialista das oligarquias tradicionais e do imperialismo internacional. A luta de classes era compreendida como luta do povo contra seus senhores tradicionais e contra a dependência econômica do centro do sistema capitalista (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:94).

Segundo Comblin (2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.), o “retorno aos pobres” e a “redescoberta da Igreja dos pobres” foi o caminho que levou à reabilitação do conceito de “povo de Deus”. Para ele, os conceitos de “povo” e de “pobres” são solidários e correlativos. “O povo” seriam os pobres, aqueles que são marginais, o conjunto dos que não servem para acumular capital, senão como mão de obra barata: “São os pobres que querem governar a si próprios, livres dos senhores da terra, submissos somente ao Senhor do céu” (Comblin 2002:199). Querem ser povo de Deus, sujeito do processo de libertação, contra os privilégios dos poderes seculares ou eclesiásticos que pretendem dominá-los. Tal processo de libertação expressa as aspirações das classes sociais e povos oprimidos e destaca o aspecto conflitual que os opõe às classes opressoras e povos opulentos (Gutierrez 1975GUTIERREZ, Gustavo. (1975), Teologia de la liberación: perspectivas. Salamanca: Ediciones Sígueme.:68).

Assim, o “conceito povo de Deus facilitava o entrosamento dos teólogos, dos militantes católicos e da massa religiosa nos movimentos sociais populistas ou socialistas” (Comblin 2002COMBLIN, José. (2002), O povo de Deus. São Paulo: Paulus.:94), numa vontade coletiva resultante da articulação político-ideológica de forças históricas dispersas e fragmentadas, sobre a base de elementos que, considerados em si mesmos, não têm um pertencimento de classe necessário, mas um princípio unificador dos “pobres” enquanto categoria primordialmente econômica e simultaneamente política, social e cultural. Do ponto de vista teológico-político, a categoria povo de Deus fornecia a “porta de entrada para uma Igreja dos pobres” (Comblin 2002:93), era o povo oprimido e explorado que clamava por justiça e libertação e era ouvido por Deus (Ex 2,23-25). Com efeito, a Igreja deveria se colocar a serviço de sua libertação, mobilizando os potenciais emancipatórios constitutivos da religião das classes e grupos subalternos para formação de uma nova cultura nacional-popular.

Assim surge a Teologia da Libertação, sendo marcante a publicação, em 1971, de Teologia da Libertação: perspectivas, do teólogo jesuíta peruano Gustavo Gutierrez (1975GUTIERREZ, Gustavo. (1975), Teologia de la liberación: perspectivas. Salamanca: Ediciones Sígueme.). O livro defende uma ruptura com o dualismo herdado do pensamento grego entre uma realidade “temporal” e outra “espiritual”, entre uma história “profana” e outra “sagrada”. Segundo Gutierrez, existe apenas uma história, e é nessa história humana e temporal que devem ser realizados ativamente a Redenção e o Reino de Deus. O Êxodo bíblico do povo hebraico é o modelo de uma salvação na qual não é a alma de um indivíduo que está em questão, e sim a redenção e a libertação de todo um povo escravizado, processo em que os pobres não são objeto de piedade ou caridade, mas agentes de sua própria emancipação (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:90-91).

O conjunto dos escritos publicados, a partir de 1971, por teólogos como Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Pablo Richard, Leonardo Boff, Enrique Dussel, Frei Betto, Ignácio Ellacuria, Jon Sobrino, entre outros, não é a origem do cristianismo radical, mas, como insistem os próprios teólogos, o resultado teórico de um movimento social anterior. Antes do teólogo da libertação havia o bispo profético, o leigo comprometido e as comunidades libertadoras, para então surgir a Teologia da Libertação como expressão e reflexão da prática libertadora de uma igreja que opta preferencialmente e solidariamente pelos pobres e pela transformação das estruturas injustas da sociedade.

Pensando a sociedade e a estrutura de classes, o filósofo Enrique Dussel (1986DUSSEL, Enrique. (1986), Ética comunitária. Petrópolis, RJ: Vozes.:96-102) indica as distinções entre classe e povo. De acordo com o autor, povo seria uma categoria mais concreta e sintética do que a categoria “classe”, mais abstrata e analítica. Para além de um sentido populista, povo significaria o “bloco comunitário” dos oprimidos de uma nação, constituído pelas classes dominadas (operário-industrial, camponesa etc.) e pelos grupos que não são classes no capitalismo (marginais, etnias, tribos etc.). “O povo como dominado é massa. Como exterioridade é reserva escatológica; como revolucionário é construtor da história” (Dussel 1986:97). Essa comunitariedade natural do povo seria duplicada pelas “comunidades cristãs de base”. A “comunidade cristã de base” seria “um lugar, um espaço no povo em que o próprio povo se tornaria autenticamente povo, […] alcançando a autoconsciência do povo. […] E, neste sentido, o povo histórico (a multidão) se torna ‘meu-povo’ (de Javé), o ‘Povo de Deus’ - segundo o concílio Vaticano II” (Dussel 1986:99-100).

O Povo de Deus apresenta-se aqui como um sujeito político na história. E o desenvolvimento de comunidades de base cristãs entre os pobres é vista como alternativa para o modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista, na luta pela autolibertação do povo. A comunidade de base é um pequeno grupo de vizinhos de uma mesma comunidade (favela, aldeia ou zona rural popular) que se reúnem regularmente para rezar, cantar, celebrar, ler a Bíblia interpretando-a conforme o contexto de sua própria existência. Paulatinamente, as discussões e atividades da comunidade ampliam-se, em geral, com a ajuda do clero, e começam a incluir tarefas sociais: luta pela moradia, eletricidade, esgoto ou água nos bairros urbanos, lutas por terra no campo, contribuindo para a formação ou o desenvolvimento de diversos movimentos sociais.

A continuidade e a renovação da Teologia da Libertação se deram para além de um movimento intelectual, enquanto um movimento social capaz de mobilizar setores significativos da população latino-americana, conforme mostram alguns acontecimentos importantes na América Latina, ainda nos anos 1990, tais como rebeliões sociais e políticas relevantes associadas ao cristianismo de libertação. Vejamos a seguir alguns exemplos.

Em 1965, chegara a Chiapas, no México, Monsenhor Samuel Ruiz, que, depois de ter participado da Conferência de Medellín, se tornou, por vários anos, chefe do Departamento de Missões do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Influenciado pela teologia da libertação, publicara, em 1975, Teologia Bíblica da Liberación, que celebra Cristo como profeta revolucionário. Desenvolveu em sua diocese um trabalho de educação pastoral que chegou a contar com 7.800 catequistas indígenas e 2.600 comunidades de base. Agentes pastorais, liderados por Monsenhor Ruiz, ajudaram a conscientizar a população indígena e a organizá-la para que lutasse por seus direitos, em particular pela recuperação da terra de seus ancestrais, apoiaram as comunidades indígenas em seu confronto com os proprietários de terra, tomaram sob sua proteção os refugiados guatemaltecos que chegavam ao sul do México, fugindo da repressão militar em seu país (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:204-205).

A conscientização e o apoio para a auto-organização criou uma cultura político-religiosa em parte significativa da população indígena, gerando um clima favorável para o surgimento do que seria conhecido como o movimento Zapatista. Quadros revolucionários de origem marxista construíram sobre essa nova consciência social e política, organizando vários milhares de índios em uma força armada, com o apoio de suas comunidades.

A rebelião Zapatista em Chiapas, México, em janeiro de 1994, foi um levante armado de vários milhares de índios, sob a liderança de uma organização, até então desconhecida, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Os Zapatistas denunciaram a falta de democracia no México, a repressão sistemática das comunidades indígenas pelos proprietários de terra, pelo Exército, pelas autoridades locais e pela polícia, as medidas neoliberais no campo e a assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) entre os governos dos Estados Unidos, do México e do Canadá (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:204).

De maneira semelhante, no Equador, durante muitos anos, o setor progressista da Igreja tinha ajudado a promover um movimento autônomo entre os índios quéchua. Com a ajuda de 1.300 agentes pastorais, o monsenhor Leonidas Proañio, Bispo de Riobamba (conhecido como “o Bispo dos índios” em razão de sua dedicação à justiça social e em apoio aos índios equatorianos), criou, em 1982, juntamente com os líderes quéchua, o Movimento Índio de Chimborazo (MICH). Monsenhor Proañio e seus seguidores rejeitavam o modelo capitalista de desenvolvimento que destruía a cultura e a sociedade indígena, e tentaram propor um modelo alternativo baseado no comunitarismo indígena inspirado na tradição quéchua. Surgiu assim a Confederação Nacional dos Índios do Equador (CONAIE). Em 1988, monsenhor Proañio foi substituído, após sua morte, por monsenhor Victor Corral, que continuou a ação pastoral de seu predecessor (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:206-207).

Em 1994, o governo equatoriano sancionou uma lei agrária neoliberal que estabelecia fortes garantias à propriedade privada, submetendo a agricultura à lógica exclusiva de mercado: as terras comunitárias poderiam ser parceladas e vendidas e até a água poderia ser privatizada. O movimento indígena e outras forças populares mobilizaram-se contra a lei, com a ajuda da Igreja progressista. Durante duas semanas, as comunidades indígenas interromperam as estradas, pararam o tráfico e fizeram manifestações nas cidades. O Exército tentou reprimir o movimento com a prisão de alguns de seus líderes, fechando estações de rádio da Igreja que apoiavam os índios e enviando tropas para reabrirem as estradas. Em vista do risco de guerra civil, o governo equatoriano teve que recuar e realizar modificações na lei da reforma agrária (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:207).

No Brasil, destacamos a figura de Dom Pedro Casaldáliga, um bispo católico nascido na Espanha e radicado no país desde 1968, quando se mudou para fundar uma missão claretiana no estado do Mato Grosso, uma região com um alto grau de analfabetismo, marginalização social e concentração fundiária, e onde eram comuns os assassinatos. Foi nomeado administrador apostólico da prelazia de São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, em abril de 1970. O Papa Paulo VI o nomeou bispo prelado de São Félix do Araguaia em agosto de 1971. Adepto da teologia da libertação, na década de 1970, ajudou a fundar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Dom Casaldáliga recebeu inúmeras ameaças de morte. Foi alvo, por cinco vezes, de processos de expulsão do Brasil, durante a ditadura militar, tendo sido defendido pelo arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Em apoio à revolta de Chiapas, no México, afirmou, em 1994, que quando o povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido. Em 1999, publicou a “Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba”CASALDÁLIGA, Pedro. (1999), “Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba”. Servicios Koinonía. Disponível em: Disponível em: http://servicioskoinonia.org/Casaldaliga/cartas/DeclaracaoDeAmor.htm . Acesso em: 15/08/2018.
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, expressando grande apoio à Revolução Cubana e sua expansão por outros países no subcontinente e no mundo. Dom Casaldáliga, que sofria do mal de Parkinson, apresentou, em 2005, sua renúncia à Prelazia. Porém, manteve-se crítico à hierarquia e ao autoritarismo da Igreja, defendendo a ordenação de mulheres e posicionando-se contra o celibato sacerdotal, fez críticas ao governo Lula, que acusou de gostar mais dos ricos que dos pobres, declarou seu apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e à Via Campesina. Faleceu recentemente, em 2020, vitimado pelo Parkinson, deixando grande legado de denúncia ao latifúndio, ao tempo em que defendia a compaixão e o amor ao povo. Cumprindo um pedido seu em vida, foi sepultado junto com indígenas e trabalhadores sem terra, em um cemitério de vítimas da grilagem de terras no Araguaia (MT), conhecido como “Cemitério Karajá”.

A contraofensiva neoconservadora de Roma, liderada por João Paulo II, foi o maior desafio enfrentado pelo cristianismo da libertação na América Latina, como parte de um processo de “restauração” na Igreja Católica, conduzindo a uma centralização cada vez mais autoritária do poder, à marginalização ou exclusão de dissidentes e a uma ênfase doutrinal na tradição, sobretudo em temas de moralidade sexual: sexo antes do casamento, divórcio, preservativos e aborto (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:208). Esse processo associou-se também ao crescimento do movimento de Renovação Carismática Católica, pentecostalismo católico apoiado pelo Vaticano.

Ademais, sem dúvida, o cristianismo de libertação foi afetado pelo sucesso extraordinário do ramo conservador do evangelismo entre os pobres latino-americanos, cujo impacto parece ter sido, principalmente, entre as camadas populares não organizadas e nas áreas em que as comunidades de base estavam ausentes (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:199). Esse crescimento tem se constituído em um sério desafio à tentativa de promover uma cultura de emancipação popular, uma vez que parte importante de seus membros parece estar escolhendo uma forma de religião fundamentalista e não engajada, principalmente de perfil pentecostal.

Por fim, na década de 1990, o novo contexto político internacional e latino-americano foi desfavorável aos cristãos radicais. O desaparecimento do “socialismo realmente existente” na União Soviética e no Leste Europeu, seguido da expansão do neoliberalismo nos países latino-americanos, levou a uma séria crise na esquerda latino-americana. Não é secundário ressaltar que, justamente em meados da década de 1980, o marxismo vivia um momento dicotômico importante e que pode indicar sintomas para a divisão entre pensamentos, estratégias e assimilação teórica entre os intelectuais latino-americanos quanto ao marxismo. Por um lado, verificava-se à época o que muitos autores identificam como “fim do socialismo real”, com o enfraquecimento dos partidos comunistas existentes no mundo, as reestruturações no campo da economia e a abertura política e consequente agravamento da crise das repúblicas da União Soviética alavancada pelo governo russo de Mikhail Gorbachev, culminando na caída do muro de Berlim. Contudo, por outro lado, como o compromisso dos partidários da Teologia da Libertação era com os pobres, e não com qualquer sistema de Estados, ficaram menos desorientados e menos vulneráveis que muitos outros progressistas.

Apesar do contexto desfavorável, a Teologia da Libertação, como movimento cultural e corpo de intelectuais orgânicos, permaneceu viva. “Muitos poucos teólogos importantes da América Latina renegaram suas ideias anteriores ou aceitaram as críticas advindas de Roma” (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:201). Todos continuaram compartilhando o compromisso básico com a luta dos pobres pela autoemancipação e, assim como ocorreu com os intelectuais da esquerda, buscaram desenvolver uma teologia crítica que fosse além da teoria marxista, procurando dialogar com as forças emancipatórias presentes nos movimentos sociais contemporâneos. Isso levou a afinidades e diálogos com o desenvolvimento dos estudos subalternos e decoloniais na América Latina. Em vista disso, o que vem a ser os “pobres”, sua luta e os meios para alcançar a autoemancipação passou por transformações significativas.

O conceito de “pobre” foi ampliado, incluindo, além das vítimas do sistema econômico, os oprimidos devido à sua cultura ou origem étnica como índios e negros. A espiritualidade e a religião popular passaram a ter maior atenção. E a situação das mulheres oprimidas nas sociedades patriarcais latino-americanas também vem sendo levada cada vez mais em consideração, inclusive com o desenvolvimento da teologia feminista da libertação.

Alguns teólogos constituíram um novo relacionamento com o marxismo, usando a teoria do fetichismo da mercadoria em sua crítica do capitalismo como uma falsa religião, forma de idolatria do mercado. Procurou-se relacionar a dominação dos pobres com a da natureza, associando aos temas marxistas clássicos a nova contribuição da ecologia, incorporando, na crítica ao capitalismo, a natureza não como fator extrínseco, mas intrínseco em todo processo produtivo e na constituição das forças produtivas. Neste sentido, a luta do Povo de Deus é entendida como a luta por um “novo céu e uma nova terra” (2 Pe 3,13; Ap 21,1). O Reino de Deus é emancipação de toda criação.

Diante desse campo de renovação, do marxismo e da Igreja Católica, chega o Papa Francisco. Com discursos contra a desigualdade e apoiando causas justas, a eleição de Francisco tem levado muitos a olhar para a possibilidade de mudanças na Igreja Católica. Com gestos populistas, tem agido para restabelecer a autoridade da Igreja e a contenção de crises e escândalos com ares de renovação.

Política e a religião hoje: do Papa Francisco ao momento político nacional

Em 2013, com a eleição do primeiro pontífice latino-americano na história da Igreja, o argentino Jorge Mario Bergoglio como Papa Francisco, inicia-se uma nova fase na história das relações do Vaticano com a Teologia da Libertação. Começando com o convite do Vaticano a Gustavo Gutiérrez em 2013. Enquanto isso, o Observatore Romano publicava um artigo elogioso sobre um de seus livros lançado na Itália. Igualmente importante foi a beatificação, em 2015, do arcebispo de São Salvador, monsenhor Oscar Romero, assassinado pelos militares em 1980 (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:220).

Outra iniciativa inovadora foi a aproximação do Papa Francisco com os movimentos sociais, por meio de dois encontros, o primeiro em Roma, em setembro de 2014, e o segundo em Santa Cruz, na Bolívia, em julho de 2015. Em seu discurso, Francisco foi mais contundente que seus antecessores na crítica ao sistema econômico atual que, em nome da idolatria do capital, produz exclusão social e a destruição da natureza. Ademais, o Papa enfatizou o papel histórico dos pobres como atores de sua própria libertação. Na sua encíclica ecológica Laudato Si (2015), ao longo de 184 páginas, “condena a incessante exploração e destruição do ambiente, responsabilizando a apatia, a procura de lucro de forma irresponsável, a crença excessiva na tecnologia e a falta de visão política” (apud Villasenor 2016VILLASENOR, Rafael Lopez. (2016), “Para uma espiritualidade a partir da Laudato Si´”. Convergência, ano LI, nº 493: 545-559. Disponível em: Disponível em: http://crbnacional.org.br/wp-content/uploads/2017/12/CONVERGENCIA_493.pdf . Acesso em: 12/12/2018.
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:551), retomando a crítica radical da idolatria do dinheiro e do perverso sistema econômico atual, responsável pela extensão da pobreza e pela destruição da natureza, encíclica que possui forte relação com os escritos do reconhecido teólogo da libertação Leonardo Boff (Löwy 2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:220-221).

O novo pontificado representa uma mudança profunda em relação à atitude de rejeição, denúncia e repressão que predominou nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, criando condições favoráveis para um novo período de florescimento do Cristianismo da Libertação, num momento de agudo retrocesso político, econômico e social nos países latino-americanos, com participação ativa de setores conservadores das igrejas cristãs, principalmente evangélicos, em especial, pentecostais.

A nova onda neoliberal impulsionada por uma guinada à direita na estrutura política mundial vem se revelando mais brutal e desumana do que a primeira hegemonia neoliberal na América Latina, entre o final da década de 1980 e os anos 1990, na medida em que vem significando não apenas o recuo dos direitos e da distribuição de renda, como também está marcada por um feroz ataque contra as instituições democráticas burguesas. Há uma tentativa que já se estabelece no campo econômico de recolonização no subcontinente. Como ocorreu em 2009, com a deposição do presidente Manuel Zelaia em Honduras, com o impeachment aprovado em 24 horas do presidente Fernando Lugo no Paraguai em 2012, com o golpe contra a presidente Dilma em 2016 e com a vitória eleitoral do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018.

Por seu turno, o surgimento, a consolidação e a expansão de um fundamentalismo religioso, (neo)pentecostal, bastante reacionário, relacionado com uma “teologia da prosperidade”, parecem ter - no campo teológico-político - forte afinidade com a hegemonia neoliberal que propaga o voluntarismo, o individualismo e o empreendedorismo. Esse conservadorismo no campo religioso converge com uma contraofensiva à luta de classes e à organização popular emancipatória dos grupos e classes sociais subalternos, perspectiva marcante do enfoque populista de libertação do povo empreendida pelo cristianismo e teologia da libertação.

Em um momento sombrio para as instituições, os valores e as práticas democráticas, no qual a violência, o desrespeito, a discriminação, o autoritarismo e a intolerância (inclusive com homenagens a um torturador) vêm se tornando práticas comuns no espaço público, físico, social e digital, instaurou-se uma regressão política que ameaça ampliar as injustiças, a pobreza e o sofrimento dos segmentos socialmente mais vulneráveis, com o apoio de setores conservadores das igrejas cristãs. Vários deputados federais da chamada “bancada evangélica”, que se apresentam como representantes daquelas igrejas, votaram, no dia 17 de abril de 2016, pelo impedimento da Presidenta da República do Brasil, invocando as denominações de suas igrejas, a misericórdia ou o nome de Deus. Possivelmente foi a palavra mais usada durante as justificativas de votos dos deputados favoráveis à continuação do processo. No dia em que assumiu interinamente, o presidente em exercício Michel Temer (PMDB) afirmou: “Deus me deu uma missão, que eu ajude a tirar o Brasil da crise”.

A aproximação entre a política e a religião evangélica é um fenômeno que se apresenta por toda a América Latina, onde o movimento evangélico, especialmente em seus segmentos mais conservadores, cresce a um ritmo acelerado, fazendo com que esses grupos religiosos se transformem em um decisivo ator político, impondo na agenda pública valores retrógrados e propondo retrocessos em direitos democráticos ainda recentes na maioria dos países latino-americanos: “povo de Deus” aqui é aquele formado pelos “homens de bem” que lutam contra a corrupção, pelos bons costumes e pela família, uma interpretação teológico-política típica das igrejas neopentecostais e da teologia da prosperidade, cujo papel histórico é o combate na guerra contra as forças do mal e os inimigos da Igreja, em todos os espaços sociais, inclusive políticos. Se, na teologia da libertação, o “povo de Deus” inclui todos os que lutam por libertação para além das instituições eclesiais, nessa teologia conservadora, não há “povo de Deus” fora das instituições eclesiais. E movimentos que lutam pelos direitos de mulheres, LGBTs, religiões afrodiaspóricas e trabalhadores são considerados contrários à Palavra de Deus e, portanto, inimigos de seu Povo. Esse discurso tem demonstrado também grande capacidade de afetar os processos eleitorais em países diferentes na América Latina.

Em 2018, as eleições do Brasil, da Colômbia e do México permitiram avaliar o poder da fé evangélica para além dos espaços eclesiais. Nos três casos, os candidatos, de esquerda e conservadores, buscaram garantir seu voto. Mesmo na esquerda, o presidente eleito do México Andrés Manuel López Obrador avaliou que devia se aliar a um pequeno partido conservador, fundado por um pastor pentecostal, para garantir sua vitória eleitoral.

Os segmentos evangélicos conservadores foram capazes, por diversas vezes, de abrir o debate público e parlamentar sobre o que é família e eliminar qualquer possibilidade de legalização do aborto e de casamentos igualitários para pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, eles apelam à fé para se apresentar como protagonistas na luta contra a corrupção. Sob essa bandeira, Fabricio Alvarado quase chegou ao poder na Costa Rica em 2018. A impressionante ascensão política do pastor evangélico na Costa Rica tornou evidente como os grupos evangélicos possuem uma forte penetração e influência nas classes populares, fartas das elites e que tradicionalmente optavam por partidos de esquerda, influência que os partidos tradicionais não possuem, em especial os mais conservadores. Desta maneira, as igrejas evangélicas acabam fornecendo aos partidos de direita um poder de mobilização, não apenas eleitoral, das classes populares, como, por exemplo, nas manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

No Brasil, uma das principais figuras no processo de impeachment da presidenta, a advogada Janaína Paschoal, na tribuna do Senado, no dia 30 de outubro de 2016, afirmou que foi Deus quem iniciou o processo. Dois anos depois, após ter sido cogitada para sair como vice na chapa de Jair Bolsonaro, a advogada seria lançada candidata pelo Partido Social Liberal (PSL), partido de Bolsonaro, e eleita deputada estadual mais votada da história com mais de 2 milhões de votos no estado de São Paulo.

Esta guinada à direita no Brasil tem uma particular configuração devido ao golpe institucional contra Dilma Rousseff e o governo de Michel Temer, um conjunto de manobras do Poder Judiciário, que, somado à prisão de Lula, serviu para fortalecer um candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro, que quase vence no primeiro turno eleitoral, no marco de uma crescente bonapartização do regime.

Além de Bolsonaro, tivemos como um dos candidatos a presidente o Cabo Daciolo, que apareceu à frente inclusive da presidenciável Marina Silva, terceira colocada na eleição presidencial anterior. O bordão do Cabo Daciolo era “Glória a Deus”, proferido nos debates e na campanha. Por ter posições semelhantes às defendidas por boa parte dos evangélicos, Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita, eleito presidente da república em 2018, colocou-se como o que podia ter mais oportunidades de atrair seu apoio. Militar da reserva que defendeu publicamente torturadores da ditadura e quer que a população tenha o direito de portar armas, foi até batizado por um pastor, em 2016, nas águas do Rio Jordão, em Israel. Bolsonaro adotou como slogans de campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e “Conhecerei a verdade e a verdade vos libertará”. Este último, citação de um evangelho.

Segundo Marcos Coimbra (2019COIMBRA, Marcos. (2019), “O mito da legitimidade”. Brasil 247, 18 jan. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/colunistas/marcoscoimbra/380811/O-mito-da-legitimidade.htm . Acesso em: 20/01/2019.
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), presidente do Vox Populi, o que mudou a eleição e permitiu que Bolsonaro entrasse no segundo turno quase eleito não foi o antipetismo, a operação lava-jato, as prestidigitações do juiz Moro, a intervenção dos generais, a partidarização do Judiciário, o governo Dilma, a prisão de Lula, o horror ao PT da TV Globo. Foi uma mudança abrupta e intensa no eleitorado evangélico, em especial do Sudeste (e do Sul), principalmente de baixa classe média e feminino, na última semana antes do primeiro turno da eleição presidencial, que o levou à vantagem no primeiro turno e à vitória no segundo.

Seu triunfo eleitoral expressa uma força política, social e material de um caráter qualitativamente diferente de outros contextos, contando com apoio do conjunto das forças repressivas do Estado, num processo de politização das Forças Armadas. Grande parte das igrejas evangélicas, pela primeira vez e de forma quase homogênea, transfere o voto no plano nacional. E mesmo sendo, no início, um resultado não pretendido do golpe, consegue o apoio do conjunto das classes dominantes na semana anterior ao primeiro turno de forma maciça.

Em contrapartida, a campanha eleitoral contou também com a emergência de uma numerosa, ativa e voluntarista militância democrático-progressista de esquerda e de centro-esquerda, e com ampla participação ecumênica de setores progressistas de comunidades religiosas cristãs e não cristãs. A coligação do presidenciável Fernando Haddad chegou a lançar uma carta aberta aos eleitores evangélicos durante encontro do candidato petista com líderes evangélicos, em São Paulo. Nada disso foi suficiente para dar-lhe a vitória, mas ensaiou a criação de uma ampla frente contra o fascismo e em defesa da democracia, formada por setores de esquerda e de centro-esquerda, e setores progressistas de comunidades religiosas cristãs e não cristãs.

Esses processos afetaram fortemente a capacidade de articulação das classes populares como “povo de Deus” pelo cristianismo de libertação, levando também a uma disputa sobre a significação dessa categoria segundo tendências sociais e políticas distintas. Para Michael Löwy (2016LÖWY, Michael. (2016), O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Expressão Popular, 2ª ed.:199), “o impacto principal das novas Igrejas parece ter sido entre as camadas sociais não organizadas e nas áreas em que as comunidades de base estavam ausentes”, comprometendo assim a capacidade “dos partidários da libertação - sejam eles católicos ou protestantes - de promover uma cultura de emancipação popular” (Löwy 2016:200).

Considerações finais

Como vimos, diferentes significados teológico-políticos sobre a noção de “Povo de Deus” foram produzidos por distintos segmentos religiosos conservadores, reformistas ou revolucionários, influenciando as formas de mobilização, formação, organização e ação dos movimentos populares, definindo o sentido de “popular” atribuído a esses movimentos, grupos e classes e repercutindo de diversas formas nas instituições e práticas democráticas burguesas. Uma heterogeneidade de forças sociais mobiliza-se e articula-se de várias maneiras como a unidade teológico-política do “povo de Deus”, trazendo sua linguagem, seus valores, suas práticas e suas demandas para o plano da esfera pública e da política. Aliadas a forças progressistas e, por vezes, revolucionárias, contribuem para caracterizar formas pluralistas de convivência e de enfrentamento de problemas sociais e políticos, porém, aliadas a forças regressivas, apontam para o estreitamento dos canais de interlocução e para a escalada da violência e da intolerância.

A configuração de forças entre esses diferentes segmentos antagônicos alterou-se significativamente nos últimos trinta anos. Até fins dos anos 1980, a fé popular era um elemento fundamental nas lutas populares e na formação dos movimentos sociais anti-imperialistas e anticapitalistas no subcontinente latino-americano. Contudo, a partir, sobretudo, dos anos 1990, a fé do “povo latino-americano” novamente vem sendo mobilizada como forma de consolidar a hegemonia de uma fração burguesa conservadora que avança no cenário político mundial e latino-americano. Esse processo está associado à expansão vertiginosa do ramo conservador do evangelismo entre os pobres latino-americanos. O impacto das novas igrejas evangélicas parece ter sido, principalmente, entre as camadas populares não organizadas e nas áreas em que as comunidades de base estavam ausentes, fortalecendo-se como força política de grande penetração e poder de mobilização eleitoral entre os meios populares, impondo na agenda política valores retrógrados e com o risco de fazer retroceder liberdades que, na maioria dos países, mal começavam a ser implementadas. Esse processo se dá, também, mediante uma interpretação teológico-política do papel histórico do “povo de Deus” na luta contra as forças do mal, própria das igrejas neopentecostais e da teologia da prosperidade, interpretação distinta e antagônica à teologia da libertação, que buscaremos estudar em outro trabalho.

Todavia, depois da crise capitalista mundial de 2008, de uma guinada mundial à direita na esfera política (acompanhada pelo recuo dos direitos e da distribuição de renda e pelo ataque contra as instituições democráticas) e da eleição do Papa Francisco em 2013, podemos constatar um processo de reorganização e mobilização dos setores progressistas das igrejas cristãs, aliadas e impulsionadas pela revitalização da luta de classes em resposta ao cenário de crise orgânica do capitalismo.

Nós, cientistas sociais, estamos diante de um grande desafio no tempo presente: entender o avanço do conservadorismo de caráter neopentecostal e, em contrapartida, o potencial político da fé revolucionária do povo latino-americano perante a ofensiva das formas conservadoras e fundamentalistas de religião. Divergindo das tendências secularizantes ou antirreligiosas de setores amplos das esquerdas que veem nos movimentos religiosos a expressão exclusiva do obscurantismo, conservadorismo e autoritarismo, um passo fundamental é o reconhecimento das relações de poder que estruturam, na conjuntura política atual, os discursos e espaços de saber religiosos e das possibilidades de abrir, a partir deles, horizontes de compreensão e de rebeldia que propiciem subversões e a construção de discursos e práticas teológico-políticas progressistas, descolonizadoras e anticapitalistas.